Marcadores

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 16º tomo: O apelo à riqueza (argumentum ad crumenam)

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Todos nós passamos por aperreios algumas vezes na vida, não? Nesta semana, por conta de um fato prosaico, fiz intenso review de meus tempos de colapso financeiro, a década de 90. Mas há uma historinha toda para justificar o arremesso do balde da recordação ao profundo poço da memória. Vamos lá.

Já vai longe o tempo em que São Paulo era uma cidade fria. Quando eu era criança, ainda era possível entender o epônimo “Terra da Garoa”. Bastava a chegada do inverno para termos uma chuva fina, persistente, enregelante, que penetrava pela pele e ia se estabelecer fixamente junto aos ossos e articulações. O fenômeno climático fazia com que imperasse o desânimo de sair de casa. Só que não tem jeito... Têm momentos em que não dá para ficar só no chocolate e pipoca, e é preciso ir à rua, nem que seja para comprá-los. Neste caso, era preciso se encapotar e recorrer ao mais infiel de todos os animais domésticos, o guarda-chuva (segundo Mario Quintana).

Esse tempo já vai longe, é certo, mas também é certo que, mesmo esparsamente e com menos intensidade, há alguns poucos dias verdadeiramente frios no inverno de São Paulo, à moda antiga. Justamente em um deles, acabou minha pipoca e meu chocolate (diet). Para criar coragem de ir até a mercearia, subi em minha cama e fui remexer no alto do guarda-roupa, onde estão perdidas na memória as blusas mais “agasalhadas”.

Ocorre que há uma densidade nestas peças dignas de causar inveja a qualquer WinRAR ou WinZip. Mas, como esta é a regra do jogo, não me furto à necessidade de vasculhá-las. Olho a primeira: muito fina; a segunda, fina também. A próxima é exagerada, e assim sucessivamente, até chegar na ponta de tecido de uma jaqueta que não reconheço. Ao tentar puxá-la, ocorre o desastre evidente: uma avalanche de lã, malha, nylon e tecidos menos votados. Tento defender a queda e tudo o que consigo é ser tragado pela bola de neve felpuda, caindo bisonhamente sobre o colchão – ainda bem!

Observando o resultado e já prevendo a aflição ruidosa da patroa, apresso-me em recolher e realocar as agora descompactadas vestimentas, missão esta onerosa. E lanço meu olhar sobre a malvada ocasionadora desta amostra grátis de tragédia grega: uma blusa de malha grossa, com capuz e zíper, que eu nem me lembrava mais ter. No lado esquerdo, duas pequenas personagens faziam um círculo com seus corpos, vestidas em trajes de banho antigo, e, no meio, o dizer “Aqua Loko”.

Aqua Loko, Aqua Loko... Lembrei! Foi uma das inúmeras empresas em que fiz bico nos anos 90. Aqua Loko não era o nome da fábrica, era uma das suas marcas. Também usavam a marca B12 e mais alguma, que não lembro agora. Vou reservar sua razão social, ainda que eu não vá falar mal dela. Era pertencente a um judeu que não sabia diferenciar uma sinagoga de uma mesquita, algo como o crente que não sabia rezar da música do Legião Urbana. Esta observação era desnecessária, mas há outra realmente relevante.

Eram anos difíceis. Havia uma tonelada de empresas falindo, vítimas de algumas políticas equivocadas e da crise econômica do país. As indústrias têxteis, fazendo um pequeno recorte, não estavam preparadas para concorrer com os baratíssimos produtos chineses, naqueles tempos que eram o princípio da invasão não armada que vemos até os dias de hoje. A sucumbência começou em cadeia, afetando fortemente empresas tradicionais, inclusive várias das quais eu prestava serviços. De muitas delas, saí com as mãos abanando.

Meu trabalho basicamente era preparar a contabilidade de empresas para pedidos de concordata: organizar os credores, arrolar os bens disponíveis, verificar os índices de solvência e outras informações necessárias à tentativa de salvação em juízo. Obviamente não eram fregueses que estavam porejando dinheiro por todos os orifícios, mas era o que tinha para a janta.

(Antes que alguém me pergunte por que eu me sujeitava a trabalhar em três empresas ao mesmo tempo para tentar receber migalhas de alguma, tenha filhos primeiro; depois a gente discute).

No caso desta têxtil, para não ficar sentado na beira do cais esperando o regresso de Dom Sebastião, resolvi receber parte de meus proventos em mercadorias, e a tal blusa protagonista da história veio no lote.

A tal empresa – uma das muitas do Bom Retiro – não vivia unicamente de produzir marcas próprias. Também terceirizava parte da produção de outras indústrias maiores, possuidoras de marcas de maior expressão e penetração no mercado, as famosas grifes. Uma delas era a Zoomp, dona de uma reputação de produtos de boa qualidade, que tinha de fato. Era o que hoje poderíamos chamar de roupas fashion. Era legal ter uma camiseta da Zoomp, como era legal ter tênis da Nike, perfumes Swiss Army, ternos Armani, carteiras OP (para quem lembrar dessa, recomendo visitas aos geriatras de plantão).

Só que precisamos acrescentar um fator: enquanto eu testemunhava os estertores finais das tesouras e agulhas da mal fadada fábrica, pude presenciar também que as roupas da Zoomp eram fabricadas com os MESMÍSSIMOS insumos da Aqua Loko. O mesmo tecido, o mesmo silk-screen, os mesmos equipamentos, as mesmas costuras, os mesmos overloques, as mesmas galoneiras, os mesmos funcionários... Eram até mesmo transportadas pelo inconsueto Sr. Gordura, homem macérrimo, configuração física típica dos somalis, que não só dirigia, mas também carregava e descarregava taurinamente seu caminhãozinho.

Agora vamos para a loja. Qual o preço de uma e o preço de outra? Disparidades da ordem de 50% ou mais. A Zoomp carregava consigo uma marca que construiu um conceito de qualidade que lhe permitia cobrar mais caro. Isso não vem gratuitamente. A Zoomp gastava, com certeza, muito mais com estilistas e publicidade do que a pobre fabricante da Aqua Loko. Mas o ponto central é: o fato de ser mais cara torna a Zoomp melhor? Não, não torna.

O argumento em que se busca dar justificativa a algo baseado em valores monetários é uma falácia da dispersão conhecida como apelo à riqueza, ou, em bom latim, argumentum ad crumenam. Este nome feio significa carteira, bolsa ou coisa semelhante. Portanto, deduz-se que esta espécie de falácia dá mais crédito a quem tem a bolsa mais cheia. Quem é mais rico tem razão.


Vejam só. É do senso comum entender que uma pessoa que tenha tido bom suporte financeiro durante toda a vida, teve a possibilidade de estudar nas melhores escolas, lido os melhores livros, visitado os melhores museus, visto muitos filmes e etc – coisas que para uma pessoa mais pobre é bem mais difícil, porque gastos mais básicos consomem-lhe a renda – ou seja, que teve melhores oportunidades na vida, tenham uma bagagem cultural suficiente para sedimentar uma maior inteligência e construir melhores argumentos em seus debates.

Mais ainda: riqueza é sinônimo de sucesso, e, portanto, exemplos a serem seguidos. Alguém que obteve maior patrimônio parece ter a chave que abre as difíceis portas de uma vida bem sucedida. Desta forma, um arrazoado calcado em uma posse maior de bens ou de dinheiro torna o argumento do nababo mais respeitável.

Só que não. Nem sempre as “dicas” de alguém bem sucedido superam a lógica de um argumentador pobre. Inúmeros fatores podem ter influenciado sua riqueza, como um berço de ouro, um casamento do baú ou práticas reprováveis, como a corrupção, desvios e outras falcatruas várias. Não havendo uma riqueza levantada sobre os próprios méritos, há mais dificuldade em se atribuir correção aos pretensos conselhos do oportunista.

E não é só. Não é o dinheiro que faz o argumento, mas a lógica da proposição. O próprio fato de ser rica pode levar a parte mais abastada a defender pontos de vista que não são propriamente razoáveis, e que podem mais fazer a defesa de sua condição do que admitir, por exemplo, uma distribuição de renda injusta. Medir até onde vai o interesse de uma pessoa em uma proposição é o ponto de inflexão entre uma falácia ou um argumento válido.

Sim, é verdade. Nem sempre usar a riqueza como argumento é falacioso. Defender a própria pujança não é, por si só, um argumento inválido. Um empresário pode ter plena razão em afirmar que determinado repasse para seus funcionários pode ser lesivo à sua empresa (e a seu bolso). O erro está em se afirmar que ele estará certo sob qualquer condição, pelo simples fato de que ele é o dono da grana (bufunfa, gaita, erva, níquel, tutu, prata, vintém, pataca).

Mas há o lado mesquinho do polo passivo da coisa. Quem aceita um apelo à riqueza pode, de modo subjacente, fazê-lo com interesse. Concordar com o mais rico pode ter como objetivo algum tipo de retribuição que somente é possível de oferecer por quem tem recursos. Imagine a seguinte situação: uma estradinha ligará o nada ao porra nenhuma – sendo esta última a porta da fazenda de um fazendeiro cheio de cabeças de gado. Um pequeno sitiante que cria codornas terá sua terrinha cortada ao meio pela estrada em questão, prejudicando seus já pequenos ganhos, o que lhe faz proferir protestos e blasfêmias – é uma criação delicada, que precisa de silêncio e ar puro. Uma organização ambiental ouve seus apelos e corre em seu socorro, mas, ao saber que um de seus principais contribuidores é justamente o fazendeiro rico, recolhe suas armas e bandeiras, informando sobre as benesses do progresso e tal e coisa. Nosso pequeno infeliz fica com as calças na mão, enquanto a estrada é construída e a ONG se aquieta. Acho que nunca ninguém ouviu falar de algo semelhante, não é verdade?

Há uma falácia que é o exato oposto desta, o argumentum ad lazarum, que será abordado futuramente.

Recomendação de filme:

Recomendo este filme, ganhador do Oscar (grande coisa), que tem uma abordagem meio lateral com o tema tratado neste post, mas que tem alguma correlação quando o protagonista cai em descrédito por conta de... chega de spoiler! É bem interessante.

BOYLE, Danny. Quem quer ser um milionário? Filme. Reino Unido: Celador, 2008. Colorido. 120 min.

Nenhum comentário:

Postar um comentário