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terça-feira, 22 de maio de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (08 - Ética)

Olá!


No próximo passo do nosso itinerário, vamos sair do meandro da Teoria do Conhecimento para penetrar nas sendas nebulosas da área filosófica que é mais discutida nos dias de hoje: a Ética.


Logo de início, é preciso estabelecer semelhanças e divergências entre Ética e Moral. Localizei duas correntes mais ou menos equivalentes em tamanho: aqueles que consideram os dois termos sinônimos e aqueles que os distinguem. No primeiro caso, temos a questão etimológica, já que os termos ethos (grego) e mores (latino) significam a mesma coisa: costumes ou hábitos de um grupo humano. Usar um ou outro, neste caso, teria diferença apenas no “sabor” da palavra. Quando usamos léxicos como comum e ordinário, ou mediano e medíocre, temos pares de sinônimos, mas os segundos ganham conotação negativa, apesar de não a terem, etimologicamente falando. É como se ordinário e medíocre indicassem coisas reles, vis, sem nada de especial, e, portanto, desprezíveis, enquanto comum e mediano fossem mais neutros, sem embutir nenhum juízo. Nesse sentido, Moral já carrega consigo uma ideia de normatividade, como se indicasse em si o que é certo e errado, e Ética tem um viés mais imparcial, de análise mesmo, com menos valores atribuídos e pré-julgamentos.

Outras correntes fazem uma distinção mais clara entre ambos, dando-lhes diferentes sentidos. A Moral, para estes pensadores, são os modos de conduta de uma determinada comunidade permeados por sua cultura, o que dá valor de certo ou errado para cada uma de suas ações, baseados em tradição e habitualidade. Já a Ética procura compreender as causas e os motivos pelos quais essas mesmas ações são cometidas, apoiados, portanto, na racionalidade. Em um exemplo, vou buscar mais uma historinha da minha vida.

Nunca passei propriamente fome, mas, como todos, passei por momentos de perrengue bravo. Bem no comecinho da década de 80, uma crise daquelas deixou a indústria muito combalida, o que refletiu em amplo desemprego. Em uma família de operários, os reflexos eram óbvios: dos nove moradores da casa, apenas um tinha emprego, o meu pai. Havia ainda as costuras da minha mãe e os bordados da minha madrinha, mas elas passavam mais tempo cuidando do meu avô doente terminal e da minha tia nonagenária do que pegando encomendas. Meu padrinho e meu primo mais velho corriam atrás de emprego e de bicos, com pouco sucesso. Eu e minha prima éramos crianças, mas, já sendo mais taludinhos, íamos tentar alguns níqueis por aí, com ela crochetando toalhinhas e eu carregando pacotes no mercado e na feira. Isso hoje é impensável, mas muito comum à época. O dilema que eu quero propor é o seguinte: com um torneiro mecânico para dar de comer a nove, não é de se estranhar que os pratos estivessem mais vazios – muito ovo e pouca carne. Aliás, carne nenhuma. A pouca que havia era destinada ao meu pai, para sustentá-lo melhor. Do ponto de vista moral, podemos ver a decisão como acerto ou erro. É justo o patriarca receber a melhor quota, para ter energia na manutenção do emprego? Se sim, esse é o lado positivo, o bem. A privação para o restante é ruim, mas é justa. Esse é o olhar moral sobre a causa em tela, e busca detectar as melhores atitudes possíveis. Já no contexto ético, o foco não está propriamente no valor que as ações recebem, mas na estrutura em que se desenrolam. Quais são os pontos em que escolhas devem ser feitas, que critérios adotamos para sopesar custos e benefícios, se os ganhos e perdas devem ser mais individuais ou coletivos, qual o nível de liberdade que uma situação de aperto nos proporciona; no nosso caso, observamos que diante da necessidade torna-se imprescindível a tomada de um rumo, seja ele qual for; estas são as perguntas éticas. É aquilo que falei sobre neutralidade: a Moral já carrega consigo um “sim” e um “não”, um “certo” e um “errado”, um “bom” e um “mau”, ou seja, um valor fixo, e é mais dirigido e cultural. Já a Ética se importa menos com o valor e mais com a estrutura, sendo mais imparcial e filosófica. Do ponto de vista axiológico*, portanto, a Moral quantifica e hierarquiza o valor, enquanto a Ética detecta um ponto onde é aplicado o valor.

Tendo a aderir a essa segunda corrente, que, no frigir dos ovos, entendo que explicita o quanto o termo “ética” é hoje banalizado. Os códigos de ética não têm nada de ético, por exemplo. São normas de conduta, dispositivos coercitivos que tem seu propósito válido, o de manter ordem em uma instituição, ou dar padrão a procedimentos profissionais, mas não são éticos, porque privam daquilo que de mais ético existe: a escolha.

Sim, a Ética baseia-se na compreensão das escolhas. O motorzinho que toca nossas opções é sempre a busca da felicidade, a tal da eudaimonia da qual Aristóteles tanto falava, o fim último do ser humano. Se pensarmos bem, todos nós queremos isso: ser felizes. Os gregos do período socrático vinculavam diretamente a felicidade ao bem, ou seja, qualquer ação má ou prejudicial trazia no máximo a ilusão de felicidade. Pensemos em um roubo. Ao contentamento inicial propiciado pela posse desvigiada da res furtiva, sucederá o temor pela descoberta do ilícito, a preocupação com a vingança ou com a punição, a desconfiança de que também ele pode ser roubado, o arrependimento pelo mal realizado. Isso vale para tudo o que de mal se faz, mesmo que uma pequena maledicência. Sempre haverá um peso a carregar, do que o aderente ao bem está livre. Dessa forma, a eudaimonia está sempre ancorada à areté, a virtude. Porque, na essência, felicidade não se faz sem paz de espírito. É o que move Sócrates em seu diálogo com Críton, ao assumir a morte como bem. Sua fuga representaria a assunção do mal e o afastamento da virtude, mesmo que com uma condenação injusta, porque desvirtuaria aquilo que foi estabelecido como bom pela sociedade de sua época.

Só que ser feliz não é simples, e, especialmente na filosofia helênica**, temos uma grande discussão ética de como viver da melhor forma possível tendo a felicidade como objeto inalcançável. O estoicismo de Zenon prega a resiliência à dor, o famoso “ligar o foda-se” como medida para sanear a distância do prazer; o epicurismo visa encontrar contentamento nas pequenas coisas, ter prazer em cada ato simples como se fosse um grande acontecimento; o cinismo de Diógenes prega um virar as costas à cultura e uma reaproximação à natureza, bastando as funções vitais ao homem para ter o que precisa, coincidindo necessidade e desejo; e o ceticismo de Pirro resolve o problema suspendendo seu juízo sobre o que é possível conhecer, incluindo as fórmulas que explicam o que significa ser feliz. Entendam que tudo isso não se faz por roteamento automático. Todas são escolhas ativas, modos de proceder derivados da opção do indivíduo. A Filosofia helênica é majoritária e essencialmente ética.

Tenho dúvidas com relação a um termo como “antiético”, por todo o exposto acima. De fato, se é válida a diferenciação entre Ética e Moral, não faz muito sentido dar oposição a uma disciplina neutra. Quando chamamos algo de antiético, na verdade queremos dizer que esse algo é imoral. Boa ou má, o cidadão fez uma escolha, o que é característico das disposições éticas. Se atribuirmos valor ao ato, saímos do campo ético e vamos para a Moral. Mas por que a questão das escolhas é tão vital na Ética?

A resposta a essa questão está em um diferenciador do ser humano como distinto dos demais animais. É através das escolhas que o homem exerce a sua liberdade, embora esse não seja um ponto pacífico. Isso porque é essencial que se decida a aporia do livre-arbítrio, a possibilidade de autodeterminação dos caminhos que alguém possa seguir. Somos verdadeiramente responsáveis por nossas escolhas?

Certas escolas filosóficas, como o Determinismo, pensam que não. Afirmam que o homem é condicionado pelo ambiente em que vive, por sua formação, até por sua genética, de tal modo que sua posição perante qualquer bifurcação independe de uma posição pessoal: ainda que não perceba, tudo já está devidamente formatado em seu subconsciente. Outra vertente que retira a responsabilidade pelas escolhas é o Fatalismo. São as doutrinas que decantam um destino já escrito e irrevogável, guiado por um certo ordenamento universal de pleno equilíbrio e imperceptível pelos indivíduos. Como nas correntes deterministas, também aqui as escolhas são ilusórias, apenas uma consequência sem intervenção do próprio ser optante. Nestes casos, a liberdade está tolhida e há pouco a se falar em responsabilidade do ponto de vista filosófico, o que reduz muito o valor das questões éticas.

Já as correntes filosóficas que abraçam o livre-arbítrio têm muito mais sensibilidade com relação à Ética, porque aqui temos as escolhas tomadas conscientemente, e há medida entre causa e consequência. Em tese, a maioria das religiões é aderente ao livre-arbítrio, porque é preciso que faça sentido a atitude do fiel perante o ordenamento divino. Só que é óbvio que essa liberdade, na maioria de suas concepções, é um artefato meramente ideológico. De fato, há uma incongruência entre onisciência divina e possibilidade de escolha humana. Se uma divindade conhece tudo, inclusive instâncias futuras, então o destino está traçado, e o caboclo-súdito está fadado àquilo que lhe é determinado; suas decisões são de araque, e temos um Fatalismo mal-disfarçado. O que temos, neste caso, é uma predestinação, e ponto final. E há ainda o problema da coerção: a divindade que exige crença sob pena de um castigo eterno não fornece livre-arbítrio para sua criatura, a não ser que esta tenha comido cocô quente e saído no sereno. Quem escolheria livremente um inferno, ou um limbo, ou uma redução à animalidade? Mas há correntes de liberdade que, ainda que reconhecendo uma impossibilidade plena de inexistirem elementos que manipulem as decisões, colocam naquele que faz opções a responsabilidade pelas mesmas. É o que fazem os existencialistas, por exemplo. Para eles, a liberdade não é só um atributo humano, mas uma sucumbência que tem o peso de uma condenação. As escolhas são livres, menos justamente a de fazer escolhas, naquilo que conhecemos como paradoxo da liberdade. Frente à dor, à injustiça, à miséria humana, opta-se por nada fazer, e deixa-se tudo à deriva. Essa não é, por si só, uma escolha, ainda que adotada por livre vontade? Dessa forma, a liberdade é mais um peso do que uma benesse, uma usina geradora de angústia.

Outras escolas de livre escolha importantíssimas são a Deontologia Kantiana e o Utilitarismo de Jeremy Bentham. Na primeira, não há sentido ético em atos morais exercidos sem liberdade, e somente tem valor ético a escolha que é feita por dever (significado do termo grego deon). Decisões que atendam vontades fogem desse campo, porque o indivíduo não tem a pressão de produzir o imperativo categórico, ou seja, decidir como se sua ação pudesse ser adotada como uma lei universal. Melhor dizendo: a cada vez em que eu estiver diante de uma situação que me obrigue a tomar uma decisão inevitável, deverei pensar como se eu estivesse estabelecendo normas para serem seguidas por toda a humanidade. Uma ação que não objetive o cumprimento de um dever, ainda que tenha caráter altruísta, é escapadiça à ética kantiana, justamente por não estar embutida em caráter deontológico. Os critérios para ações beneficentes, apesar de bons, não se fecham em leis se não há a intenção de se cumprir uma obrigação, porque só estas guardam uma relação com leis. É como se eu pensasse na Física – solto uma pedra e ela cai, seja no Brasil, no Japão ou no continente perdido de Atlântida. A pedra é obrigada a cair, é assim que as forças gravitacionais agem sobre elas, e este é o uso que a razão pura deve fazer das ações morais.

Já o Utilitarismo entende que a vontade livre deve ter um objetivo bem marcado. Como toda ação humana redunda em uma dicotomia entre prazer e sofrimento, é preciso que as escolhas se pautem pela perseguição ao primeiro. Se pensarmos de maneira egoísta, traremos para o campo do individual a mensuração dessas escolhas, mas o Utilitarismo pensa de modo mais coletivo, e esse prazer, traduzido em felicidade, precisa ser propiciado racionalmente para a maior quantidade possível de pessoas. É uma retomada, de certa forma, da felicidade objetiva aristotélica, que possibilita a comunidades inteiras expressar elementos concretos de prazer, mas que possui uma varinha mágica para acontecer: a ação ética precisa ser adotada, essencialmente, não pelo que ela tem de bom, de justo, de certo, mas pelo que ela tem de útil. É com esse foco que uma decisão aparentemente ruim pode derivar para um resultado bom, ao trazer utilidade para muitos, e não unicamente para o indivíduo que a toma. Sem liberdade, estes resultados são ocos de conteúdo ético.

Então é isso. Como eu disse lá no começo, a Ética é um dos temas mais controversos e mais explorados na Filosofia hodierna, principalmente por ser um tema muito colado à cultura, que tem por característica uma intensa variação no decorrer dos tempos, e, mais ainda, estar associada a valores, que não são confortavelmente adaptados de um espaço para outro, de um tempo para outro, de um modo de pensar para outro. Por isso, ao contrário do que ocorre com outras áreas filosóficas, é tema que nunca sai de moda, e sempre é polêmico.

Recomendação de Leitura:

Normalmente, eu indicaria Ética a Nicômaco, de Aristóteles, como bom livro para saber mais sobre Ética. Mas, como já o fiz anteriormente, vou mencionar o diálogo platônico que mencionei neste texto. Recomendo também que os meus diletos leitores explorem os links que montei neste texto, pois há mais recomendações em cada um deles. Boa leitura.

PLATÃO. Críton. In: Diálogos. São Paulo: Cultrix, 1972.

* Axiologia é uma tentativa de se estabelecer o estudo de valores humanos, que nasce da Economia e que se espraia para outras áreas das Ciências Humanas. É muito discutível se existe a necessidade de se apartar da Ética algo que é inerente a ela mesma. Afinal de contas, conceitos de bem e de justiça, por exemplo, estão na medula desta última. Entendo que o estabelecimento de um campo a parte somente traria confusão. Vamos ver como os seus defensores podem nos convencer do contrário. Mas o termo “axiológico” é plenamente válido quando queremos nos reportar à questão de como os valores devem ser interpretados.

** O Helenismo é uma fase histórica da máxima expansão grega, obtida com o império de Alexandre Magno. Muito embora carregasse forte fundamento dos pensadores clássicos, a filosofia desta época se caracterizou pelas novas informações obtidas pelas conquistas gregas, ajuntando influências de pensadores do universo árabe, norte-africano, persa e até mesmo indo-chinês, aprofundando o traço ético de suas bases.

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