Olá!
Nossa dependência de dispositivos informatizados tem se
tornado tão grande que um mero relâmpago mal caído já nos impede de trabalhar.
É o que acontece vez por outra no meu trabalho. Tudo o que fazíamos em fichas,
livros, formulários e mantínhamos em armários não existe mais, tudo está
depositado em mídia magnética, gravadas em algum servidor remoto, às vezes em
lugar incerto e não sabido. Só que já é necessário que consigamos nos comunicar
com tais mídias. Quando isso não acontece, só resta lamentar. Em um desses
episódios, aproveitei para fazer uma arrumação pouco costumeira em minha mesa,
para delírio do pessoal da limpeza e incredulidade dos meus colegas de sala. Só
que não é trabalho que exija concentração, e o papo acaba rolando solto.
Os assuntos são vários, mas em uma dessas ocasiões o povo se
pegou a falar de videogames antigos, como o Pac-man, Super Mario e outros
bricabraques desse estilo. Falou-se muita coisa, inclusive do costume de
pessoas mais jovens baixarem emuladores de dinossauros como o Atari, e uma
observação me chamou a atenção: alguém disse que não gostava de jogos muito
próximos à realidade, como estes tem se tornado cada vez mais. Disse que dava
uma certa “má impressão”.
Essa assertiva me pôs a filosofar e remexeu na minha memória,
encontrando uma interessante tese da robótica da década de 70 – o Vale da
Estranheza.
É uma constatação que foi inicialmente percebida por um cientista
japonês chamado Masahiro Mori. Em sua área de especialidade, a construção de
robôs, há uma busca em produzir autômatos que substituam os humanos no
desempenho de certas tarefas. Alguns deles não se parecem em nada com homens,
como é o caso dos equipamentos para desarmamento de bombas, que muito mais se
parecem com carrinhos cheios de pinças. Mas alguns deles precisam, em alguma
medida, assemelhar-se à anatomia humana, como no caso dos braços mecânicos.
Mori percebeu que, quando alguma coisa se aproximava dos
parâmetros humanos, disparava-se um processo de aversão contra essa coisa. Esse
processo se repetiu tantas vezes que o cientista resolveu desenvolver um
gráfico para estudar o fenômeno. E ele notou que, conforme o robô aumentava a
semelhança com um humano, maior o nível de empatia. Só que, quando o robô
tornava-se muito parecido, mas ainda não igual a um homem, esse nível de
empatia despencava para próximo de zero. Ao se aproximar ainda mais, tornando o
protótipo cada vez mais indistinguível de um ser humano em carne e osso, a
linha de empatia ascendente era retomada.
Achamos os robôs máquinas interessantes. De fato, é
fascinante observar como eles realizam, com precisão nanométrica, tarefas
repetitivas e precisas, substituindo com vantagem o ser humano. Mas, à medida
que os robôs perdem o formato de máquinas e passam a adquirir uma feição mais e
mais humanizada, começamos a nos assustar.
Parece pouco, e há quem vá pensar que se trata de sonora
bobagem. Mas vamos interiorizar um pouco e pensar em um exemplo. Pensem em um
bichinho, um filhote. Daqueles fofos. Vamos pensar em um porquinho, por
exemplo. O aspecto de desproteção e dependência, aliado a uma coloração
delicada, faz com que a grande maioria das pessoas sinta um intenso sentimento
de ternura em relação a ele. Mas o que acontecerá se começarmos a imputar
caracteres humanos a esse mesmo porquinho? Vamos fazê-lo lentamente. Imagine
que este porquinho imaginário não tenha as habituais orelhas pontudas, mas
arredondadas, com lóbulos. Bem, a princípio, talvez a condolência só aumente
(“Oh! Tadinho... o porquinho tem um defeitinho!”). Vamos continuar: nosso
suininho não é rosado, mas tem cor de pele como a nossa. Já olhamos para ele de
um jeito esquisito. E agora vamos atacar o famoso focinho em forma de tomada,
colocando um nariz daqueles de nenê (nada de narizes aquilinos, aduncos ou de
palhaços). Certamente, a essa altura, já largamos o bicho e estamos longe dessa
criatura do capeta. Ora, nada mais fizemos do que trazer algumas
características humanas ao bicho. E percebemos que o vale não vale (argh!) só
para autômatos, mas para qualquer coisa que se aproxime demais de um ser humano
sem efetivamente ser. Por que a repulsa?
Penso que o Vale da Estranheza ocorre por conta dos inúmeros
mecanismos de defesa que a seleção natural coligiu àquilo que é o ser humano
hoje. De uma forma ou de outra, o humano fixa alguns padrões esperados para
conseguir se por a salvo de uma série de perigos. Dessa forma, tudo o que pode
causar algum tipo de conflito entre o que é humano e o que não é, cria uma
espécie de prevenção. Tudo o que foge de um determinado padrão esperado causa
um estranhamento, e tanto pior quando algo vai se tornando mais e mais capaz de
enganar.
Veja que se trata de uma reação instintiva, mas que mantém
uma certa pressão sobre a psique. O objeto que cai nesse vale permanece
incômodo, até que haja um hábito e um convencimento de que ele não pode causar
mal. Talvez tenhamos levado centenas de anos para nos acostumar com outras
presenças incômodas, e, como bem sabemos, os mecanismos naturais de adaptação
ao meio levam muito tempo para modificar nossos corpos e comportamentos. E, mesmo assim, mantém-se
deixando resquícios.
Porém, do meu ponto de vista, o Vale da Estranheza ajuda, e
muito, a explicar a formação de muitos preconceitos. Porque, no meu entender,
não se despenca no vale apenas quando existe uma aproximação daquilo que temos
como padrão, mas também no movimento inverso. O Vale da Estranheza também se
reproduz no afastamento.
O exemplo mais óbvio está na questão da homofobia. Para quem
não gosta de homoafetivos, o transexual é uma espécie de pastiche feminino. Já
se afastou de sua condição de homem, porque tem trejeitos próprios, melodia
feminina na voz, algumas vezes tem implantações de silicone e outras
intervenções cirúrgicas para fazer-se o mais semelhante possível a uma mulher. Mas
também não é uma mulher: a voz é afinada forçadamente, o corpo tem as
proporções próprias de um ser masculino, o rosto tem as marcas típicas de quem
faz barba, entre outras coisas. O transexual está no vale da estranheza porque
se afasta de um homem e se aproxima de uma mulher; de um deixa de ser, do
outro, não chega a ser – e esta pode ser uma hipótese razoável para adicionar
componentes para explicar a fobia. A não ser que a transformação torne a
transexual tão semelhante a uma mulher que ambas se tornem indistinguíveis.
Neste caso, o vale é escalado e a sortuda acaba se tornando objeto de
curiosidade e/ou desejo pela grande massa, como foi o caso da Roberta Close na
década de 80.
Mas há uma condição curiosa. Em uma situação do dia-a-dia,
se alguém homofóbico for defrontado a dois homossexuais, sendo um travestido e
outro não, certamente achará menos repugnante o que se veste como um homem,
talvez pelo fato de que este não expõe a sua “vergonha” e mantém sua
peculiaridade ao campo particular (pincelei algo sobre isso neste texto).
Porém, se ambos forem expostos na situação que os define, ou seja, em plena
execução do ato sexual, na maioria das vezes a repugnância se inverte. O
homossexual que mantem sua forma visual masculina ainda não se afastou o
suficiente para o lado da feminilidade, mas já não pode ser considerado um
macho. O transformado, neste sentido, já está em um ponto mais longínquo, já
ultrapassou os limites do vale, já se desassemelhou de tal forma do padrão que
acaba causando menos fobia (eu disse MENOS fobia, e não fobia alguma). A mesma
mecânica se aplica à homossexualidade feminina, mas em uma proporção bem menor,
porque os homens são sacanas – alguns gostam, e muito, de meninas lésbicas
(menos concorrência? Talvez) e as mulheres parecem não se incomodar tanto com a
questão – selinhos são bastante comuns hoje em dia. Nesse sentido, o vale da
estranheza não ajuda tanto a explicar a questão da aversão, porque parece ser
superado por uma estrutura sexista da sociedade.
Vou dar outros exemplos, mais caseiros e inocentes, de
lugares onde há estranhamentos. Sempre achei que a maior dificuldade dos
pintores e escultores não está na reprodução dos rostos e dos corpos, mas das
mãos e dos pés. Vou dar um confronto para ficar mais claro. Na obra “O
nascimento da Vênus”, de Sandro Botticelli, tudo está no seu mais perfeito
lugar, tornando a obra memorável.
No entanto, se olharmos os pés da Vênus isoladamente,
teremos a sensação de se tratar de uma pata de bicho, ou, no mínimo, um membro
distorcido, causando certo embrulho no estômago.
Qual causa mais repulsa? Certamente o primeiro, muito embora
a criatividade de Botticelli faça com que sua obra supere a do brasileiro, que,
apesar de muito bem feita, carece de elementos que vão além da precisão
técnica.
Percebo o mesmo problema em desenhos animados ou em jogos de
computador, onde às vezes o rosto é mais bem conseguido do que as extremidades.
Talvez este seja mais um fator que influencie no formato mais corriqueiro de
personagens: animais antropomorfizados (o que aumenta a simpatia por eles) ou
homens já devidamente desenhados em um processo inverso, de afastar-lhes o
suficiente da realidade, dado que é muito difícil obter verossimilhança
suficiente para lhes tirar do vale da estranheza. Mãos e pés são problemáticos
porque são riquíssimos em movimentos e posições, e os models sheets dos desenhistas precisariam ser praticamente
infinitos para abarcar todas as possibilidades, e aí teríamos o ponto que
conduz à estranheza.
Há ainda mais algumas aplicações à teoria do vale da
estranheza, como a questão de chamar alguém de macaco, nosso irmão de gênero,
tão semelhante a nós. Poucas comparações com animais ofendem tanto. Chamar
alguém de gato pode ter sentido pejorativo, como a associação típica feita
deste simpático bichinho com ladrões, mas também pode significar uma pessoa bela;
de cachorro, pode ser alguém ordinário, mas também fiel; de girafa, alguém
abelhudo, mas também alto. Mas é difícil encontrar algum qualitativo positivo
para macaco (talvez ágil). Creio que somente para o burro haja injustiça
semelhante, porque o macaco é um dos animais mais inteligentes que existem e o
burro não tem nada de burro. O problema com o macaco, pela tese da estranheza,
é que ele se parece demais com o humano: gregário, cabeça redonda, olhos
frontais, membros longos, habilidade manual, donos de um quase raciocínio que
lhes permite ter sentimentos quase que exclusivos do homem.
Outra questão se dá quando uma pessoa sofre uma doença que
lhe deforma o rosto, como é o caso dos homens-elefante, ou sofre um acidente
que lhe descaracteriza, ou quando faz uma cirurgia plástica que não dá muito
certo, como é o caso daquelas reformas completas que deixam a pessoa com cara
de borracha. Também aí lamentamos e sentimos certo enjoo. Vejam o exemplo da
recente “guerra dos Kens” – dois rapazes que disputavam a primazia de
serem conhecidos como o boneco Ken brasileiro (um deles faleceu recentemente).
Desculpem-me ambos, mas são, para mim, a principal comprovação da tese de Mori,
estendida para além dos limites robóticos. O boneco Ken é muito bem feito, e é
quase que o ponto máximo da semelhança possível entre um ser humano e o produto
de um molde. Mas, uma vez feita a transposição, percebe-se que ainda falta
bastante. Não há expressão facial: rictos, risadas, muxoxos, tudo parece
imóvel. Sem contar que a pessoa que faz transformações tão radicais
provavelmente estão assaz insatisfeitas com alguma coisa em sua vida – ou não
gosta da sua aparência em si ou transfere alguma frustração para a mesma, e ao
fazer a plástica tenta corrigir ou compensar este algo errado no seu interior.
Chegar nessa pessoa e dizer que não ficou bom... Olha, não é legal. Pode
fazê-la muito mal. São as utilidades da mentira.
Bem, o Vale da Estranheza ainda não tem escopo científico
completamente definido, e, portanto, ainda passa pelos crivos e pesquisas da
Filosofia da Mente. E também não há um padrão na reação das pessoas - umas reagem muito fortemente, outras mal ligam. Mas ele é real, apesar de não haver ainda um padrão
completamente estabelecido. De qualquer jeito, não há como fazer passar batida
a maneira com que a evolução trabalhou a cabeça humana para que a espécie
sobrevivesse. Muita gente acha que o vale existe porque faz lembrar cadáveres,
e o medo maior do homem é a morte. Mas não tenho certeza disso. Parece mais
crível entender que o ser humano sempre precisou reconhecer na espécie diferente
uma ameaça, e a mais perigosa de todas é aquela que parece igual sem ser. É
óbvio que estes conceitos são atávicos, e a racionalidade que surgiu
concomitantemente a eles precisa prevalecer sobre aquilo que trazem de
prejudicial, como a estranheza que vira preconceito.
Recomendação de leitura:
Não se trata do filme (que ainda não vi), mas do livro. A obra de Isaac Asimov
trata de maneira quase inédita da questão dos robôs. O livro abaixo é uma
coletânea de contos entrelaçados que, mais do que narrar aventuras, faz
interessantíssimas colocações filosóficas, especialmente no campo da ética, do
que deveria se tornar o campo de relacionamento entre humanos e inteligências
artificiais. É neste livro que nascem as três Leis da Robótica, um código de
princípios que parametrizariam a conduta dos autômatos, cada vez mais
evoluídos, frente aos humanos. Reproduzo-os abaixo, a título de curiosidade:
1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação,
permitir que um ser humano sofra algum mal.
2ª Lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas
por seres humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a
Primeira Lei.
3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde
que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.
Mas leiam o livro. É muitíssimo bom.
ASIMOV, Isaac. Eu,
robô. São Paulo: Aleph, 2014.
Também recomendo um canal do YouTube chamado Peixe Babel. É
um espaço onde são dadas explicações bem básicas sobre robótica, o que é
bastante útil para alguém como eu, que manja muito pouco da área. Achei bem
interessante.
Agradeço à Rê pelo uso da foto e da estátua.
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