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quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Sobre paradas, convicções, torcidas de futebol e confrontos entre religiosidade e sexualidade

Olá!

Finalmente de volta. Para quem está servido, três destas semanas de ausência se deram com coisinhas simples, como perda de voz, inflamação de faringe, febre e outras pequenas bobagens. Mas como o mundo gira, temos a oportunidade de nosso eterno retorno. Sendo assim, vamos lá!

No meio do mês de junho, foi-me sugerido que fizesse uma análise do ponto de vista filosófico sobre a Parada do Orgulho LGBTT, mais conhecida como Parada Gay. Demorei um pouco prá tratar do assunto, mas finalmente vou a ele.

Em primeiro lugar, é preciso raciocinar no tamanho do evento. Já há alguns anos, algo que era um colorido e insólito encontro de modestas dimensões transformou-se no movimento que mais atrai gente na cidade de São Paulo, devidamente protegido por tropas e mais tropas policiais, por conta da grande possibilidade de ocorrerem ataques homofóbicos. A intenção é destacar as causas da comunidade homoafetiva, que costuma enfrentar algumas resistências em suas reivindicações.

É fácil perceber como essa questão é perturbadora ao observar as três maiores torcidas de nossa cidade. Por anos a fio, os palmeirenses resistiram ao apelido que lhes foi incutido pelos rivais: porcos. O mesmo se deu com a torcida do Corinthians – maloqueiro, sofredor, bandido – mas, ao fim, também foi absorvido e usado em proveito próprio. Tanto é verdade que uma de suas principais torcidas organizadas chama-se Pavilhão 9, que para quem não sabe ou não lembra era a ala do presídio do Carandiru onde estavam depositados os detentos mais perigosos. Já a pecha que tentam colar no torcedor são-paulino não é aceita de jeito nenhum – o famoso Bambi, o homossexual. Até mesmo um jogador que foi “acusado” de ser gay foi repudiado pela torcida. Vejam a que ponto a coisa chega: é possível a aceitação da sujeira, da imundície, do crime e do mau-caráter. Tudo isso é mais aceitável do que a homoafetividade.



As fontes da resistência à homoafetividade são bastante remotas e difusas. Muito pode ser explicado pelo machismo típico das nossas sociedades, que se não consegue aceitar confortavelmente a ascensão das mulheres, que se dirá daquilo que é considerado um pastiches delas? Cheguei a mencionar esta questão ao abordar o BBB, mas é necessário ir além.

O problema certamente é de natureza social, mas não se limita a isso. Também o argumento da proliferação da espécie e da constituição das famílias é sólido, e aqui encontramos uma importante ambiguidade, que diz respeito ao modelo familiar heterossexual e monogâmico de nossa sociedade. Esse modelo já não é mais suficiente para abarcar as alternativas que vem surgindo nos últimos tempos, gerando significativas crises na legislação sucessória, para ficarmos em um exemplo.

Mas uma das mais fortes pilastras na muralha da oposição às práticas homossexuais vem da religião. E aqui as coisas se complicam bastante, porque sabemos o quanto o perfil religioso de uma determinada sociedade influi na formação das regras com as quais esta tem que lidar. A monogamia citada anteriormente e que dá base aos nossos casamentos é oriunda da moral judaico-cristã, e não faz sentido às pessoas de fé muçulmana, por exemplo. A lei, que caracteriza a bigamia como crime, não leva em conta os ditames religiosos da comunidade em referência, e impede a plena realização das suas convicções, ainda que as partes envolvidas estejam de pleno acordo com isso.

Não estou aqui defendendo que a liberdade religiosa deva ser tolerada de forma a suplantar direitos que o organismo social considera mais sagrados que os ditames da fé. Práticas sangrentas e depreciativas não podem ser admitidas porque ferem um direito maior, que é o direito à vida e ao respeito das individualidades. Estou apenas fazendo uma constatação: as pessoas tem a tendência a fazer uma projeção das leis de sua religião a todas as esferas da sociedade, e isso as tornam inflexíveis com condutas que vão de encontro a elas. E, nesta tela, podemos pintar o confronto que há na dificuldade de aceitação de práticas sexuais diversas.

O que os religiosos mais dogmáticos custam a perceber é que religião e sexualidade tem algumas semelhanças bastante interessantes: nascem como fatos naturais e derivam para fatos culturais. A relação com a transcendência (espiritualidade, religiosidade) e a sexualidade nascem com o ser humano, são inerentes a ele. São estruturais, como já citei no mesmíssimo post citado anteriormente. Já a maneira como estes impulsos são exercidos são influenciados pelo ambiente e pelo conhecimento transmitido, são culturais e se modificam através dos tempos, são históricos. De fato, a homossexualidade não é algo novo. A ilha de Lesbos, que deu origem ao nome pelo qual é conhecida a homoafetividade feminina, recebeu sua fama dos poemas de sua poetisa Safo, que possuíam conteúdo altamente sexualizado e dirigido a outras mulheres. Safo viveu por volta de 600 aC. Os gregos da época de Sócrates achavam que o verdadeiro sexo voltado ao prazer era aquele praticado por componentes do mesmo sexo. O coito entre homem e mulher era eficiente apenas para a procriação. Diante disso, podemos concluir que tanto religião quanto sexualidade derivam de contextos, e o homem não tem como fugir deles. E desta forma chegamos à segunda semelhança interessante: são formas de convicção bastante difíceis de ser movidas, justamente porque preenchem solidamente características que são inerentes às estruturas que dizem respeito a nós, seres humanos. 

Parece que o crescimento da homossexualidade (ao menos a assumida) tem a ver com o advento da secularização. O homem já não consegue buscar na religião uma resposta definitiva às suas aporias, seja por conta da inflexibilidade de suas normas, seja pela sua dificuldade em se encaixar em novas tendências, seja pelo primado científico que caracteriza o pensamento contemporâneo. Assim, pavimenta-se o caminho da terceira (ou quarta, ou quinta) via para a satisfação de uma das necessidades mais prementes do ser humanos. Poderão dizer: a sexualidade é uma derivação da necessidade de perpetuação da espécie. O sexo entre semelhantes tem em seu fundo a desnecessidade. Eu não duvido disso, mas o que eu posso fazer? O fundo do esporte é a prática da guerra. Devemos, portanto, esquecer da simulação e partir para a porrada? Voltaremos ao princípio puritano do sexo como ferramenta meramente funcional? Não é por aí. Talvez estejamos nos incomodando com coisas que não nos dizem respeito, porque, pelo menos por enquanto, não estamos sendo obrigados a aderir a nenhuma causa semelhante, a desfazer nossas convicções.

Mas o evento em si tem um grande problema. Apesar da pauta de reivindicações ser muito extensa, o que é verdadeiramente importante está em ultimíssimo plano. O que deveria ser um momento de se carregar bandeiras, acabou por se transformar em uma gigantesca micareta. No transcurso do dia, uma série de outros eventos foi realizada, como fóruns de debates sobre o combate à homofobia. Das três milhões de pessoas que foram à passeata, quantas se preocuparam em discutir seriamente a questão? Em procurar defender seu direito de obter um aperfeiçoamento nas políticas públicas e na concretização de avanços legislativos? Umas mil, cinco mil, dez mil que seja? Bem poucos, esta é a verdade.

Desta forma, o que poderia ser um libelo contra o preconceito acaba por se tornar um agrupamento de caricaturas que comparecem a uma festa, Desta forma, fica muito mais difícil que a sociedade encare as questões com a seriedade que deve ser adotada nestas questões. É preciso lembrar que há gente morrendo por conta do homofobia. E aí sim, uma das grandes dificuldades em se encontrar um verdadeiro lastro moral para a humanidade: cometem-se crimes para impedir algo, que, no limite, diz respeito ao campo do individual. A criação de leis que protegem qualquer espécie de minoria é uma derrota de toda a sociedade. Não porque essas minorias ganham direitos, mas porque a lei que atribui cominações é uma prova da necessidade de jaulas morais para o organismo social, o que é um verdadeiro fracasso em um ser que se pretende racional. A humanidade precisa para de se ver segmentada e começar a se encontrar como um todo. Por que é necessário que se dividam e qualifiquem pessoas por qualquer motivo? Um homossexual não pode morrer por conta de suas preferências. É muito pouco para condenar ou enaltecer um ser humano.

O ethos tipicamente brasileiro, em especial nos últimos tempos, não é muito dado à politização, esse é o grande problema. Mas sobre isso vamos discutir mais para a frente, em breve.

Recomendação de leitura:

Não se trata de um grande livro, nem dá prá chamar de boa literatura. Mas há algum interesse na medida em que demonstra como os sentidos acabam por superar a racionalidade nas relações entre duas pessoas.

GIFFORD, Barry. Paisagem com viajante. São Paulo: Mandarim, 1996. 

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