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sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 6º tomo - O tu quoque (apelo à hipocrisia)

Olá!

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Vou contar uma historinha – grande novidade – que aconteceu quando eu trabalhava em uma metalúrgica na minha já longínqua juventude. A tal empresa era uma então bem sucedida fabricante de máquinas para trabalhar metais (prensas, guilhotinas, tesouras mecânicas, calandras, laminadores) e possuía, na época, mais de 500 funcionários. A legislação obrigava, portanto, a presença de um médico especialista em medicina do trabalho, que no nosso caso, tratava-se do Dr. Yosuke, chamado de “Doutor Hiroshi” pelo corpo popular. Figura bastante peculiar, o Dr. Hiroshi tinha métodos razoavelmente inesperados de clinicar. Em alguns casos, uma cantilena bastante canastrona era o suficiente para que um chorão ocasional tivesse seu atraso abonado. Em outros, febres de 40 graus eram insuficientes para acometer a piedade de nosso caro oriental.

Tá bom, vou prolongar e contar um fato que me envolve, junto à intercessão do já citado médico. A coisa toda é a seguinte: tinha nesta mesma empresa uma telefonista chamada Vânia, que aumentava sua renda vendendo toda sorte de badulaques, contando aí potes de doce de leite, daqueles de um quilo. Como o preço era razoável e a garota era gente boa, comprei dois vidros: um contendo doce de leite puro, outro misturado com banana.

Chegando em casa, após trabalho e escola, abri um dos potes para constatar a qualidade. Meu pai, era coisa de primeira linha! Ponto correto, açúcar na quantidade exata, consistência perfeita... Imprudente e inexperiente, consumi UM VIDRO INTEIRO, de uma só vez. Não, não foi um vidro inteiro, foram dois meios vidros, o que dá na mesma.

O resultado foi uma diarreia histórica, daquelas de fazer suspeitar contaminações pelo ebola. Só que esta foi se desenrolar apenas na manhã do dia seguinte, pouco depois do início do expediente. Para vocês terem uma ideia, ganhei o agradável apelido de “Chafariz” neste dia, por motivos óbvios e para desprazer não só meu, mas do Esfola Gato, faxineiro da casa, e que teve de se encarregar dos meus resíduos (peço desculpas, não lembro seu nome de batismo).

Acreditem se quiser, mas precisei passar QUATRO vezes no Dr. Hiroshi para que ele acreditasse em mim e me liberasse. Recomendou primeiramente muita água, depois um comprimido de Colestase, depois falou que eu precisava ter paciência. Na última, inclusive acompanhado do chefe do RH, meteu seu jamegão no atestado e me dispensou. Precisei pegar um táxi para chegar em casa a tempo da próxima sessão... Blergh!

Tudo isso colocado, para perfeita compreensão do naipe de nosso médico, lembro-me do dia em que fui procurá-lo por estar acometido de uma gripe muito forte. Auscultou meu peito, deu umas porradas nas minhas costas (ele adorava fazer isso), passou um comprimido qualquer e me recomendou muito seriamente que eu parasse de fumar.

Acontece que nosso sui generis doutor era fumante contumaz, daqueles de acender um cigarro na guimba do outro. Sua pobre enfermeira, aliás, era uma das maiores fumantes passivas que já conheci, porque seu consultório era pequeno e abafado, gerando uma névoa de fazer inveja à neblina da interligação Anchieta-Imigrantes na visibilidade e a qualquer casa de bilhar clandestina no cheiro. Como uma maria-fumaça dessas pode aconselhar alguém a parar de fumar?

Pode, e deve. Suas atitudes não tem nada a ver com seu conhecimento. Ele é um médico, conhece os efeitos do vício, bem como os malefícios à saúde, e deve prescrever a abstinência aos seus pacientes, ainda que ele mesmo pratique a ação que recomenda evitar. Não é uma atitude hipócrita, como pode parecer a princípio.

Combater o argumento do Dr. Hiroshi desta forma é apelar para a hipocrisia, com uma falácia informal conhecida pelo nome técnico de Tu Quoque (você também, em latim). Este nome é utilizado por causa do famoso fato histórico da morte de Júlio César, no senado de Roma. Como se sabe, um grupo de senadores conspirou para matar o imperador, o que foi levado a cabo. Dentre seus executores, encontrava-se Brutus, a quem Júlio César nutria um sentimento de confiança paternal. Ao ver dentre os traidores o seu amado pupilo, pronunciou a frase que se imortalizou no tempo: “Tu quoque, Brutus, fili mi?”. Em bom português: “Até tu, Brutus, meu filho?”. Desta forma, Brutus ficou marcado como um sinônimo de hipocrisia.

É uma falácia de dispersão, aquelas em que desviamos o foco do argumento ao invés de combatê-lo por conta de algum defeito lógico ou factual.


Todos nós já tomamos dedo na cara, acusando-nos de hipócritas

Na verdade, esta falácia é um tipo especial do argumentum ad hominem, já analisado neste espaço (veja a lista completa de posts já publicados). No caso anterior, acusamos o adversário de algum defeito pessoal. Neste caso, diz-se que o interlocutor é incoerente por ele mesmo praticar aquilo que combate, ou não praticar aquilo que defende. Em resumo, é uma síntese daquela famosa frase: “Faça o que eu digo, não faça o que eu faço”. 

Um exemplo terrivelmente frequente se dá no âmbito das discussões entre os defensores dos direitos dos animais e seus detratores. Quando alguém levanta a questão das pesquisas realizadas com a utilização de animais, colocando-se em posição contrária, imediatamente temos a seguinte reação:

“Na primeira dor de cabeça, já engole uma Aspirina... Como pode ser contra a utilização de animais em pesquisa?”.

Onde há erros nesse argumento? Em primeiro lugar, temos uma simplificação que seria ingênua, se não fosse a acusação imiscuída em si. E, principalmente, a resposta não argumenta sobre a afirmação feita. Pode-se dizer uma série de coisas: que os testes são obrigatórios por lei, que são necessários para a correta condução da pesquisa, que a vida de um animal não tem o mesmo valor que a de um ser humano, que as alternativas de pesquisas são insuficientes e ineficientes, uma série de coisas. Desta forma, concordando-se ou não, temos uma contra-argumentação. Mas dizer que o interlocutor é hipócrita tira todo o foco da discussão.

(Em tempo, estou na fase inicial de preparação de uma postagem onde me posiciono com relação às pesquisas científicas que envolvem a utilização de animais. As colocações do presente texto são meramente ilustrativas, por constituírem um bom exemplo).

Mas o tu quoque é sempre falaz? Não necessariamente. A primeira observação é que mesmo um mentiroso pertinaz pode ter seus momentos de veracidade, mas me parece evidente que os critérios para avaliar suas razões devam ser mais rigorosos. Ou seja, é preciso ligar o “desconfiômetro” para o argumento de alguém que não pratica o que diz, mas sem se esquecer de que isso não é o suficiente para invalidar o argumento. A chave para entender esse tipo de falácia é que o argumento não carece de lógica, mas de ética. Se alguém disser que não gosta de bebidas alcoólicas no exato instante em que faz um brinde, há algo errado não só com a pessoa, mas com a própria declaração, que é evidentemente falsa.

Recomendação de leitura:

Não é propriamente um texto em que se identifiquem apelos à hipocrisia com facilidade (apesar de existir algo semelhante), mas é uma bela peça literária e que traduz a raiva e indignação do escritor francês Émile Zola, principal escritor da escola naturalista, com o desenrolar do chamado “caso Dreyfus”. Rapidamente: um oficial francês de origem judaica, Alfred Dreyfus, é acusado de traição pela suprema corte, em um processo recheado de vícios e inconsistências, conduzido secretamente, e que resultou na sua condenação. Pelo que se pode concluir, o elemento motivador foi a xenofobia e o racismo. Um segundo julgamento foi realizado, tendo em vista um conjunto probatório da inocência exuberante, mas a decisão foi mantida, o que levou Zola a redigir um artigo denominado J’accuse, que foi publicado na primeira página do jornal L’aurore, e que se tornou célebre por seu conteúdo mordaz e iracundo. Tal artigo causou problemas a Zola, o que ele mesmo já previa no próprio texto. Vale a pena ler, é curtinho e fácil de achar. Está contido no livro abaixo:


ZOLA, Émile; BARBOSA, Rui. Eu acuso! e O Processo do Capitão Dreyfus. Organização e tradução de Ricardo Lísias. São Paulo: Hedra, 2007.

Agradeço à Natália e ao Santiago por me deixarem utilizar a fotografia do dedo na cara.

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