Finalmente de volta. Para quem está servido, três destas semanas de ausência se deram com coisinhas simples, como perda de voz, inflamação de faringe, febre e outras pequenas bobagens. Mas como o mundo gira, temos a oportunidade de nosso eterno retorno. Sendo assim, vamos lá!
No meio do mês de junho, foi-me sugerido que fizesse uma análise do ponto de vista filosófico sobre a Parada do Orgulho LGBTT, mais conhecida como Parada Gay. Demorei um pouco prá tratar do assunto, mas finalmente vou a ele.
Em primeiro lugar, é
preciso raciocinar no tamanho do evento. Já há alguns
anos, algo que era um colorido e insólito encontro de modestas dimensões
transformou-se no movimento que mais atrai gente na cidade de São
Paulo, devidamente protegido por tropas e mais tropas policiais,
por conta da grande possibilidade de ocorrerem ataques
homofóbicos. A intenção é destacar as causas da comunidade homoafetiva, que costuma enfrentar algumas resistências em suas reivindicações.
É fácil
perceber como essa questão é perturbadora ao observar
as três maiores torcidas de nossa cidade. Por anos a fio, os
palmeirenses resistiram ao apelido que lhes foi incutido pelos
rivais: porcos. O mesmo se deu com a torcida do Corinthians –
maloqueiro, sofredor, bandido – mas, ao fim, também foi
absorvido e usado em proveito próprio. Tanto é verdade
que uma de suas principais torcidas organizadas chama-se Pavilhão
9, que para quem não sabe ou não lembra era a ala do
presídio do Carandiru onde estavam depositados os detentos
mais perigosos. Já a pecha que tentam colar no torcedor
são-paulino não é aceita de jeito nenhum – o
famoso Bambi, o homossexual. Até mesmo um jogador que foi
“acusado” de ser gay foi repudiado pela torcida. Vejam a que
ponto a coisa chega: é possível a aceitação
da sujeira, da imundície, do crime e do mau-caráter.
Tudo isso é mais aceitável do que a homoafetividade.
As fontes da
resistência à homoafetividade são bastante
remotas e difusas. Muito pode ser explicado pelo machismo típico
das nossas sociedades, que se não consegue aceitar
confortavelmente a ascensão das mulheres, que se dirá
daquilo que é considerado um pastiches delas? Cheguei a
mencionar esta questão ao abordar o BBB, mas é
necessário ir além.
O problema certamente é
de natureza social, mas não se limita a isso. Também o
argumento da proliferação da espécie e da
constituição das famílias é sólido,
e aqui encontramos uma importante ambiguidade, que diz respeito
ao modelo familiar heterossexual e monogâmico de nossa
sociedade. Esse modelo já não é mais suficiente
para abarcar as alternativas que vem surgindo nos últimos
tempos, gerando significativas crises na legislação
sucessória, para ficarmos em um exemplo.
Mas uma das mais fortes
pilastras na muralha da oposição às práticas
homossexuais vem da religião. E aqui as coisas se complicam
bastante, porque sabemos o quanto o perfil religioso de uma
determinada sociedade influi na formação das regras com
as quais esta tem que lidar. A monogamia citada anteriormente e que
dá base aos nossos casamentos é oriunda da moral
judaico-cristã, e não faz sentido às pessoas de
fé muçulmana, por exemplo. A lei, que caracteriza a
bigamia como crime, não leva em conta os ditames religiosos da
comunidade em referência, e impede a plena realização
das suas convicções, ainda que as partes envolvidas
estejam de pleno acordo com isso.
Não estou aqui
defendendo que a liberdade religiosa deva ser tolerada de forma a
suplantar direitos que o organismo social considera mais sagrados que
os ditames da fé. Práticas sangrentas e depreciativas
não podem ser admitidas porque ferem um direito maior, que é
o direito à vida e ao respeito das individualidades. Estou apenas fazendo uma
constatação: as pessoas tem a tendência a fazer
uma projeção das leis de sua religião a todas as
esferas da sociedade, e isso as tornam inflexíveis com
condutas que vão de encontro a elas. E, nesta tela, podemos
pintar o confronto que há na dificuldade de aceitação
de práticas sexuais diversas.
O que os religiosos
mais dogmáticos custam a perceber é que religião
e sexualidade tem algumas semelhanças bastante interessantes:
nascem como fatos naturais e derivam para fatos culturais. A relação
com a transcendência (espiritualidade, religiosidade) e a
sexualidade nascem com o ser humano, são inerentes a ele. São
estruturais, como já citei no mesmíssimo post citado anteriormente. Já a maneira como
estes impulsos são exercidos são influenciados pelo
ambiente e pelo conhecimento transmitido, são culturais e se
modificam através dos tempos, são históricos. De
fato, a homossexualidade não é algo novo. A ilha de
Lesbos, que deu origem ao nome pelo qual é conhecida a
homoafetividade feminina, recebeu sua fama dos poemas de sua poetisa
Safo, que possuíam conteúdo altamente sexualizado e
dirigido a outras mulheres. Safo viveu por volta de 600 aC. Os gregos
da época de Sócrates achavam que o verdadeiro sexo
voltado ao prazer era aquele praticado por componentes do mesmo sexo.
O coito entre homem e mulher era eficiente apenas para a procriação.
Diante disso, podemos concluir que tanto religião quanto
sexualidade derivam de contextos, e o homem não tem como fugir
deles. E desta forma chegamos à segunda semelhança interessante: são formas de convicção bastante difíceis de ser movidas, justamente porque preenchem solidamente características que são inerentes às estruturas que dizem respeito a nós, seres humanos.
Parece que o
crescimento da homossexualidade (ao menos a assumida) tem a ver com o
advento da secularização. O homem já não
consegue buscar na religião uma resposta definitiva às
suas aporias, seja por conta da inflexibilidade de suas normas, seja
pela sua dificuldade em se encaixar em novas tendências, seja
pelo primado científico que caracteriza o pensamento
contemporâneo. Assim, pavimenta-se o caminho da terceira (ou quarta, ou quinta) via para a satisfação de uma das necessidades mais prementes do ser humanos. Poderão dizer: a sexualidade é uma derivação da necessidade de perpetuação da espécie. O sexo entre semelhantes tem em seu fundo a desnecessidade. Eu não duvido disso, mas o que eu posso fazer? O fundo do esporte é a prática da guerra. Devemos, portanto, esquecer da simulação e partir para a porrada? Voltaremos ao princípio puritano do sexo como ferramenta meramente funcional? Não é por aí. Talvez estejamos nos incomodando com coisas que não nos dizem respeito, porque, pelo menos por enquanto, não estamos sendo obrigados a aderir a nenhuma causa semelhante, a desfazer nossas convicções.
Mas o evento em si tem
um grande problema. Apesar da pauta de reivindicações
ser muito extensa, o que é verdadeiramente importante está
em ultimíssimo plano. O que deveria ser um momento de se
carregar bandeiras, acabou por se transformar em uma gigantesca
micareta. No transcurso do dia, uma série de outros eventos
foi realizada, como fóruns de debates sobre o combate à
homofobia. Das três milhões de pessoas que foram à
passeata, quantas se preocuparam em discutir seriamente a questão?
Em procurar defender seu direito de obter um aperfeiçoamento
nas políticas públicas e na concretização
de avanços legislativos? Umas mil, cinco mil, dez mil que
seja? Bem poucos, esta é a verdade.
Desta forma, o que poderia ser um libelo contra o preconceito acaba por se tornar um agrupamento de caricaturas que comparecem a uma festa, Desta forma, fica muito mais difícil que a sociedade encare as questões com a seriedade que deve ser adotada nestas questões. É preciso lembrar que há gente morrendo por conta do homofobia. E aí sim, uma das grandes dificuldades em se encontrar um verdadeiro lastro moral para a humanidade: cometem-se crimes para impedir algo, que, no limite, diz respeito ao campo do individual. A criação de leis que protegem qualquer espécie de minoria é uma derrota de toda a sociedade. Não porque essas minorias ganham direitos, mas porque a lei que atribui cominações é uma prova da necessidade de jaulas morais para o organismo social, o que é um verdadeiro fracasso em um ser que se pretende racional. A humanidade precisa para de se ver segmentada e começar a se encontrar como um todo. Por que é necessário que se dividam e qualifiquem pessoas por qualquer motivo? Um homossexual não pode morrer por conta de suas preferências. É muito pouco para condenar ou enaltecer um ser humano.
O ethos tipicamente
brasileiro, em especial nos últimos tempos, não é
muito dado à politização, esse é o grande problema. Mas sobre isso vamos
discutir mais para a frente, em breve.
Recomendação de leitura:
Não se trata de um grande livro, nem dá prá chamar de boa literatura. Mas há algum interesse na medida em que demonstra como os sentidos acabam por superar a racionalidade nas relações entre duas pessoas.
GIFFORD, Barry. Paisagem com viajante. São Paulo: Mandarim, 1996.
Recomendação de leitura:
Não se trata de um grande livro, nem dá prá chamar de boa literatura. Mas há algum interesse na medida em que demonstra como os sentidos acabam por superar a racionalidade nas relações entre duas pessoas.
GIFFORD, Barry. Paisagem com viajante. São Paulo: Mandarim, 1996.
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