Conforme eu disse no último relato das
cartas náuticas, a visita a Estiva Gerbi foi só uma passagem. Ainda no mesmo
dia, pegamos o rumo do Circuito das Águas e chegamos na cidade de Socorro. O
primeiro objetivo foi encontrar um lugar de estadia. A ideia era fugir um pouco
do centro da cidade e pegar um hotelzinho mais retirado.
Surpresa negativa. Quase todas as pousadas
tinham preços de diária acima de mil dinheiros, o que estava muito além das
minhas pretensões/possibilidades. Com isso, fomos escafunchar algum lugarejo no
trecho urbano da cidade, o que foi muito melhor. Achamos um hotel pequeno, mas
honesto, que nos acomodou razoavelmente bem pelos dois dias que demos com as
costas no lugar, quase de frente à imagem da padroeira da cidade, Nossa Senhora
do Socorro (oooooooooh!!!).
Bom, Circuito das Águas implica, quase que
necessariamente, em água. Água mineral, no caso. A entrada da cidade tem uma
fonte aberta ao público em forma de moringa. Sim, em um calor saariano, é muito
bom encontrar água fresca e gratuita para beber e molhar a nuca. Mas o fluxo
estava bastante contido, por conta da seca em que nos encontrávamos, o que fez
formar uma bela fila.
A cidade é uma das maiores da região, e tem
algumas intervenções no mínimo curiosas. Nas suas ruas, havia uma série de
garrafas de Natal (!?) feitas de... garrafas! Garrafas PET, devidamente
reaproveitadas e iluminadas, muito embora o Natal já houvesse passado há mais de
um mês.
Mas o principal ponto turístico da cidade é
o Rio do Peixe. Ao longo de seu curso, há uma série de parques, pousadas e
pesqueiros que fornecem estrutura aos viajantes para que se ensopem à vontade e
com conforto, mediante alguma paga. Dentre todas, optamos pela Monjolinho, da
qual farei propaganda de graça. Logo na entrada, é possível ver uma cascatinha
artificial e a torre da tirolesa. Para um cara que tem medo até de subir na
escada, dá uma certa paura só de
olhar.
Nosso principal objetivo não era maior do que refrescar cabeça, tronco e membros em águas adequadamente frias. Alguns pontos do sítio são bastante mansos para os prudentes, bastando uma boa dose de confiança e cuidado para não escorregar nas lisíssimas pedras (o que ocorreu, diga-se de passagem).
Mas os melhores pontos são os mais incautos. Na foto abaixo, é possível observar que, querendo uma ducha, basta se enfiar em um dos inúmeros buracos distribuídos pelo trecho abrangido pelo estabelecimento. É um fosso onde só se fica com a cabeça de fora.
Entretanto, nem só de banho o turista viverá. A
região possui pedaços de declive bastante acentuado, o que faz com que a
prática de rafting seja uma das
cerejas do bolo. Pena que, sendo começo da semana, não houvesse nenhum
barqueiro ao dispor, mas os botes estavam lá.
Também é possível praticar arborismo. Certa
vez, escutei não sei onde que essa modalidade nada mais é do que brincar de
macaco. A diferença é que, para você se imiscuir entre galhos e folhas, te
paramentam com uma pequena armadura composta de capacete, cinto, luvas e te
obrigam a ir de tênis. A rampa de arborismo do lugar termina com uma bela
tirolesa de 80 metros. Aí embaixo, o acesso.
Como não poderia deixar de ser, há também
algumas trilhas para caminhadas a pé, algo mais de acordo com meus já não
poucos anos. Os administradores do parque fizeram algo interessante: deram o
nome de São Francisco a uma delas e foram distribuindo no percurso pequenas
placas com trechos de sua célebre oração...
... e que termina em uma pequena capela
rústica, onde fulgura um pequeno presépio sonorizado com a versão da famosa
oração interpretada por Raimundo Fagner.
Pelas margens do rio, havia dois elementos
culturais que, para quem é bem jovem, podem causar certa estranheza. Não
estavam lá gratuitamente. Eles dependem da força da água para se movimentar.
Um deles era uma roda d’água, engenho circular provido de pás que são movidas
pelo fluxo descendente do precioso líquido. Aqui, é possível observar o
princípio básico de funcionamento das gigantescas usinas hidrelétricas, mas que
foi muito usado em um passado não tão remoto para obter algum pouco de energia
elétrica em fazendas.
E também havia um elemento milenar, o
monjolo, que dá nome ao lugar. Um monjolo é uma máquina simples que funciona
utilizando o princípio da alavanca, assim: de um lado, temos um martelo,
preparado para socar o conteúdo de um recipiente. Do outro, e na mesma peça,
uma concavidade que será preenchida com água proveniente de um pequeno
escoadouro. Um eixo central dá mobilidade ao conjunto.
O escoadouro alimenta a concavidade, que,
tornando-se pesada, iça o martelo, como em uma gangorra. Ao chegar ao final do
curso, a caçamba de água se esvazia, e o lado do martelo passa a ser o mais
pesado, invertendo as posições. O martelo cai com força sobre o grão depositado
no pilão, fazendo com que o mesmo seja triturado. No caso, tínhamos milho.
E, com esses engenhos simples e eficazes, iniciamos
os pensamentos de hoje.
Sem dúvida alguma, esse tipo de peça é algo
que em nada surpreende homens da terra, como meus parentes sitiantes do Paraná
ou para o meu sogrão, que tem os pés vermelhos até hoje. Mas para a rapaziada a
coisa é relativamente surpreendente, porque a relação entre as diferentes
gerações com a tecnologia é algo completamente diverso.
Não há como dissociar a maneira como cada geração
se coloca diante da tecnologia com o seu contexto histórico. Até mesmo porque
os rumos que a História traça dialoga incessantemente com as buscas que a
Ciência faz. Se não houvesse as guerras, provavelmente o homem ainda não teria
visitado o espaço, porque é dos mísseis que nascem os foguetes. Também é por
causa da guerra que nasceu a necessidade de pulverizar os dados (a princípio
militares) por computadores do mundo inteiro, seguindo a premissa de que não se
guardam todos os ovos em um só cesto. É dessa necessidade que nasce a internet,
algo tão prosaico hoje em dia quanto um papel higiênico ou uma goma de mascar.
E se não fosse a internet, dificilmente teríamos facilidade para organizar
movimentos cada vez mais massivos e instantâneos, como ocorreu com os protestos
de junho de 2013 (leiam aqui) ou como ocorreu na Primavera Árabe, ou
ainda, mais tristemente, na maneira como o Estado Islâmico e o Boko Haram
divulgam suas atividades e recrutam novos simpatizantes. A História se
retroalimenta, como se vê.
Portanto, para entender como a geração
atual de jovens se relaciona com a tecnologia, é preciso dar um passo atrás e
compreender como a minha geração preparou o mundo que hoje é divisado por
rapazes e moçoilas.
No meu entender, a minha geração pegou uma
daquelas viradas da história em que aquilo que foi entregue por nossos pais já
não havia como ser repassado aos nossos filhos. Alguns paradigmas mudaram tão
rapidamente que nós nos perdemos. Imaginem, por exemplo, que, na década de 70, ter um telefone era um sonho distante. Lembro que na rua em que vivi a maior
parte da minha infância, uma rua de 700 metros, havia duas casas em que
sabíamos existir este aparelho. Era um objeto muito caro, e que demorava anos
para ser instalado. Quando o governo programava um plano de expansão
telefônica, as pessoas acampavam na porta das agências, como hoje se faz às
vésperas de um show de grupelhos como o One Direction e congêneres, e buscavam financiamentos
nos bancos. As pessoas ficavam impressionantemente felizes quando da
contemplação, associavam a chegada do telefone à intervenção divina, e faziam a
primeira ligação quase como um ritual de iniciação. Hoje em dia, isso é
absolutamente incompreensível. Os meninos e meninas saem da loja de celulares
já fazendo ligações, com a mesma importância que se dá ao fato de que hoje está
chovendo.
Minha geração nasceu em um momento
complicado. Nossos pais falavam muito mal do governo, talvez até mais do que se
faz hoje, mas era uma reclamação velada, feita em voz baixa. A polícia tinha
salvo-conduto para entrar na casa de quem quer que fosse, a qualquer hora e em
qualquer contexto, com a salvaguarda de dizer-se que a manutenção da ordem era
fundamental. Sim, é verdade que os índices de criminalidade eram muito mais
baixos, e isso é tudo. Ficamos jovens e nos devolveram um país quebrado. A
coisa era tão feia que já não sabíamos bem o que fazer, nem como nos
posicionar.
A geração dos meus pais era a geração da
nova era, do flower power, da paz e
amor; falavam coisas sobre liberdade e esperança de dias melhores. Já os vates
da minha geração diziam que seus heróis morreram de overdose, que não há
amanhã, que estamos sós e nenhum de nós sabe exatamente onde vai parar.
Enquanto a marca da geração dos meus pais era uma flor colocada nos cabelos, e
a dos meus filhos é a intimidade com a tecnologia que os interliga com o mundo
inteiro, o maior distintivo da minha é o Lexotan. O fantasma das indefinições
típicas de quem transitou por essa virada histórica e tecnológica não nos deixa
dormir. A psique da minha geração ficou esgarçada entre um mundo tecnológico
que não conseguimos acompanhar e um medo da morte cada vez mais cruel, porque
hoje temos medo já da velhice, aquele estado proibido que, metaforicamente,
chamamos de “melhor idade”. Tempos de propagandas onde os senhores dançam com a
agilidade de um renomado frevista. Tempos em que nem um pinto mole é mais
respeitado – há uma pílula azul que te proíbe isso. Tempos em que a serenidade
e experiência ficaram caretas. A velhice não é mais símbolo de sabedoria, não é
mais o esteio onde as novas gerações vão buscar seu porto seguro. Ela assumiu
de vez o seu lado pré-morte. Assumir-se velho virou a morte em vida.
Minha geração tem um problema seriíssimo.
Nunca antes na história da humanidade, o domínio da tecnologia esteve nas mãos
da geração mais jovem, como ocorre agora. Eu às vezes tenho dificuldades de dar
pena ao tentar manipular um celular, coisa que meus filhos e afilhados resolvem
em segundos. A cada vez que me vejo defronte a um sistema operacional novo,
chego a ter câimbras e azia. A molecada comemora. Então vem a crise existencial
de quem NUNCA deteve o domínio tecnológico. Quando éramos jovens, pedíamos
ajuda aos nossos pais para instalar um aparelho de som novo; e, como eu já
disse, hoje pedimos ajuda aos nossos filhos. Vivemos de muletas. Como alguém de
muletas pode servir de apoio?
Do jeito que eu estou falando, dá a
impressão de que avanços científicos e tecnologia de ponta são um malefício,
certo? Só que não. As benesses que a Ciência traz superam com vantagem larga os
revezes, e estes geralmente estão ligados à sanha de poder e lucro, tão
inerentes ao ser humano. Cito como exemplo a utilização maciça de hormônios em
frangos, para fazê-los crescer desproporcionalmente. Originalmente, a
sintetização destes hormônios tem um propósito muito mais nobre: permitir a um
indivíduo com deficiência na sua produção crescer normalmente, o que seria
impossível tempos atrás. A culpa, portanto, não está essencialmente na
tecnologia. É uma lâmina que serve para operar ou para matar, depende de quem
usa.
Mas como a tecnologia nos influencia e
transforma? Meu jovem amigo Jhonatan, autêntico Java Man que domina o lado intrínseco
da tecnologia, perguntou no meu metapost o que eu acho da mudança
comportamental das gerações, em especial diante das novas tecnologias, pergunta
que vem bem a calhar no tema que agora abordo. O Jhon faz parte daquilo que
chamamos de Geração Z, termo da nova Sociologia que enquadra aqueles que
nasceram após 1990. É uma geração de pessoas que já nasceu sob o domínio da
tecnologia digital, e que não luta por adaptações a um mundo onde o fenômeno da
comunicação instantânea já se encontra plenamente instaurado. Um importante escritor que traduz essa nova geração, na qual a virtualidade e a "digitalidade" é um fator identificador é o canadense Don Tapscott, que falou sobre como o mundo dos negócios será transformado a partir do momento em que estiver plenamente em suas mãos.
É o mundo da informação imediata, do conhecimento ao nosso dispor no momento em que quisermos/necessitarmos. A geração atual não tem limite de fontes, como eram as Barsas que utilizávamos em minha juventude. Isso é um benefício e um problema. É um benefício porque não necessitamos mais crer nessas poucas fontes, é possível achar pontos e contrapontos quase inesgotáveis; mas é um busílis quando nos defrontamos diante de excesso de informação. Imaginem a situação de uma criança solta em uma loja de doces, e que os pais licenciam a aquisição de um e apenas um. Qual escolher? Qual provar primeiro? Como decidir? A atual geração não tem o limite de telefonemas diários que nossas caras contas telefônicas nos disponibilizavam. A atual geração faz amigos no Facebook em segundos, coisa que as gerações anteriores precisavam cultivar por muitos anos. Eu, humilde senhorzinho que lida mal com a tecnologia, tenho 150 amigos no Facebook. Quantos desses amigos são físicos? Quantos deles eu vejo a menos de 6 meses? Os conceitos de amizade são muito diferentes entre a minha geração e a atual.
É o mundo da informação imediata, do conhecimento ao nosso dispor no momento em que quisermos/necessitarmos. A geração atual não tem limite de fontes, como eram as Barsas que utilizávamos em minha juventude. Isso é um benefício e um problema. É um benefício porque não necessitamos mais crer nessas poucas fontes, é possível achar pontos e contrapontos quase inesgotáveis; mas é um busílis quando nos defrontamos diante de excesso de informação. Imaginem a situação de uma criança solta em uma loja de doces, e que os pais licenciam a aquisição de um e apenas um. Qual escolher? Qual provar primeiro? Como decidir? A atual geração não tem o limite de telefonemas diários que nossas caras contas telefônicas nos disponibilizavam. A atual geração faz amigos no Facebook em segundos, coisa que as gerações anteriores precisavam cultivar por muitos anos. Eu, humilde senhorzinho que lida mal com a tecnologia, tenho 150 amigos no Facebook. Quantos desses amigos são físicos? Quantos deles eu vejo a menos de 6 meses? Os conceitos de amizade são muito diferentes entre a minha geração e a atual.
E é preciso ler Bauman. Já recomendei este
autor neste post, mas preciso fazê-lo de novo. Bauman é um dos mais
conscientes pensadores deste século e do anterior, um homem que conseguiu
interpretar as modificações das cadeias de relacionamentos. É um daqueles
filósofos que nos serve de âncora nos momentos em que achamos que vamos
enlouquecer. A sua tese de tempos líquidos dá a chave para compreender o desenrolar
do mundo ao nosso redor. Ele comenta que as redes sociais são tão atrativas
porque, além de criar amizades fáceis, também as desfaz com o mesmo sossego e
desamor. Já não há mais o toque e a presença que faz com que mantenhamos
cultivadas as raízes de um relacionamento profundo. Não é fácil remover o que
se plantou e se fixou por anos a fio, mas aquilo que está na superfície é
levado pelo vento. A ausência de presença física esgarça os laços, porque não
há necessidade de se enfrentar o trauma. Vivemos em um mundo líquido. Relações
sólidas estão ficando nos livros de História. Isso é ruim?
Nem sempre. A geração atual tem toda a
possibilidade de ser mais sincera, de não manter laços que se baseiam na
mentira e na piedade. Entregamos um mundo confuso e caótico, por conta de
nossas fraquezas e indefinições, e vemos uma geração que se defende dessa
forma: individualista, mas franca.
Entre a necessidade de sofrer no rompimento de uma relação e a superficialidade que não obriga a remoer a ausência do antigo amigo, opta-se pela segunda. O amigo que levamos para beber não é o mesmo para quem damos um like. Se não lhe apertamos as pleuras, também não lhe sentimos o bafo; se posso ler suas confidências bem pensadas no teclado, já não posso lhe servir de amparo na bebedeira. Posso entrar em contato a qualquer instante, com um celular touch screen que pode tirar fotos em alta definição. É um tanto estranho que vejamos jovens absortos em seus equipamentos, desejando freneticamente que seus contatos estivessem ali naquele momento, rodeado por amigos que fazem exatamente o mesmo, como se não estivessem ali. Há contradições, mas para nós, mais velhos. Esta é uma nova forma de naturalidade que só a tecnologia pode trazer.
Entre a necessidade de sofrer no rompimento de uma relação e a superficialidade que não obriga a remoer a ausência do antigo amigo, opta-se pela segunda. O amigo que levamos para beber não é o mesmo para quem damos um like. Se não lhe apertamos as pleuras, também não lhe sentimos o bafo; se posso ler suas confidências bem pensadas no teclado, já não posso lhe servir de amparo na bebedeira. Posso entrar em contato a qualquer instante, com um celular touch screen que pode tirar fotos em alta definição. É um tanto estranho que vejamos jovens absortos em seus equipamentos, desejando freneticamente que seus contatos estivessem ali naquele momento, rodeado por amigos que fazem exatamente o mesmo, como se não estivessem ali. Há contradições, mas para nós, mais velhos. Esta é uma nova forma de naturalidade que só a tecnologia pode trazer.
Não sabemos ainda o que o novo modelo de
interpessoalidade vai trazer, é muito cedo. Talvez tenhamos um mundo em que o
sentido de identidade seja tão deslocado ao indivíduo que os conceitos de
comunidade e de grupos sociais sejam praticamente extintos, mas também é
possível que aquilo que entendemos por sofrimento e dor de perda seja
tremendamente minimizado. Por enquanto, nada há a lamentar nem regozijar. Vamos
aguardar.
Recomendação de leitura:
Anteriormente, recomendei o livro Amor
Líquido. Vou agora expandir a análise recomendando o livro abaixo. É
rigorosamente fundamental.
BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
Para saber mais das teses de Don Tapscott, recomendo a seguinte leitura:
TAPSCOTT, Don. A hora da Geração Digital. São Paulo: AGIR, 2010.
TAPSCOTT, Don. A hora da Geração Digital. São Paulo: AGIR, 2010.
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