Marcadores

quinta-feira, 30 de julho de 2015

O Vale da Estranheza, seus gráficos e preconceitos

Olá!

Nossa dependência de dispositivos informatizados tem se tornado tão grande que um mero relâmpago mal caído já nos impede de trabalhar. É o que acontece vez por outra no meu trabalho. Tudo o que fazíamos em fichas, livros, formulários e mantínhamos em armários não existe mais, tudo está depositado em mídia magnética, gravadas em algum servidor remoto, às vezes em lugar incerto e não sabido. Só que já é necessário que consigamos nos comunicar com tais mídias. Quando isso não acontece, só resta lamentar. Em um desses episódios, aproveitei para fazer uma arrumação pouco costumeira em minha mesa, para delírio do pessoal da limpeza e incredulidade dos meus colegas de sala. Só que não é trabalho que exija concentração, e o papo acaba rolando solto.

Os assuntos são vários, mas em uma dessas ocasiões o povo se pegou a falar de videogames antigos, como o Pac-man, Super Mario e outros bricabraques desse estilo. Falou-se muita coisa, inclusive do costume de pessoas mais jovens baixarem emuladores de dinossauros como o Atari, e uma observação me chamou a atenção: alguém disse que não gostava de jogos muito próximos à realidade, como estes tem se tornado cada vez mais. Disse que dava uma certa “má impressão”.

Essa assertiva me pôs a filosofar e remexeu na minha memória, encontrando uma interessante tese da robótica da década de 70 – o Vale da Estranheza.



É uma constatação que foi inicialmente percebida por um cientista japonês chamado Masahiro Mori. Em sua área de especialidade, a construção de robôs, há uma busca em produzir autômatos que substituam os humanos no desempenho de certas tarefas. Alguns deles não se parecem em nada com homens, como é o caso dos equipamentos para desarmamento de bombas, que muito mais se parecem com carrinhos cheios de pinças. Mas alguns deles precisam, em alguma medida, assemelhar-se à anatomia humana, como no caso dos braços mecânicos.

Mori percebeu que, quando alguma coisa se aproximava dos parâmetros humanos, disparava-se um processo de aversão contra essa coisa. Esse processo se repetiu tantas vezes que o cientista resolveu desenvolver um gráfico para estudar o fenômeno. E ele notou que, conforme o robô aumentava a semelhança com um humano, maior o nível de empatia. Só que, quando o robô tornava-se muito parecido, mas ainda não igual a um homem, esse nível de empatia despencava para próximo de zero. Ao se aproximar ainda mais, tornando o protótipo cada vez mais indistinguível de um ser humano em carne e osso, a linha de empatia ascendente era retomada.


Achamos os robôs máquinas interessantes. De fato, é fascinante observar como eles realizam, com precisão nanométrica, tarefas repetitivas e precisas, substituindo com vantagem o ser humano. Mas, à medida que os robôs perdem o formato de máquinas e passam a adquirir uma feição mais e mais humanizada, começamos a nos assustar.

Parece pouco, e há quem vá pensar que se trata de sonora bobagem. Mas vamos interiorizar um pouco e pensar em um exemplo. Pensem em um bichinho, um filhote. Daqueles fofos. Vamos pensar em um porquinho, por exemplo. O aspecto de desproteção e dependência, aliado a uma coloração delicada, faz com que a grande maioria das pessoas sinta um intenso sentimento de ternura em relação a ele. Mas o que acontecerá se começarmos a imputar caracteres humanos a esse mesmo porquinho? Vamos fazê-lo lentamente. Imagine que este porquinho imaginário não tenha as habituais orelhas pontudas, mas arredondadas, com lóbulos. Bem, a princípio, talvez a condolência só aumente (“Oh! Tadinho... o porquinho tem um defeitinho!”). Vamos continuar: nosso suininho não é rosado, mas tem cor de pele como a nossa. Já olhamos para ele de um jeito esquisito. E agora vamos atacar o famoso focinho em forma de tomada, colocando um nariz daqueles de nenê (nada de narizes aquilinos, aduncos ou de palhaços). Certamente, a essa altura, já largamos o bicho e estamos longe dessa criatura do capeta. Ora, nada mais fizemos do que trazer algumas características humanas ao bicho. E percebemos que o vale não vale (argh!) só para autômatos, mas para qualquer coisa que se aproxime demais de um ser humano sem efetivamente ser. Por que a repulsa?

Penso que o Vale da Estranheza ocorre por conta dos inúmeros mecanismos de defesa que a seleção natural coligiu àquilo que é o ser humano hoje. De uma forma ou de outra, o humano fixa alguns padrões esperados para conseguir se por a salvo de uma série de perigos. Dessa forma, tudo o que pode causar algum tipo de conflito entre o que é humano e o que não é, cria uma espécie de prevenção. Tudo o que foge de um determinado padrão esperado causa um estranhamento, e tanto pior quando algo vai se tornando mais e mais capaz de enganar.

Veja que se trata de uma reação instintiva, mas que mantém uma certa pressão sobre a psique. O objeto que cai nesse vale permanece incômodo, até que haja um hábito e um convencimento de que ele não pode causar mal. Talvez tenhamos levado centenas de anos para nos acostumar com outras presenças incômodas, e, como bem sabemos, os mecanismos naturais de adaptação ao meio levam muito tempo para modificar nossos corpos e  comportamentos. E, mesmo assim, mantém-se deixando resquícios.

Porém, do meu ponto de vista, o Vale da Estranheza ajuda, e muito, a explicar a formação de muitos preconceitos. Porque, no meu entender, não se despenca no vale apenas quando existe uma aproximação daquilo que temos como padrão, mas também no movimento inverso. O Vale da Estranheza também se reproduz no afastamento.

O exemplo mais óbvio está na questão da homofobia. Para quem não gosta de homoafetivos, o transexual é uma espécie de pastiche feminino. Já se afastou de sua condição de homem, porque tem trejeitos próprios, melodia feminina na voz, algumas vezes tem implantações de silicone e outras intervenções cirúrgicas para fazer-se o mais semelhante possível a uma mulher. Mas também não é uma mulher: a voz é afinada forçadamente, o corpo tem as proporções próprias de um ser masculino, o rosto tem as marcas típicas de quem faz barba, entre outras coisas. O transexual está no vale da estranheza porque se afasta de um homem e se aproxima de uma mulher; de um deixa de ser, do outro, não chega a ser – e esta pode ser uma hipótese razoável para adicionar componentes para explicar a fobia. A não ser que a transformação torne a transexual tão semelhante a uma mulher que ambas se tornem indistinguíveis. Neste caso, o vale é escalado e a sortuda acaba se tornando objeto de curiosidade e/ou desejo pela grande massa, como foi o caso da Roberta Close na década de 80.

Mas há uma condição curiosa. Em uma situação do dia-a-dia, se alguém homofóbico for defrontado a dois homossexuais, sendo um travestido e outro não, certamente achará menos repugnante o que se veste como um homem, talvez pelo fato de que este não expõe a sua “vergonha” e mantém sua peculiaridade ao campo particular (pincelei algo sobre isso neste texto). Porém, se ambos forem expostos na situação que os define, ou seja, em plena execução do ato sexual, na maioria das vezes a repugnância se inverte. O homossexual que mantem sua forma visual masculina ainda não se afastou o suficiente para o lado da feminilidade, mas já não pode ser considerado um macho. O transformado, neste sentido, já está em um ponto mais longínquo, já ultrapassou os limites do vale, já se desassemelhou de tal forma do padrão que acaba causando menos fobia (eu disse MENOS fobia, e não fobia alguma). A mesma mecânica se aplica à homossexualidade feminina, mas em uma proporção bem menor, porque os homens são sacanas – alguns gostam, e muito, de meninas lésbicas (menos concorrência? Talvez) e as mulheres parecem não se incomodar tanto com a questão – selinhos são bastante comuns hoje em dia. Nesse sentido, o vale da estranheza não ajuda tanto a explicar a questão da aversão, porque parece ser superado por uma estrutura sexista da sociedade.

Vou dar outros exemplos, mais caseiros e inocentes, de lugares onde há estranhamentos. Sempre achei que a maior dificuldade dos pintores e escultores não está na reprodução dos rostos e dos corpos, mas das mãos e dos pés. Vou dar um confronto para ficar mais claro. Na obra “O nascimento da Vênus”, de Sandro Botticelli, tudo está no seu mais perfeito lugar, tornando a obra memorável.


No entanto, se olharmos os pés da Vênus isoladamente, teremos a sensação de se tratar de uma pata de bicho, ou, no mínimo, um membro distorcido, causando certo embrulho no estômago.


Já a obra abaixo é “Marabá”, de Rodolfo Amoedo Não tem um centésimo da fama da tela anterior, até porque retrata uma índia que em nada parece uma índia.


Quando olhamos para os seus pés, percebemos que eles são muito bem desenhados, o que retira a sensação de mal estar obtida anteriormente.

 
Qual causa mais repulsa? Certamente o primeiro, muito embora a criatividade de Botticelli faça com que sua obra supere a do brasileiro, que, apesar de muito bem feita, carece de elementos que vão além da precisão técnica.

Percebo o mesmo problema em desenhos animados ou em jogos de computador, onde às vezes o rosto é mais bem conseguido do que as extremidades. Talvez este seja mais um fator que influencie no formato mais corriqueiro de personagens: animais antropomorfizados (o que aumenta a simpatia por eles) ou homens já devidamente desenhados em um processo inverso, de afastar-lhes o suficiente da realidade, dado que é muito difícil obter verossimilhança suficiente para lhes tirar do vale da estranheza. Mãos e pés são problemáticos porque são riquíssimos em movimentos e posições, e os models sheets dos desenhistas precisariam ser praticamente infinitos para abarcar todas as possibilidades, e aí teríamos o ponto que conduz à estranheza.

Há ainda mais algumas aplicações à teoria do vale da estranheza, como a questão de chamar alguém de macaco, nosso irmão de gênero, tão semelhante a nós. Poucas comparações com animais ofendem tanto. Chamar alguém de gato pode ter sentido pejorativo, como a associação típica feita deste simpático bichinho com ladrões, mas também pode significar uma pessoa bela; de cachorro, pode ser alguém ordinário, mas também fiel; de girafa, alguém abelhudo, mas também alto. Mas é difícil encontrar algum qualitativo positivo para macaco (talvez ágil). Creio que somente para o burro haja injustiça semelhante, porque o macaco é um dos animais mais inteligentes que existem e o burro não tem nada de burro. O problema com o macaco, pela tese da estranheza, é que ele se parece demais com o humano: gregário, cabeça redonda, olhos frontais, membros longos, habilidade manual, donos de um quase raciocínio que lhes permite ter sentimentos quase que exclusivos do homem.

Outra questão se dá quando uma pessoa sofre uma doença que lhe deforma o rosto, como é o caso dos homens-elefante, ou sofre um acidente que lhe descaracteriza, ou quando faz uma cirurgia plástica que não dá muito certo, como é o caso daquelas reformas completas que deixam a pessoa com cara de borracha. Também aí lamentamos e sentimos certo enjoo. Vejam o exemplo da recente “guerra dos Kens” – dois rapazes que disputavam a primazia de serem conhecidos como o boneco Ken brasileiro (um deles faleceu recentemente). Desculpem-me ambos, mas são, para mim, a principal comprovação da tese de Mori, estendida para além dos limites robóticos. O boneco Ken é muito bem feito, e é quase que o ponto máximo da semelhança possível entre um ser humano e o produto de um molde. Mas, uma vez feita a transposição, percebe-se que ainda falta bastante. Não há expressão facial: rictos, risadas, muxoxos, tudo parece imóvel. Sem contar que a pessoa que faz transformações tão radicais provavelmente estão assaz insatisfeitas com alguma coisa em sua vida – ou não gosta da sua aparência em si ou transfere alguma frustração para a mesma, e ao fazer a plástica tenta corrigir ou compensar este algo errado no seu interior. Chegar nessa pessoa e dizer que não ficou bom... Olha, não é legal. Pode fazê-la muito mal. São as utilidades da mentira.

Bem, o Vale da Estranheza ainda não tem escopo científico completamente definido, e, portanto, ainda passa pelos crivos e pesquisas da Filosofia da Mente. E também não há um padrão na reação das pessoas - umas reagem muito fortemente, outras mal ligam. Mas ele é real, apesar de não haver ainda um padrão completamente estabelecido. De qualquer jeito, não há como fazer passar batida a maneira com que a evolução trabalhou a cabeça humana para que a espécie sobrevivesse. Muita gente acha que o vale existe porque faz lembrar cadáveres, e o medo maior do homem é a morte. Mas não tenho certeza disso. Parece mais crível entender que o ser humano sempre precisou reconhecer na espécie diferente uma ameaça, e a mais perigosa de todas é aquela que parece igual sem ser. É óbvio que estes conceitos são atávicos, e a racionalidade que surgiu concomitantemente a eles precisa prevalecer sobre aquilo que trazem de prejudicial, como a estranheza que vira preconceito.

Recomendação de leitura:

Não se trata do filme (que ainda não vi), mas do livro. A obra de Isaac Asimov trata de maneira quase inédita da questão dos robôs. O livro abaixo é uma coletânea de contos entrelaçados que, mais do que narrar aventuras, faz interessantíssimas colocações filosóficas, especialmente no campo da ética, do que deveria se tornar o campo de relacionamento entre humanos e inteligências artificiais. É neste livro que nascem as três Leis da Robótica, um código de princípios que parametrizariam a conduta dos autômatos, cada vez mais evoluídos, frente aos humanos. Reproduzo-os abaixo, a título de curiosidade:

1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal. 

2ª Lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei. 

3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.

Mas leiam o livro. É muitíssimo bom.

ASIMOV, Isaac. Eu, robô. São Paulo: Aleph, 2014.

Também recomendo um canal do YouTube chamado Peixe Babel. É um espaço onde são dadas explicações bem básicas sobre robótica, o que é bastante útil para alguém como eu, que manja muito pouco da área. Achei bem interessante.


 Agradeço à Rê pelo uso da foto e da estátua.

Nenhum comentário:

Postar um comentário