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terça-feira, 25 de agosto de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 17º tomo: a negação do antecedente

Olá!

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É vantagem ou desvantagem estar rodeado de sinos por todos os lados? Eu, particularmente, gosto; e, seja por bom senso dos padres, seja por determinação da prefeitura, seja pelo anacronismo deste modelo de “despertador”, o fato é que não se tocam mais sinos antes das nove da manhã. Há tempos que eu não acordo depois disso. Portanto, não me perturba.

No caso, é independente o fato de se ser cristão ou não. Os sinos são quase que fósseis que ainda nos fazem recordar de uma cidade de São Paulo com algum ar de aldeia do interior. E esse fenômeno da reminiscência é especialmente relevante na região central do município, onde estão combinados o excesso de igrejas históricas e a escassez de moradores, em especial nas proximidades da Sé, onde habito.

Da janela do meu apartamento, ouço com destaque os poderosos sinos da Catedral da Sé, de onde também ecoa a música dos carrilhões, absolutamente fascinante – pena que viva em manutenção. Também é possível ouvir sem qualquer esforço os sinos da velha igreja do Carmo, encravada entre o Poupatempo e a Secretaria da Fazenda, no marco inicial da longa Avenida Rangel Pestana/Celso Garcia, em frente de onde moram duas das minhas mais chegadas afilhadas, a Natália e a Renata. Quem tem a audição um pouco mais fina, também consegue distinguir os sinos do Mosteiro de São Bento, que bate de hora em hora. Tem também o sino das cinco da tarde da igreja de Santa Luzia, pequenos e mais agudos que o habitual. Há ainda outros templos que acionam seus sinos ocasionalmente, principalmente em dias de festa, mas gostaria aqui de mencionar a igreja da Boa Morte, por uma característica peculiar. Enquanto todas estas igrejas têm mecanismos automáticos para rebater seus sinos, nesta em particular ainda permanece o método medieval – as cordas.

Sim, ainda existem sinos acionados por cordas.

Tocar os sinos “na mão” requer certa técnica. É preciso subir pelas escadas estreitinhas do campanário, mas não se pode batê-los em distância confortável, sob pena de suspender a audição de samba por alguns dias. Isso se o dano não for maior. É preciso tomar a corda e passá-la pelos vãos da escada como se fossem corrediças, e descer uns dois lances do caracol quadrado das escadas. Claro, é possível poupar muitos desses transtornos utilizando um protetor auricular, mas nem sempre o temos ao alcance.

Para tanger os sinos, é preciso ritmo; e, para ter ritmo, é preciso conhecer o curso das cordas. Meio metro para cima, meio metro para baixo, em um ciclo de dois segundos. No campanário há três sinos; é possível badalá-los todos de uma vez, ampliando o som. Mas aí é necessário fazê-lo em sincronia, seja continuamente, seja alternadamente. Neste caso, o nível de maestria deve aumentar em muito.

A igreja de Nossa Senhora da Dormição, que o universo inteiro chama de Boa Morte, é uma capela que fica no alto do morro onde hoje pontua a rua Tabatinguera, mas em que antigamente serpenteava o ribeirão do Carmo, riacho de corredeira que desaguava no rio Tamanduateí, o que ajudava a formar belas inundações onde hoje jaz o abandonado quartel do Parque Dom Pedro. Para quem tem ouvido de tuberculoso, é possível escutar o marulhar de suas águas nos tampos da galeria que fica na calçada do boteco da esquina em frente à precitada igreja. Mas isso só é possível no domingo, já me disse alguém que tem ouvido de tuberculoso.

Olhando a foto aérea da região, é possível perceber as intervenções na topologia local com a chegada da modernidade. O curso do riacho foi aprumado antes de ser enfiado em uma galeria. Uma boa parte do pavilhão paroquial foi para o vinagre, deixando-o com exótico formato trapezoidal (by Google Maps):


Fico aqui pensando... O que aconteceria se algum prefeito doido resolvesse proibir os sinos das igrejas de tocar? Como poderíamos deduzir se já são nove horas da manhã de domingo? São os sinos que fazem os ponteiros do relógio se mover?

Claro que esta é só uma elucubração didática, mas poderíamos sistematizar essa dúvida em um silogismo:

Os sinos das igrejas tocam às 09:00 do domingo.
Os sinos das igrejas não tocaram até agora.
Portanto, ainda não são 09:00 do domingo.

Há um erro formal neste raciocínio. O fato de que os sinos não tenham tocado não significa que não sejam 09:00. Podemos ter uma proibição, como especulei acima. Podemos ter um acordo entre as igrejas para não tocar os sinos por conta da morte de um figurão eclesiástico. Podemos ter a improvável (mas não impossível) coincidência de que os mecanismos tenham quebrado ao mesmo tempo. Ou seja, há aqui uma confusão entre condição necessária e condição suficiente, em mecanismo equivalente ao que eu discuti quando expus a falácia da afirmação do consequente. A única diferença, neste caso, é que mudamos o ponto onde há a deficiência lógica, e temos uma negação do antecedente, uma falácia do tipo non sequitur (“não segue que” em latim).

Para que eu não termine a exposição aqui, vou aprofundar um pouco o tema e falar sobre as fórmulas de inferência e, para tanto, vou penetrar no terreno semiárido da lógica proposicional.

Quando falamos em Lógica como disciplina, devemos ter em mente que é necessário tornar o pensamento mais matemático para resolver as implicações das proposições, que nada mais são do que afirmações ou negações extraídas do mundo real. Neste caso, podemos substituir um longo conjunto de arrazoados por nomenclaturas padronizadas. Vamos brincar um pouco disso.

Tomemos uma pequena bobagem qualquer e coloquemos em forma de silogismo:

Se hoje é dia 1º de abril, então hoje é o dia da mentira;
Hoje é dia 1º de abril;
Portanto, hoje é o dia da mentira.

Simples, não? Só que é possível substituir os termos das premissas por símbolos, tornando-os mais simples e reutilizáveis por outras. Vou chamá-las assim:

Se hoje é dia 1º de abril = p
Hoje é o dia da mentira = q

Ok. Agora vou reescrever este silogismo utilizando os símbolos:

Se ocorrer p, então teremos q
Temos p
Portanto, temos q

Está fácil? Agora vamos recorrer a outros símbolos para compactar ainda mais nossa proposição. Os símbolos proposicionais que utilizaremos são o de implicação (ou condição), que é uma seta (→), e o de conclusão, que são três pontinhos em forma de triângulo (). Vejam como a fórmula vai ficar agora:

p→q
p
q

(Lendo: Se p então q; p; portanto q).

Isso é o que chamamos de fórmulas moleculares, porque limpamos todo o ouropel que existia ao redor delas e damos foco exclusivamente ao que interessa, àquilo que faz o mecanismo proposicional girar. Para qualquer conjunto de proposições válidas, esse paradigma de fórmula funcionará.

Este modelo de fórmula é o que chamamos de Modus Ponens (modo que põe), que é uma regrinha utilizada pelos lógicos para reduzir uma proposição. No nosso exemplo, p é o antecedente e q é o consequente. O Modus Ponens permite deduzir que se o antecedente é verdadeiro, o consequente também será. É uma afirmação do antecedente.

Mas há também o Modus Tollens (modo que tira), cuja diferença consiste em negar o consequente e, por tabela, negar a conclusão. Fica assim:

Se hoje é dia 1º de abril, então hoje é o dia da mentira;
Hoje NÃO é o dia da mentira;
Portanto, hoje NÃO é dia 1º de abril.

Reduzindo à fórmula (introduzindo o símbolo de negação ¬)...

pq
¬q
¬p

(Se p então q; não q; portanto não p)

Desta forma, temos a negação do consequente. Neste caso, a condição estabelecida não se cumpre, e a conclusão só pode ser negativa. Há plena lógica, mesmo com a negação.

Qual o problema com o nosso argumento dos sinos? Simples. É uma condição para ser resolvida pelo Modus Tollens. Só que o que está sendo negado não é o consequente. Vamos desdobrar o raciocínio para compreender melhor:

Se os sinos das igrejas tocam, são 09:00 do domingo;
Os sinos das igrejas não tocaram;
Portanto, não são 09:00 do domingo.

Vejam que não estamos negando o consequente q, mas o antecedente p. Portanto, há um defeito na construção do argumento, um non sequitur. E isso ocorre por conta do mesmo problema mencionado na falácia da afirmação do consequente: há problemas com as condições necessárias e suficientes para o cumprimento da condição. Portanto, tanto a afirmação do consequente quanto a negação do antecedente são falácias formais, ou seja, o erro está no modo com o qual o argumento é construído.

Há outros conceitos de lógica proposicional que poderiam ser explorados, mas demos tempo ao tempo e falemos deles e da tabela-verdade em momento mais propício. Por ora, é o bastante.

Recomendação de visita:

Desta vez, vou fazer uma sugestão um bocado diferente. Sem dúvida alguma, as peças do conjunto arquitetônico da cidade de São Paulo que estão mais bem preservadas são as igrejas da região central. É uma visita válida mesmo para que não seja religioso, porque dão uma mostra do estilo da época que vai da fundação à industrialização da metrópole. Várias delas têm elementos históricos e artísticos que valem a pena conhecer. Em um período de umas quatro horas, é possível trafegar por sete ou oito delas. O ideal é fazê-lo no domingo de manhã, quando todas estão abertas, o trânsito é amigável e há onde estacionar. Vejam as sugestões:

Na Catedral da Sé, há um órgão de tubos monstruoso, com poucos iguais no mundo. Além da nave imensa, há uma cripta onde há uma série de figurões enterrados, como o Índio Tibiriçá, o regente Feijó e o padre Bartolomeu de Gusmão. É muito divertido, principalmente para as crianças, ficar caçando os bichos da fauna brasileira espalhados pelas colunas de sustentação (Praça da Sé, s/nº - Sé);

O Mosteiro de São Bento tem uma série de mosaicos muito belos, além de ser o local onde se pratica o melhor canto gregoriano da cidade. Também é interessante arriscar um bolo dos beneditinos, caros e saborosos, com vantagem para a segunda qualidade (Largo de São Bento, s/nº - Sé);

A igreja do Pátio do Colégio é uma réplica, mas há ainda uma parede do conjunto original, que pode ser vista no bar que antecede a entrada da cripta de Anchieta. Também há um museu que contém, mais que elementos religiosos, muitas peças históricas. Bem colado, ainda temos a Casa Um e o Solar da Marquesa, que também podem ser visitados (Largo Patheo do Colégio, nº 02 - Sé);

A pequena igreja de Santo Antônio, na praça do Patriarca, tem como atrativo o fato de que é a mais antiga construção eclesiástica original de São Paulo. No dia do santo, há um intenso afluxo de fiéis que procuram o pãozinho bento, que nossas avós gostavam de guardar nas latas de arroz, para que nunca faltasse comida (Praça do Patriarca, nº 49 - Sé);

A Paróquia de São Francisco de Assis, no largo de mesmo nome, possui um conjunto arquitetônico vasto, onde concorrem a igreja propriamente dita; outra igreja, da ordem terceira; a Faculdade de Direito e todo o aparato externo, com estátuas e um curioso parlatório. É preciso abstrair um pouco o cheiro de fezes do local (Largo de São Francisco, nº 133 - Sé);

A igreja de Nossa Senhora do Carmo, na praça Clóvis, tem, além de suas próprias características, um importante acervo pictórico do frei Jesuíno do Monte Carmelo em seu corredor lateral. É uma pequena pinacoteca em estilo barroco. Andou sendo reformada nos últimos tempos. Os lustres são também uma atração à parte (Avenida Rangel Pestana, nº 230 - Sé);

Um pouco mais distante, mas não a ponto de causar câimbras, há o Mosteiro da Luz, onde se encontra o Museu de Arte de Sacra, que dispensa apresentações. Há também um maravilhoso presépio napolitano, que eu coloco como o mais lindo que eu já vi... Enorme, com todos os detalhes imagináveis. Há também a igreja onde o famoso frei Galvão passou muitos dos seus dias e onde está enterrado. É um tipo raro de construção em São Paulo, com planta octogonal (Avenida Tiradentes, nº 676 - Luz);

Há muitas outras dignas de visita, como a capela de Santa Luzia (Rua Tabatinguera, nº 104 –  Sé), a igreja de São Gonçalo (Praça Dr. João Mendes, nº 108 – Liberdade), de Santa Ifigênia que não se chama Santa Ifigênia, mas Nossa Senhora da Conceição (Rua Santa Ifigênia, nº 43 – Santa Ifigência), as fúnebres igrejas dos Enforcados (Avenida da Liberdade, nº 238 - Liberdade) e dos Aflitos (Beco dos Aflitos, nº 70 – Liberdade). Para quem estiver disposto, temos a igreja de Santo Agostinho (Praça Santo Agostinho, nº 79 - Liberdade), a Achiropita da famosa festa (Rua Treze de Maio, nº 478 - Bela Vista), a Capelania Militar de Santo Expedito (Rua Dr. Jorge Miranda, nº 264 - Luz), a São Cristóvão, com destaque para as bênção de veículos e carteiras de motoristas (Av. Tiradentes, nº 84 - Luz) e tantas outras; e há, é claro, a igreja da Boa Morte, que mencionei neste texto e que ilustra sua foto. É uma igrejinha barroca, toda original, reformada mais ou menos recentemente, e que tem uma relevância histórica baseada no fato de que era a primeira igreja que se via pelo caminho do Ipiranga, para quem vinha do sul. Isso não significa pouco, porque era o principal caminho dos tropeiros que se encaminhavam da região do ABC, muitas vezes oriundos da Baixada Santista. Essa posição estratégica fez com que a Boa Morte fosse a primeira igreja a bater seus sinos com a chegada das tropas de Dom Pedro após a proclamação da independência. Fica na Rua do Carmo, nº 202 – Sé.

Reitero. Não é preciso ser cristão, nem mesmo crer em Deus. Basta gostar de arte e história. Boa turnê a todos.

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