Olá!
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Todos nós passamos por
aperreios algumas vezes na vida, não? Nesta semana, por conta de um fato
prosaico, fiz intenso review de meus
tempos de colapso financeiro, a década de 90. Mas há uma historinha toda para
justificar o arremesso do balde da recordação ao profundo poço da memória.
Vamos lá.
Já vai longe o tempo em que
São Paulo era uma cidade fria. Quando eu era criança, ainda era possível
entender o epônimo “Terra da Garoa”. Bastava a chegada do inverno para termos uma
chuva fina, persistente, enregelante, que penetrava pela pele e ia se
estabelecer fixamente junto aos ossos e articulações. O fenômeno climático fazia
com que imperasse o desânimo de sair de casa. Só que não tem jeito... Têm
momentos em que não dá para ficar só no chocolate e pipoca, e é preciso ir à
rua, nem que seja para comprá-los. Neste caso, era preciso se encapotar e
recorrer ao mais infiel de todos os animais domésticos, o guarda-chuva (segundo
Mario Quintana).
Esse tempo já vai longe, é
certo, mas também é certo que, mesmo esparsamente e com menos intensidade, há
alguns poucos dias verdadeiramente frios no inverno de São Paulo, à moda antiga.
Justamente em um deles, acabou minha pipoca e meu chocolate (diet). Para criar
coragem de ir até a mercearia, subi em minha cama e fui remexer no alto do
guarda-roupa, onde estão perdidas na memória as blusas mais “agasalhadas”.
Ocorre que há uma densidade
nestas peças dignas de causar inveja a qualquer WinRAR ou WinZip. Mas, como
esta é a regra do jogo, não me furto à necessidade de vasculhá-las. Olho a
primeira: muito fina; a segunda, fina também. A próxima é exagerada, e assim
sucessivamente, até chegar na ponta de tecido de uma jaqueta que não reconheço.
Ao tentar puxá-la, ocorre o desastre evidente: uma avalanche de lã, malha,
nylon e tecidos menos votados. Tento defender a queda e tudo o que consigo é
ser tragado pela bola de neve felpuda, caindo bisonhamente sobre o colchão –
ainda bem!
Observando o resultado e já
prevendo a aflição ruidosa da patroa, apresso-me em recolher e realocar as
agora descompactadas vestimentas, missão esta onerosa. E lanço meu olhar sobre
a malvada ocasionadora desta amostra grátis de tragédia grega: uma blusa de
malha grossa, com capuz e zíper, que eu nem me lembrava mais ter. No lado
esquerdo, duas pequenas personagens faziam um círculo com seus corpos, vestidas
em trajes de banho antigo, e, no meio, o dizer “Aqua Loko”.
Aqua Loko, Aqua Loko... Lembrei!
Foi uma das inúmeras empresas em que fiz bico nos anos 90. Aqua Loko não era o
nome da fábrica, era uma das suas marcas. Também usavam a marca B12 e mais
alguma, que não lembro agora. Vou reservar sua razão social, ainda que eu não
vá falar mal dela. Era pertencente a um judeu que não sabia diferenciar uma
sinagoga de uma mesquita, algo como o crente que não sabia rezar da música do
Legião Urbana. Esta observação era desnecessária, mas há outra realmente
relevante.
Eram anos difíceis. Havia
uma tonelada de empresas falindo, vítimas de algumas políticas equivocadas e da
crise econômica do país. As indústrias têxteis, fazendo um pequeno recorte, não
estavam preparadas para concorrer com os baratíssimos produtos chineses,
naqueles tempos que eram o princípio da invasão não armada que vemos até os
dias de hoje. A sucumbência começou em cadeia, afetando fortemente empresas
tradicionais, inclusive várias das quais eu prestava serviços. De muitas delas,
saí com as mãos abanando.
Meu trabalho basicamente
era preparar a contabilidade de empresas para pedidos de concordata: organizar
os credores, arrolar os bens disponíveis, verificar os índices de solvência e
outras informações necessárias à tentativa de salvação em juízo. Obviamente não
eram fregueses que estavam porejando dinheiro por todos os orifícios, mas era o
que tinha para a janta.
(Antes que alguém me
pergunte por que eu me sujeitava a trabalhar em três empresas ao mesmo tempo
para tentar receber migalhas de alguma, tenha filhos primeiro; depois a gente
discute).
No caso desta têxtil, para
não ficar sentado na beira do cais esperando o regresso de Dom Sebastião,
resolvi receber parte de meus proventos em mercadorias, e a tal blusa
protagonista da história veio no lote.
A tal empresa – uma das
muitas do Bom Retiro – não vivia unicamente de produzir marcas próprias. Também
terceirizava parte da produção de outras indústrias maiores, possuidoras de
marcas de maior expressão e penetração no mercado, as famosas grifes. Uma delas
era a Zoomp, dona de uma reputação de produtos de boa qualidade, que tinha de
fato. Era o que hoje poderíamos chamar de roupas fashion. Era legal ter uma camiseta da Zoomp, como era legal ter
tênis da Nike, perfumes Swiss Army, ternos Armani, carteiras OP (para quem
lembrar dessa, recomendo visitas aos geriatras de plantão).
Só que precisamos
acrescentar um fator: enquanto eu testemunhava os estertores finais das
tesouras e agulhas da mal fadada fábrica, pude presenciar também que as roupas
da Zoomp eram fabricadas com os MESMÍSSIMOS insumos da Aqua Loko. O mesmo
tecido, o mesmo silk-screen, os mesmos equipamentos, as mesmas costuras, os
mesmos overloques, as mesmas galoneiras, os mesmos funcionários... Eram até
mesmo transportadas pelo inconsueto
Sr. Gordura, homem macérrimo, configuração física típica dos somalis, que não
só dirigia, mas também carregava e descarregava taurinamente seu caminhãozinho.
Agora vamos para a loja.
Qual o preço de uma e o preço de outra? Disparidades da ordem de 50% ou mais. A
Zoomp carregava consigo uma marca que construiu um conceito de qualidade que
lhe permitia cobrar mais caro. Isso não vem gratuitamente. A Zoomp gastava, com
certeza, muito mais com estilistas e publicidade do que a pobre fabricante da
Aqua Loko. Mas o ponto central é: o fato de ser mais cara torna a Zoomp melhor?
Não, não torna.
O argumento em que se busca
dar justificativa a algo baseado em valores monetários é uma falácia da
dispersão conhecida como apelo à riqueza,
ou, em bom latim, argumentum ad crumenam.
Este nome feio significa carteira, bolsa ou coisa semelhante. Portanto,
deduz-se que esta espécie de falácia dá mais crédito a quem tem a bolsa mais
cheia. Quem é mais rico tem razão.
Vejam só. É do senso comum
entender que uma pessoa que tenha tido bom suporte financeiro durante toda a
vida, teve a possibilidade de estudar nas melhores escolas, lido os melhores
livros, visitado os melhores museus, visto muitos filmes e etc – coisas que
para uma pessoa mais pobre é bem mais difícil, porque gastos mais básicos
consomem-lhe a renda – ou seja, que teve melhores oportunidades na vida, tenham
uma bagagem cultural suficiente para sedimentar uma maior inteligência e
construir melhores argumentos em seus debates.
Mais ainda: riqueza é sinônimo
de sucesso, e, portanto, exemplos a serem seguidos. Alguém que obteve maior
patrimônio parece ter a chave que abre as difíceis portas de uma vida bem
sucedida. Desta forma, um arrazoado calcado em uma posse maior de bens ou de
dinheiro torna o argumento do nababo mais respeitável.
Só que não. Nem sempre as “dicas”
de alguém bem sucedido superam a lógica de um argumentador pobre. Inúmeros
fatores podem ter influenciado sua riqueza, como um berço de ouro, um casamento
do baú ou práticas reprováveis, como a corrupção, desvios e outras falcatruas
várias. Não havendo uma riqueza levantada sobre os próprios méritos, há mais
dificuldade em se atribuir correção aos pretensos conselhos do oportunista.
E não é só. Não é o
dinheiro que faz o argumento, mas a lógica da proposição. O próprio fato de ser
rica pode levar a parte mais abastada a defender pontos de vista que não são
propriamente razoáveis, e que podem mais fazer a defesa de sua condição do que
admitir, por exemplo, uma distribuição de renda injusta. Medir até onde vai o
interesse de uma pessoa em uma proposição é o ponto de inflexão entre uma
falácia ou um argumento válido.
Sim, é verdade. Nem sempre
usar a riqueza como argumento é falacioso. Defender a própria pujança não é,
por si só, um argumento inválido. Um empresário pode ter plena razão em afirmar
que determinado repasse para seus funcionários pode ser lesivo à sua empresa (e
a seu bolso). O erro está em se afirmar que ele estará certo sob qualquer
condição, pelo simples fato de que ele é o dono da grana (bufunfa, gaita, erva,
níquel, tutu, prata, vintém, pataca).
Mas há o lado mesquinho do
polo passivo da coisa. Quem aceita um apelo à riqueza pode, de modo subjacente,
fazê-lo com interesse. Concordar com o mais rico pode ter como objetivo algum
tipo de retribuição que somente é possível de oferecer por quem tem recursos.
Imagine a seguinte situação: uma estradinha ligará o nada ao porra nenhuma –
sendo esta última a porta da fazenda de um fazendeiro cheio de cabeças de gado.
Um pequeno sitiante que cria codornas terá sua terrinha cortada ao meio pela
estrada em questão, prejudicando seus já pequenos ganhos, o que lhe faz
proferir protestos e blasfêmias – é uma criação delicada, que precisa de
silêncio e ar puro. Uma organização ambiental ouve seus apelos e corre em seu
socorro, mas, ao saber que um de seus principais contribuidores é justamente o
fazendeiro rico, recolhe suas armas e bandeiras, informando sobre as benesses
do progresso e tal e coisa. Nosso pequeno infeliz fica com as calças na mão,
enquanto a estrada é construída e a ONG se aquieta. Acho que nunca ninguém ouviu
falar de algo semelhante, não é verdade?
Há uma falácia que é o
exato oposto desta, o argumentum ad
lazarum, que será abordado futuramente.
Recomendação de filme:
Recomendo este filme,
ganhador do Oscar (grande coisa), que tem uma abordagem meio lateral com o tema
tratado neste post, mas que tem alguma correlação quando o protagonista cai em
descrédito por conta de... chega de spoiler! É bem interessante.
BOYLE, Danny. Quem quer ser um milionário? Filme.
Reino Unido: Celador, 2008. Colorido. 120 min.
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