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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

O café filosófico do quotidiano – filosofia induz ateísmo?

(Será que a filosofia é um caminho que te tira a fé?)

“Como é possível que hoje muitas minorias religiosas sofram discriminação ou perseguição? Como permitimos que nesta sociedade altamente civilizada existam pessoas que são perseguidas simplesmente por professar publicamente sua fé? Isso não só é inaceitável, é desumano, é insano”.

Jorge Maria Bergoglio, aka Papa Francisco I

Olá!

Clique aqui para ler mais cafezinhos de minha lavra

Métodos de extração de café assemelham-se à pesquisa científica, tanto em sua forma, quanto em seu propósito. Isso acontece porque certos métodos parecem ter saído de um laboratório (quando de fato não tenham saído), enquanto há um espírito de experimentação para se descobrir maneiras cada vez melhores de obter seu objetivo, o líquido. 

Isso explica por que há tantos lançamentos, às vezes compostos por grandes parafernálias e maquinismos, outras por inovações simples e bem sacadas. Um dos principais problemas é deixar a água passar muito demoradamente, porque isso traz a tendência ao amargor. Claro que quem toma café já espera e aceita alguns IBU’s*, mas há um limite que te obriga a colocar açúcar, e isso não é desejável. Normalmente isso é resolvido engrossando a moagem, porque a solução concorrente seria acelerar a gravidade, o que não é tão fácil assim.

A empresa japonesa Kalita, célebre em pesquisa desse tipo de problema, construiu uma opção muito simples de resolver o problema, com um produtinho chamado Syphon.

Olhando por fora, é um porta-filtro como outro qualquer, que usa filtros trapezoidais, iguais àqueles da Melitta link, feitas com a mesma numeração e as mesmas dobras.


O segredo se vê por dentro. Uma pequena válvula faz com que ocorra um efeito sifão, o que “puxa” a água para baixo com mais velocidade e impede o excesso de compostos amargos.

Sou obrigado a confessar que duvidei da promessa, mas ela se cumpriu. Um simples caminho colocado na posição certa fez com que todo o líquido passasse mais rápido, e o resultado de fato ficou de acordo, minimizando a extração do amargor.

  

Nome do utensílio: Kalita Syphon

Tipo de técnica:  Percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: média

Dinâmica: Aloca-se um filtro trapezoidal no porta-filtro com as dobras de costume. Após a saturação, o pó é depositado e a água pode ser despejada aos poucos ou toda de uma vez, sempre após uma pré-infusão. Aguarda-se um tempo de escoamento e é tudo.

Resíduos: Baixos 

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: médio

Uma prova da correlação habitual que faço dos métodos de café com os métodos de laboratório é a quantidade de textos de natureza da filosofia da ciência que surge nesta série. E os motivos são óbvios, conforme colocado acima.

A pergunta subsequente diz respeito à minha “saída de armário”, feita ainda em 2016, mas assumida somente três anos depois. No que seus estudos de filosofia influenciaram sua posição atual com relação à religião?

A pergunta ocorre porque assumi minha falta de religião, e tem gente que relaciona isso ao fato de eu ter estudado filosofia. E já escutei falar muitas e muitas vezes que o ambiente acadêmico, seja voltado para a filosofia, seja para a ciência, favorece uma visão onde o fenômeno deus é excluído. Isso não é nem verdade, nem mentira. Há pesos e contrapesos na relação.

A primeira questão é a diversidade de visões. É verdade que vários dos filósofos de ponta posteriores à Revolução Francesa pensaram em um universo sem divindades, mas pontas de lança como Kant e Hegel não descartavam Deus nos seus sistemas, muito pelo contrário. Outro exemplo vem dos primórdios, quando todos os filósofos da physis, de uma forma ou de outra, colocavam a chancela divina em seus tratados, coisa que somente Leucipo e Demócrito colocaram em um desvio puramente materialista, o atomismo. Tales, Anaximandro, Xenófanes, Empédocles e todos os outros colocavam os deuses como arché da arché ou como os artífices que as moldavam, mesmo que o substrato da realidade fosse um elemento material.

Então não é pela ausência de deuses que estudar filosofia leva alguém a se tornar ateu. O que eu declaro ser realmente assertivo nessa ideia é o pensar aberto, pensar diverso, pensar criticamente. Quando nós vemos, no transcurso da história da filosofia, o seu andar dialético, então aprendemos que as posições em antagonismo são igualmente válidas, e a questão fica no valor de verdade que cada uma pode ter. Ou seja, sim, houve influência, mas ela não foi decisiva. E a filosofia induz ateísmo em que já está propenso a isso.

Como eu disse anteriormente, minha desconversão não se deu através de um fenômeno pontual, mas de um longo trajeto em que eu passei, onde a cada dia eu me confrontava com uma nova explicação melhor do que a religião me dava, fazendo ela ser colocada mais e mais no âmbito do mito. Inicialmente, quando você não obtém mais respostas na religião que você professa, a tendência é manter a estrutura e substituir a divindade, e é aí que temos as conversões. Isso é fácil de explicar: não se muda a maneira de pensar, apenas os objetos da fé. É como quando o técnico quer dar mais velocidade no ataque - ele tira o centroavante pesadão e coloca um ponteiro lépido. Mudam-se as peças, mas mantém-se a lógica de se ter um mesmo modo de fazer o jogo. O alicerce dessa estrutura é a fé, que não é nem um pouco fácil de ser removida. É por isso que eu falo de processos lentos.

Quando observamos outras ideias (sem se levar em conta outras religiões), começamos a trazer possibilidades novas para nosso arcabouço intelectual. Elas podem ser aceitas e confrontadas com derrota, ou simplesmente rechaçadas, e a fé vence. Não há nada de mal nisso, reforço. Para os religiosos, é um teste de fé; para os não religiosos, é mais uma hipótese que se coloca.

Entretanto, um olhar que encaminhe para a realidade palpável, para a materialidade tangível, para o universo observável, inevitavelmente conduz à ciência. E aí a porca torce o rabo.

Não se trata de colocar a ciência como oposição à religião, como tantos gostam de fazer. Há duas questões: a ciência explica o mundo de maneira muito melhor que a religião, a não ser que você acredite que não são bactérias que causem as infecções, e sim a revolta divina. Por conta disso, muitos religiosos veem a ciência como fumaça nos olhos, que tiram a função de Deus no universo, e que isso é ação diabólica e etc. Eu acho isso um erro, porque vem da ideia de inerrância e de literalidade dos escritos, do contrário bastaria imaginar um deus que movimenta todos os aspectos científicos. Há religiões que fazem isso, inclusive. Sabiamente.

Mas… se eu olho para o universo e vejo que ele se basta, para que preciso incluir uma divindade que lhe justifique? Certo: há muitas coisas que ainda não são possíveis de explicar pela via da ciência. E é assim mesmo que funcionam as coisas. Não é preciso criar um deus das lacunas a cada buraco no conhecimento. Por vezes, é só preciso esperar e se conformar. Isso é chato, mas é honesto.

E como isso influencia em minha vida, em minhas posições? Pouco, na verdade. Eu não mudei quase nada desde que saí do armário, provavelmente porque já tinha a cabeça meio dirigida para maneiras parecidas de ver a vida com as que tenho agora. Sempre usei para mim mesmo o subterfúgio do deus que guia o mundo e a natureza, então tudo o que ocorre tem sua explicação natural e sua explicação metafísica, uma em consonância com a outra. Então, não dói tirar a segunda. O universo permanece tal e qual, com ou sem deus, para quem o vê sob critérios científicos. Se te traz conforto a fé, pode mantê-la sem problema algum. Só não venha me dizer que há literalidade nos escritos. Aí, vamos discordar.

Eu sou absolutamente contra a caceteação de ateus que se parecem com os religiosos mais chatos fazendo seus proselitismos de dedo em riste. Vai contra o espírito de liberdade que povoa quem já não se prende mais a uma convicção religiosa, parecendo simplesmente ter trocado de sinal. Reconheço que há gente que tem um propósito em mostrar como há gente que abusa da fé alheia, mas isso é, na essência, contraproducente. 

Sendo assim, eu acho que a única mudança de fato está na visão que eu tinha sobre o estado laico, provavelmente a principal bandeira a ser levantada pelos sem-fé do mundo todo, porque temos dificuldades de olhar certos aspectos da falta de laicidade enquanto estamos dentro da casinha. É quase como o que acontece com o planeta Terra: só saindo dele sabemos de verdade como ele é, redondo, azul, cercado de nuvens. Não deveria ser difícil para um religioso respeitar convicções alheias. Mas é um viés de ponto cego achar que não somos influenciados pelas ideias que nos estão calcadas. 

Enxergar o mundo pelas vias do estado laico é a única maneira de assegurar não só o direito de não seguir a nenhuma religião, mas também e principalmente o direito de professar religiões. Quando se olha para a história, vê-se que se matou por causa de religiões. Quando há chancela do Estado, pior ainda é a situação. A essência da democracia está em se poder praticar todos os atos que queiramos, desde que não haja proibição para isso. O Estado, portanto, não pode tutelar a religião, seja lá qual for.

Quando vemos um rito qualquer em um órgão público, devemos ficar alerta. Missa, culto, cerimônia, nada disso deve ser permitido dentro de um contexto englobado pelo Estado. Ora, direis, mas agrupa-se fora do Congresso em uma igreja qualquer e o efeito é o mesmo. Sim, mas é preciso que o próprio Estado mantenha seus ritos: o de não permitir que uma religião prepondere sobre as demais. Ainda que se permita todo e qualquer culto, ainda assim há o direito de quem não professa fé alguma. É antipático? É, mas só assim todos tem seu direito respeitado.

Em um momento onde cada vez mais vemos o congresso sendo dominado por parlamentares com posição religiosa misturada aos temas sociais, tanto mais importante vai se tornando a separação entre o que as pessoas creem e o que as pessoas fazem em comum. Me dá rinite e artrite só de pensar em uma sociedade dominada pelo que quer uma determinada vertente religiosa, por mais que ela seja majoritária.

E é preciso ficar atento, porque a coisa está acontecendo debaixo de nossos olhos. Tenho ojeriza de que me digam o que fazer sem um propósito coletivo. A melhor maneira de me fazer voltar a ser cristão é me proibir de ser cristão.

Agora vou tomar meu café apressado por belos fenômenos físicos aplicados à arte. Bons ventos a todos! Um ótimo 2025.

Recomendação de leitura:

É um livro que carrega meio forte nas cores, mas não deixa de trazer muitas informações importantes sobre a formação de uma bancada religiosa no Congresso Nacional. Em tempo: o tamanho está ainda maior hoje.

DIP, Andrea. Em Nome de Quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

 

*IBU - International Bitterness Unit é uma padronização para se medir o quão amarga é uma bebida, e é muito utilizada para dar ideia sensorial de cervejas.

A morte e a eternidade do rock’n’roll

(O rock morreu? Viva o rock!!!) 

“Pra que sofrer com despedida

Se quem parte não leva

Nem o sol, nem as trevas

E quem fica não se esquece

Tudo que sonhou?

Rita Lee

Olá! 

Vou começar o texto de hoje com uma notícia chata. A dona Madalena morreu. Ora (direis), a dona Madalena tinha 93 anos, vamos combinar que não se trata de uma manchete de repercussão nacional. Não, não é, de fato, mas o mundo é feito de pequenos mundos, e, por isso, há relevância naquele que eu vivo, especialmente pelo trabalhão que deu o seu encaminhamento. Obviamente, ela morreu de idade, como se diz por aí, mas o diagnóstico preciso foi uma embolia pulmonar. Vinha com uma tossinha chata, e a patroa a levou ao hospital, para dar uma olhada. É aquele momento em que os médicos ficam em uma encruzilhada quando deparam com o caso: não intervir é praticamente condenar a pessoa, intervir é ainda mais arriscado. Sendo assim, a alternativa é clinicar e observar, tentando ver onde vai dar. Deu onde deu.

A dona Madalena tinha o hábito de tirar uma soneca depois do almoço, e foi nesse momento que se deu o passamento. Uma morte de passarinho, como fala a patuleia. A patroa, como de hábito, desceu ao apartamento dela às 16 horas, e deu de frente com aquele corpo imóvel. “Tá dormindo ainda”, pensou ela, mas juntou lé com cré e se deu conta de que, apesar da boca aberta, o ronco nosso de cada dia não vinha. Aproximou-se lentamente e a chamou, sem resposta. Encostou a mão no corpo já frio e diagnosticou o fato. Daí por diante, aquela habitual correria se estabeleceu, com a consorte chamando o SAMU, que chamou a Polícia, que chamou o rabecão, que chamou a funerária, que chamou o andor, e daí para a carneira, o horroroso nome dado naquele cemitério à gaveta onde os cadáveres repousam.

Eu acompanhei a patroa desde o momento em que voltei para casa, incluindo delegacia e reconhecimento do cadáver. O IML* é meio seco com essa questão. Traz o corpo até a porta dos carros e chama o defunto pelo nome, para que os parentes venham ver se o boneco pertence a eles. Embora a dona Madalena não fosse nenhuma menininha, ela não era exatamente feia, mas estava com uma cara terrível: de boca aberta e dentes para fora, já naquela alegre coloração típica dos defuntos. Ao contrário da morte de passarinho precitada, tínhamos uma figuração de sofrimento nesse momento.

Na mesma hora lembrei da morte de um cachorro que eu tive, chamado Coronel. Ele sofria da mesma doença da dona Madalena: velhice. Tinha problemas do coração e um câncer, que, felizmente, era muito preguiçoso.  Na noite anterior à sua morte, passou a noite inteira andando para lá e para cá, sem conseguir dormir, com bastante dificuldade para respirar. Fui me arrumar para levá-lo ao veterinário, já pensando se valia a pena aquele sofrimento, mas ele mesmo resolveu a parada antes. Enquanto tomava um café para acordar, ele veio próximo à porta, arfando.  De repente, ele ficou paralisado e fez um esgar de forte dor, desmoronando de lado. Já no chão, um chorinho quase imperceptível foi a sua despedida do mundo, apesar de se manter de olhos abertos e boca repuxada. É feia a cara da morte.

Infelizmente (ou não), ainda não inventaram uma maneira de manter as coisas eternas. Isso não se aplica apenas a pessoas e bichos, mas também a povos, países, tendências e até mesmo ideias. Isso faz com que os costumes caiam na mesma vala comum, e com isso as modas e as correntes em geral, incluindo as musicais. Como sou velha guarda, gosto de acompanhar canais idem, e é meio recorrente a ideia de que velamos um morto. Dizem que o rock morreu. Será verdade?

Vou começar fazendo um relato empírico pessoal. Eu-jovem tinha muita sanha em montar minha própria banda, e o fiz por cinco vezes, fora as jams ocasionais com os amigos. Cinco tentativas frustradas, que se desvaneceram tão logo a realidade tenha sido posta às suas frentes. Eram tempos de vontades boas e instrumentos ruins, de letras que falavam de barreiras comunicativas, de desejos inalcançáveis, de protesto e de pessimismo, vide Legião, Engenheiros, Ira! e tantos outros, e eu queria também dar meus gritos. Como eu, tantos outros eus-jovens tinham os mesmos anseios e tentavam expressar isso no seu rock de garagem, básico e bem expresso, sem muitos volteios. Não havia comodismo: carregávamos nossa bateria em um Fusca, que não é notável pelo espaço disponível. Era o carro que tínhamos, e os outros instrumentos iam na mão mesmo. Alguns dos músicos vinham de longe, e sacrificávamos os domingos para ensaiar músicas próprias e de outrem. Isso se repetia em muitas garagens, quartos, quintais, salas e cômodos do bairro em que eu morava. Tinha grupos com nomes como Visão Natural, Opção, Gregs, Alma, Espermaloprados (que nome), a banda do Almir (que eu não lembro o nome), e as que eu passei: Carnívoro, Tropa de Choque, Sentença de Fogo, Mosaico e, principalmente, Exílio. Cada uma delas tem sua história, sua produção, suas ideias e ideais. Era bem comum andar pelas ruas e ouvir os rangidos das guitarras pobres e dos amplificadores rasteiros, aterrorizando as vizinhanças como fazem os batidões hoje em dia. Afinando bem os ouvidos, era possível notar talento e musicalidade, e principalmente uma indisposição com o mundo que nos cercava (e a vontade de pegar menininhas). Tínhamos medo da Guerra Fria, e também da penúria do país.

Hoje em dia, os computadores permitem fazer coisas que nem nos nossos mais róseos sonhos seria possível de realizar. Todos os pedais de efeitos que não podíamos comprar estão no clique de um botão na tela. Uma mesa de quatro canais, raridade quase impossível, é um conceito infinito em um dos Sound Forge da vida. Não dá para ter uma bateria? Tem programa para isso. A gravação da voz ficou xoxa, capenga, manca, anêmica, frágil e inconsistente? Há sempre um Autotune para fortalecer a amizade. Um apoio e tanto para quem tocava em pedaços de pau com arame, ou tambores que perdiam para Tupperwares.

Mas eu ando pelas mesmas ruas, mesmos bairros e mesmas garagens e não vejo mais bandas tocando. Ouço, sim, rapaziadas que se sentam na porta de casa com poderosas caixas acústicas que projetam a quilômetros aquele sertanejinho xexelento pelos quatro ventos, vingando-se da minha rebeldia juvenil. Há todos esses recursos, fora o barateamento dos instrumentos e sua melhor qualidade, e é muito difícil encontrar esse antigo entusiasmo. 

Bem, sertanejos não se ocupam mais de tocar suas violas e sanfonas, e basta aprender a “cantar” na terça acima ou abaixo para se proclamar cantor sertanejo. As letras você pega em poemas de segundanistas (do primário). Já os funkeiros precisam de maquininhas virtuais de gerar ritmo e aprender o máximo possível de palavrões. Cospem na cara da sociedade dessa forma e é suficiente para eles. Assim, o aprendizado de um instrumento ou passar mais de meia hora escrevendo uma letra não está na moda neste momento, e não significa necessariamente que a realidade vai se manter assim para sempre, mas essa é a realidade atual e é baixa a produção rockeira, muito longe do mainstream.

Há duas respostas comuns para essa questão: quem disse que não há produção e tal banda salvou o rock. São duas meias verdades. Existe, sim, gente fazendo sons novos e bons, assim como há ainda velhos lobos que não se limitam a viver das glórias passadas, mas não na quantidade que se praticava na década de 80, isso é objetivo e empírico. E dizer que tal banda salvou o rock é um lugar comum que usamos quando achamos alguma novidade que vai remexer nas gavetas da nossa memória e trazer algo semelhante aos “bons tempos”. Eu mesmo fiz isso aqui, sem um grande senso crítico, mas com a intenção de apresentar uma novidade que me empolgou, só isso.

O fato é que o rock não morre; ele subsiste por si só. E sabe por quê? Porque há limite no animismo, no sentido de que dizer que uma corrente morta é uma metaforização. As coisas vão e voltam, e o rock está em um momento em que ele foi. Daqui a pouco volta? É provável, já que a corrente foi muito impactante para simplesmente desaparecer. Dois exemplinhos de como as coisas voltam: o foxtrot era um ritmo da década de 30 da século passado, e ficou adormecido como música de velho até voltar como estilo de dança a partir dos anos 2000, com seu intenso deslizar e cruzar de pernas, porque acharam que se adaptava bem à música eletrônica de então. O outro é mais extremo: o canto gregoriano, surgido lá nos idos do século VI no mínimo, e que teve uma hype depois dos anos 2000, em combinação com a mesma música eletrônica.

Mas, se não voltar, ficará no registro, não há grandes dramas nisso. Há ondas que vem e que vão, assim como há águas que batem nas pedras e se desmancham na espuma. A vida é cíclica sem necessidade de um eterno retorno, e faz parte sabermos viver o hoje, colher o dia. O que é mais certo é que os sertanejos e os batidões aos quais me referi vão passar também, para serem substituídos por coisas que talvez consideremos ainda piores. Sabe-se lá como serão as coisas com inteligência artificial atuando, já que não há grandes problemas em desfiar a sutil poética existente nessas duas correntes. Pode ser que sejam construídas canções personalíssimas, que sirvam para um único contribuinte, quem sabe?

Para além da poética própria dos inícios e fins, entretanto, há uma vida prática onde comemos nosso arroz-com-feijão. Os festivais são, desde a época de Woodstock, símbolos de uma coletividade que se agrega em torno de ideais. Aí vem um tal de Rock in Rio e traz um de seus dias específico daquele mesmo sertanejo que tanto me provoca ojeriza. Que sentido tem isso? Uma hipótese que coloco é que o rock foi capaz de feitos históricos: festivais gigantescos que simbolizavam uma nova juventude, a união do mundo para salvaguardar a miséria, a revolta contra as guerras, uma vontade de mudança, a contraposição ao mundo estabelecido pelos adultos de plantão. Nenhum show de sertanejo foi capaz de mobilizações para além do próprio show, como faz o rock, e isso dá um selo de credibilidade semelhante ao da ciência –  toda pseudociência quer ser ciência para ganhar as credenciais que esta conseguiu por sua seriedade e capacidade de gerar confiança. Ou, no caso, de apontar para um sentido, para uma luta, para um ideal.

Por isso, mesmo que esteja morto, o tal do rock and roll, nas suas mais diferentes vertentes, carrega a função de ser porta-voz da juventude. Mortos deixam registros: fotos, histórias, e, no caso, músicas. É verdade que o rap continua carregando uma bandeira semelhante, e o funk, por incrível que pareça, faz o papel de contraposição ao que se empurra goela abaixo da rapaziada, mas vivemos o estranho fenômeno de adolescentes conservadores, o que é quase um contrassenso, e já não vemos bandeiras sendo carregadas. 

Dizem que banda x ou y salvaram o rock, o que não é verdade, se analisarmos calmamente a impressão que temos: o fato é o mainstream é de outras tendências agora. Então resta presentificar o passado ou fazer um trabalho de garimpagem, o que é muito tranquilo nos dias de hoje, com os Deezers e Spotifys. Na primeira hipótese, há milhares e milhares de opções, milhões e milhões de horas de músicas, que podem ser localizadas em terabytes de textos que trazem boas indicações, ao custo de uma conexão de internet. É tanto material que é impossível de conhecer tudo, e sempre fica no ar aquela pergunta: “como eu nunca tinha ouvido isso?”. Exemplifiquei uma experiência própria neste texto. Na segunda, há muita coisa boa surgindo a cada instante, embora não pululem no dial das rádios como outrora, e demanda do contribuinte uma disposição em encontrar. Algumas bandas muito boas, novas e antigas, estão a pleno vapor e produzindo material de primeira. o Big Big Train continua fazendo progressivo de primeira, os japoneses do Koenjihyakkei continuam fazendo suas maluquices e o Gojira faz seu metal pesadíssimo há quase trinta anos. As três meninas mexicanas do The Warning produzem um hard rock afiadíssimo, enquanto as inesperadas indonésias do Voice of Baceprot desmontam qualquer tipo de estereótipo. Material há.

Talvez a grande dificuldade que temos hoje em dia é se centrar no novo. É quase inevitável que comparemos o que as bandas velhas fazem de novo com o que elas faziam antes, geralmente em prejuízo. E as bandas novas, nós as olhamos como inferiores ou mesmo meras imitadoras. Observo, por exemplo, o caso da banda Greta van Fleet. A uma primeira audição, dizemos ser uma imitação servil e desditosa do Led Zeppelin, uma cópia escancarada até nos trejeitos vocais. Mas eu resolvi olhar por outro ângulo. Digamos que o van Fleet nunca tenha existido, e seus álbuns tenham sido lançados em um retorno do Led Zeppelin. Eu diria que estes seriam decepcionantes? Que consistiriam uma categoria de álbuns desgraçados? Não, eu diria que seria um retorno muito digno. Não seria o caso de colocá-los na mesma prateleira do II e do IV, mas dariam credenciais para não se dizer que os velhos membros deveriam estar jogando bocha e dominó.

Sendo assim, entendo que nós mesmos criamos o que se chama de morte do rock, porque nós nos tornamos rigorosos demais. U2, Metallica, Guns’n’Roses e tantas outras bandas lançaram materiais que diferiam de seus inícios de carreira, e que não foram bem acolhidos, porque os fãs queriam mais e mais e mais do mesmo. Pensem no seguinte: o mesmo nós já temos, e porque não queremos o mais, ele não vem. Não adianta reclamar: a morte do rock vem dos fãs.

Ou então não é nada disso e eu só estou devaneando pelo excesso de cadáveres. Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

O radialista Gastão Moreira faz um bom serviço pelas duas mãos em seu subestimado canal no YouTube: traz excelentes memórias e peneira ótimas novidades. Para quem se vê perdido como eu, pode ser um bom guia.

https://www.youtube.com/@kazagastao/featured

Imagem da guitarra retirada de:

https://www.izzo.com.br/guitarra-wgs-sunburst-winner/p


*Na verdade é o SVO - Serviço de Verificação de Óbitos, mas todo mundo chama lá de IML.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Pequeno guia das grandes falácias – 72º tomo: o ilícito maior

(Às vezes queremos abranger mais do que podemos. Até para fazer falácias).  

“Quase todos os homens morrem de seus remédios, não de suas doenças”

Moliére

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Merthiolate, Mercurocromo, tintura de iodo, violeta genciana, azul de metileno… Esses produtos todos grassaram nos meus pés e joelhos na infância, em um tempo de ruas de terra e quintais de pedriscos. Nas poucas fotos dessa época, estão lá esses produtos de cor forte nos membros esquálidos daquele menino loirinho, branco como uma cera, a não ser pelos manchões já citados.

Não se pode cobrar primores de cientificidade para pessoas que vieram do campo e de bairros operários, mais preocupados em sobreviver do que se aprimorar intelectualmente, e, mesmo que se faça a coisa certa, às vezes é por uma coincidência. Minha mãe tinha uma certa ritualística que aproximava essas químicas de uma pajelança: para cortes rasos, “metiolato”; para os mais fundos, “mercúrio”. Os raspões eram do iodo e para pancadas vinha a água végeto-mineral, mais conhecida como “água végeta”, no dizer dos ascendentes. Não sei o valor medicinal de cada um deles nos dias de hoje, mas havia um fato inconteste: ardiam, e ardiam muito. Exceção da última, que era geladinha.

Dizia-se que esse ardor para um ser-humaninho era como um caldeirão de óleo fervente para os micróbios, que estertoravam como loucos no oceano de tinturas que lhes era despejado nas supostas cabeças e, por esse motivo, os tratamentos impediam que se gerasse uma infecção. “Remédio bom não é para ser gostoso”, é o que se dizia.

Concordo. O que importa é o poder profilático, e não as sensações gustativas, olfativas, ou, no caso, as tácteis. Isso importa na culinária e na perfumaria, e não na farmácia. Mas o diabo é que nosso corpo é tradicionalista: uma vez criado um hábito, é difícil de se desgrudar dele. Isso inclui aquilo que esperamos de antissépticos tópicos - que ardam com gosto. Só que inventaram uma tal de clorexidina, que é muito mais eficiente do que todas as mezinhas citadas e simplesmente não arde! Propaganda? Não, constatação. E a fiz dolorosamente.

O filho mais velho está de mudança de retorno para São Paulo, e lá fui eu para auxiliá-lo. É impressionante como se acumula coisas em um sobradinho, e como elas se multiplicam de tamanho estando fora de seu lugar. A movimentação difícil faz com que cada passo ganhe perigo, já que é bom poder alcançar o corrimão da escada em caso de tropeções. Foi o desfecho da minha participação na mudança do moleque, felizmente já bem encaminhada àquela hora. Um tropeção na escada e um corte produzido na base do calcanhar que fez com que uma pequena inundação de sangue lambuzasse alguns degraus.

Havia o temor de precisar ir ao hospital, que, na urbe curitibana, não tem cobertura do meu caro, porém limitado convênio. A patroa usou seus dotes de cuidadora e fez uma limpeza, para avaliar a situação. O corte não era mais fundo do que grande, passível de um ponto falso, e é isso o que foi feito. Fiquei lá com a perna erguida até o sangue estancar, enquanto a precitada cônjuge deu uma corridinha até a farmácia, de onde veio com ataduras e um sprayzinho maroto. Uma vez acionado, o suor frio já apontou nos poros e pensei: “vai arder”. Mas nada.

Perguntei para a cara-metade do que se tratava, ao que ela me disse que era Merthiolate, sem propagandas. Como assim, se não ardeu? A resposta é clorexidina, que substituiu o antigo Tiomersal, proibido no começo dos anos 2000 por conter mercúrio em seu preparo, um elemento perigoso para o organismo e devastador para o ambiente. Foi o tipo da mudança ganha-ganha, já que o princípio ativo não mudou escandalosamente os custos, é um produto mais eficiente e o planetinha agradece uma agressão a menos.

Mas a reminiscência infantil ficou remoendo minhas entranhas: cadê o ardor, cadê o ardor? Remédio docinho, pomada que não gela e Merthiolate que não arde não são remédios. É como se eu jogasse toda a lógica fora por um simples diabinho que fica soprando no meu ouvido: cadê o ardor, cadê o ardor?

Para além de disposições metafísicas ou idiossincrasias psicológicas, esse meu pensamento carece de lógica. Vou demonstrar meu ponto pelo método mais clássico de todos: o silogismo.

Já falei tantas vezes dessa ferramenta da filosofia neste boteco que nem vou ficar referenciando links, apenas o último em que tratei do assunto, pela estreita relação que guardam entre si. Portanto, trarei mais informações sem desprezar as anteriores. Vamos lá.

Silogismo é a maneira aristotélica de procurar descrever raciocínios com ordenação tal que a verdade de seus componentes garanta a verdade de sua conclusão. Não se trata de uma mera colocação de frases a esmo, mas de arranjos linguísticos que são enfeixados como se fossem engrenagens; se não, não funcionam para seu objetivo. Furos são possíveis, e eles podem passar batido.

Em termos linguísticos, o silogismo lança mão de proposições, ou seja, sentenças que podem receber valor de verdade, ou seja mais ainda, serem verdadeiras ou falsas. Qualquer frase que não possa receber tal valor, não é uma proposição, e vice-versa. Se eu grito da arquibancada para o campo “vai roubar sua mãe, juiz ladrão” não há como colocar valor de verdade, por se tratar de uma sentença no modo imperativo. Agora, se eu disser “centroavante perneta!”, já aí temos essa possibilidade, especialmente porque é possível reconstruir o impropério em forma de declaração: “este centroavante é perneta”. É possível dizer se o centroavante merece a pecha ou não. Mas é só um exemplo.

Gramaticalmente, uma proposição forçosamente vai ter aqueles dois elementos que tanto nos habituamos a analisar desde o ginasial: os sujeitos e os predicados. Eles são os componentes mais essenciais de uma proposição, e indicam, em síntese, duas alternativas:

  1. Quem pratica uma ação e que ação é praticada;
  2. Quem está em um determinado estado e que estado é esse.

Nos dois casos, o primeiro é o sujeito, a parte subjetiva da frase, no sentido de que é ele que produz a ação ou recebe o estado; e o segundo é o predicado, a parte objetiva da frase, que especifica sobre qual ação ou estado estamos falando. Não vou me ater ao aspecto linguístico, nem dar aulas de português aqui, mas é importante fazer essa rápida conceituação.

Pois bem. Silogismos são deduções, ferramentas mentais que permitem antecipar resultados mesmo que não tenhamos um fato concreto à nossa frente, mas que, ainda assim, guardam correlações entre sujeitos e predicados. Olhando para o mais canônico dos silogismos…

… veremos transitando pelas diferentes proposições três palavras, que ora são sujeitos, ora são predicados.

Quando deslocamos o foco da linguagem para a lógica, traduzimos os sujeitos e os predicados em termos, que são os elementos que, uma vez concatenados, fazem a magia silogística. No caso do sujeito, temos traduzida a categoria do termo, ou seja, pouco nos importa se estamos falando de Huguinho, Zezinho, Luizinho ou Sócrates, mas em qual extensão estamos categorizando nossa proposição: se estou falando de uma universalidade, de uma particularidade, de uma individualidade ou de uma ausência. Enfim, qual é o tamanho do domínio que a sentença procura medir. O predicado, por sua vez, procura trazer uma informação sobre o termo, seja uma ação que é praticada ou uma qualidade que se possui.

Pouco importa na lógica, como eu já disse, o nome que se aplica ao termo, já que o importante é a concatenação que se faz. Com isso, aprendemos nas aulas de lógica formal que os termos podem ser substituídos por identificadores, as letras s e p. “S” de sujeito e “p” de predicado? Bingo.

Mas o que importa tudo isso no nosso tema? É que a extensão de uma sentença é dada por esses dois termos, e isso faz toda a diferença na construção da lógica. Vamos transformar minha revolta em termos silogísticos:

Todos os remédios que ardem são eficientes

Nenhum remédio moderno causa ardor (ou seja, nenhum remédio moderno é remédio que arde) 

Portanto, nenhum remédio moderno é eficiente

Notem que o sujeito da premissa maior fala em “todos”, ou seja, dá um caráter de universalidade. Mas notem também que a própria categorização é restritiva: falamos em medicamentos que ardem, mas não em qualquer medicamento. O que isso significa? Que a extensão do termo é particular disfarçada de universal, no contexto em que veremos.

Quando olhamos para a conclusão, vemos que ela tem uma extensão universal negativa. Isso significa que estamos excluindo qualquer medicamento moderno da nossa lista de medicamentos eficientes, o que é um absurdo. A ciência farmacêutica caminha para aperfeiçoar seus produtos, e não para piorá-los. Mas, para além do aspecto intuitivo, essa conclusão contém um erro formal: uma extensão universal na conclusão não pode derivar de uma extensão particular na premissa maior. Trocando em miúdos, há um universo menor na primeira premissa do que na conclusão, e estamos concluindo por mais elementos do que é possível alcançar pelo raciocínio. Ficou claro? Não?!?!?!

Um silogismo, para funcionar, precisa ter a forma de um funil, e não de uma pirâmide. Ele precisa começar mais largo e terminar mais estreito, e não o contrário. A premissa maior precisa falar sobre mais elementos, ou seja, ter uma maior extensão, do que a conclusão. O que estamos vendo aqui é exatamente o contrário. Percebam que a restrição do termo maior deste silogismo faz com que tenhamos uma extensão menor nele do que na conclusão, já que falamos no começo em remédios que ardem, e, no final, em remédios modernos. Remédios modernos podem ou não arder, então a restrição inicial torna o sujeito “remédios que ardem” menor que o termo “remédios modernos”, que embasa a conclusão. Isso é contra os mecanismos de garantia de validade de um silogismo.

Quando um erro desses acontece, vemos que está na forma da declaração, e não no seu conteúdo. Por isso, é uma falácia do tipo formal, que recebe o nome de ilícito maior. Não se trata de um crime grande, daqueles de ganhar manchetes de jornal, mas de usar de forma indevida a correlação entre a premissa maior e a conclusão, que acaba tendo problemas de distribuição, como comentamos até agora. Às vezes é chatinha de achar, porque fica aquele aroma de falácia sem aparência escancarada, como acontece nos inúmeros apelos, e, por isso mesmo, requer um pouco mais de técnica para ser detectada.

Apenas para finalizar e trazer notícias, meu pé já está bem melhor e, de fato, não chegou a infeccionar, mesmo usando um medicamento que não arde, e que só é antigo no nome, já que, sem apelos à novidade, é para a frente que a farmacêutica deve apontar. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Olha um artiguinho bem legal e de ótima fonte falando sobre os antissépticos. É de linguagem bastante técnica, mas dá para situar bem quais são os mais usados e os mais seguros, com motivos muito bem explicados. Vale a pena ao menos conhecer.

MCDONNELL, Gerald; RUSSELL, Denver. Antissépticos e Desinfetantes: Atividade, Ação e Resistência. EUA: PubMed, 1999. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC88911. Acesso em 01.12.2024.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

O café filosófico do quotidiano – religião e ópio no torpor da manhã

(Religião e ópio já foram relacionados, e revoltou muita gente. Será que deveria ser assim?) 

“A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo”

Karl Marx 

Olá!

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Há certas coisas que são muito antigas, mas como não tem grande tradição local, parecem grandes novidades. É muito difícil você ver uma criança que não conheça papaya, lichia, açaí, cupuaçu… enquanto é igualmente difícil que elas conheçam pitanga, uvaia (chamávamos de orvalho), nêspera, jatobá. Essas frutas “novas” eu não conhecia nenhuma quando criança, o que causa estranheza nos pós-boomers. Isso não significa que algumas surgem ou desaparecem do nada. É só o mundo girando.

Isso se aplica também a vários objetos, que vão e voltam de moda, como as vitrolas que quase todo mundo colocou para correr. O advento do CD, com sua praticidade e quase interminável uso, colocou os antigos vinis no período jurássico, mas que estranhamente voltaram nos últimos tempos, para nossa alegria. Como eu comprava um LP por pagamento, tenho uma boa quantidade deles, e, com isso, passo a voltar a suprir meu catálogo, na medida em que escavo os sebos.

Também aqui teremos imiscuídos os métodos de extração de café. Aquele a quem eu quero me referir era muito presente nos tempos em que era luxuoso utilizar produtos franceses. Era chique ter abat-jours ou peignoirs, muito mais do que lampiões ou camisolas. Quando outras culturas passaram a compartilhar a elegância por excelência, esses produtos encararam uma decadência, ficando bastante restritos a nichos. Mas eis que também nesse universo velhas coisas se tornam modernas, e temos a nova popularização das prensas francesas.

É provavelmente o mais famoso dos métodos de infusão de café, seguido de perto do ibrik para fazer café turco, e se popularizou nos últimos tempos porque permite extrair mais óleos do pó, embora haja como custo uma bebida menos límpida.


Isso acontece porque a filtragem é feita pelo próprio êmbolo que também lhe tampa, de modo a ter um contato razoavelmente longo com a água. Além disso, a trama do filtro do êmbolo não pode ser tão fechada quanto os microporos de um filtro de papel, por inviabilidade técnica. Se assim não fosse, o momento chave da baixa do êmbolo seria impossível.

O que há de bom no resultado é a oleosidade mantida, que dá um corpo diferenciado à bebida, embora haja uma quantidade razoável de resíduos. Não é complicado minimizá-los, bastando uma moagem mais grossa e uma rápida decantação, além de um controle de “perda”, ou seja, não derramar o café já infundido até o fim.


Nome do utensílio: Prensa francesa

Tipo de técnica:  Infusão

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: grossa

Dinâmica: Deposita-se o pó no copo da cafeteira e despeja-se a água fervente, tampando a mistura pelo tempo suficiente para uma extração adequada. Após, baixa-se cuidadosamente o êmbolo até a completa transposição da água, servindo com cuidado para evitar excessos de borra na xícara.

Resíduos: Altos. Convém não despejar a totalidade do líquido nas xícaras 

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: médio/alto

O gostoso da prensa francesa está no momento exatamente após o despejo da água. Como se trata de um método de infusão, é preciso que a água fique algum tempo extraindo as virtudes do grão. Como não é tão hermética quanto uma Eva Solo, há um grande escape de vapores aromáticos, já que a própria forma do método lembra aqueles foguetinhos de fazer inalações. 

E o vapor é inebriante. Enquanto ainda não estamos naquela lucidez da perfeita vigília, há esse estado intermediário em que parece estarmos propensos a algum tipo de contato com as divindades, sei lá. Ora, que bobagem, é só uma sensação estética ativada pelo prazer do aroma agradável como primeiro ingrediente do dia, que fica entre o estímulo e o alívio.

O fato é que há uma mudança de estado, ainda que meramente psicológica. Em outras circunstâncias, e com outras substâncias, esses estados da alteração mental são muito mais realistas, e foram usados para criar obras de artes, fazer previsões do futuro, sempre baseados na mudança de percepção que faz uma espécie de contato com um além-mundo uma transcendência. Em melhores palavras, há um entorpecimento em que vemos as coisas de uma maneira diferente do que são.

A substância símbolo disso é o ópio, usado por literatos, pintores, profetas e tudo o quanto é atividade que se vale do onírico e do suprarreal para produzir suas imagens. Hoje em dia, seus derivados ainda estão francamente em uso, muitos deles legítimos, agora mais para aliviar a dor, mas até guerra o látex da papoula já causou, tal o encanto que provoca em alguns. Da minha parte, meu contato vem das cólicas de rins, que redundam em aplicações de codeína na veia. Acho que não tem nada a ver, mas a sensação de alívio da dor intensa parece causar algum tipo de barato que é concluído com uma bela dose de sono. Que é uma sensação reconfortante, isso é.

É nessa sensação de alívio provocada por um desvio dos sentidos que surgiu na história da filosofia uma de suas frases mais famosas e polêmicas: “a religião é o ópio do povo”, proferida por ele mesmo – Karl Marx. Como a interpretação dessa frase pode prejudicar seu sentido, é preciso tentar entendê-la melhor.

Religião e ópio foram irmanados em um livro cujo objetivo nem era falar sobre o papel da primeira nas sociedades, e sim no que vem depois de que esta passe a ser superada. Mas a afirmativa está na sua introdução e acabou ficando mais famosa que todo o restante do livro. Quem é religioso tem uma visão extremamente negativa da frase, mas eu posso avaliar que essa visão não é tão negativa quanto pode parecer.

Marx traz uma boa parte de sua visão religiosa das ideias de Ludwig Feuerbach, que entende ser a religião moldada pelas estruturas de uma determinada sociedade. Em sua famosa visão, estudar as divindades de um povo significa estudar esse próprio povo. O que significa isso? É que os deuses são os próprios homens magnificados, ou seja, todas as melhores virtudes do próprio homem estão sintetizadas em seus deuses. Se um povo considera a justiça um valor, então o máximo de justiça está no deus cultuado por esse povo. Idem para a misericórdia, para o amor, para a força, isoladas e conjuntas. Portanto, quando você olha para os deuses de uma determinada cultura, é para as qualidades que esse povo preza que você olha.

A novidade que Marx traz para esse aspecto está no seguinte: sendo a religião um produto do próprio homem, não é de se estranhar que ela represente toda sua cosmovisão e sentimentos que tem de si mesmo. Lembremos da materialidade que Marx dá às suas análises, então não haveremos de reconhecer um deus em si no que o homem entende por Deus, uma entidade puramente abstrata, mas o próprio homem colocado como sua autoimagem. Só que essas imagens de si mesmos não se fazem sozinhas, mas na coletividade que é expressa pela estrutura social. Quando uma religião é construída, não a é por um indivíduo, mas pelos consensos obtidos pela soma deles. Quando se fala em uma essência humana, não há que se pensar em disposições metafísicas, mas em um movimento de retorno de sua própria alienação. Deus espelha o homem porque este é a sua realização fantástica, ou seja, sua projeção materializada. Por isso, Marx diz que a religião é o mundo invertido, uma irrealidade pensada a partir de uma realidade alienada.

Tá… embora concordemos que os deuses nada mais são do que o próprio conjunto de virtudes de um povo, no que isso é um mal, já que estamos pensando em valores que são prezados pelas pessoas? A questão é que, na filosofia marxista, as coisas não surgem e somem pela força das marés, mas porque há placas tectônicas em movimentação por baixo de um aparente fluxo histórico. Todas as coisas são como são porque há conflitos de classes que as deixaram assim.

Segundo o pensamento marxista, nada se explica no mundo sem que se compreenda como a luta de classes influencia o rumo dos tempos. O arroz com feijão na sua mesa, o futebol dominical, os comentários das novelas, a música que sua vizinha ouve, o horário em que você faz sua barba, o comprimento da sua saia, tudo está relacionado, em maior ou menor grau, com a luta de classes. Isso inclui o culto que você profere. Este é o motor que faz girar o mundo, na concepção materialista tão própria do marxismo. O nível de consciência com o qual isso acontece é variável, porque dificilmente alguém estende um plano mirabolante em uma mesa e decreta que tais e tais ações serão realizadas para a manutenção do poder, mas sabe-se lançar mão dos recursos que estão ao nosso redor para que isso aconteça.

Quem tem o poder não é quem tem armas. Isso serve para momentos pontuais, porque mesmo que tenham efetivo poder físico, é com a força de persuasão que o poder se perpetua. É muito mais eficiente fazer as pessoas aceitarem seus destinos do que fazê-las viver embaixo de um tacão. Nos momentos em que a opressão se dá pela força, sempre é possível que alguém se mova, e, consciente do tamanho do grupo, produza ao menos dificuldades. Não seria melhor persuadir o povo de que as coisas estão nos seus devidos lugares, que são como são porque tem que ser assim?

Isso não se consegue unicamente com o diálogo, mas com a esperança de que haverá dias melhores para aqueles que se encaixarem em um determinado padrão. E isso não precisa ser reflexo da realidade, mas só no que se pensa ser a realidade.

Um bom exemplo está nas inúmeras palavras sobre a riqueza e a pobreza. Diz-se que aos pobres pertencem o céu, e, com isso, as pessoas nessa condição têm um subterfúgio para se confirmarem felizes no pós-morte. Mas pense um pouquinho, sem abdicar de sua fé, do que seria sua vida se nada do que preconizam as religiões existisse. Assuma isso como um mero exercício mental. Tudo o que o mundo te dá e te tira está na medida da justiça? Tudo o que as pessoas dão e recebem está em perfeito balanceamento? Há equilíbrio entre o que uns têm e outros não? Se você respondeu “não” a essas perguntas, precisamos de fato refletir e criticar nossa própria realidade.

Então temos dois caminhos na concepção de religião. A primeira é a do entorpecimento que retira o senso crítico do cidadão. Com o convencimento de que ele tem algo que vai além do mundo material, ele deixa de valorizar esse mesmo mundo material, e as suas condições reais passam a ser secundárias. Se ele sofre, se deve, se é miserável, tudo serve a um propósito maior, que é o mundo além da matéria prometido pelas religiões. Criticar a religião é criticar a própria realidade da qual ela é espelho.

Já a segunda é a do lenitivo, do entorpecimento que faz suportar a dor. Não é expresso por Marx com todas as letras, mas eu consigo enxergar esse aspecto. O cidadão busca na religião um alívio contra a vida de merda que leva, da mesma forma que procura um copo de cachaça ou… uma pipada no ópio, como era mais comum nos tempos da revolução Industrial. Nesse sentido, às vezes a religião é tudo o que a pessoa tem, a tábua de salvação à qual se agarra e uma razão para se continuar a viver, ainda que faça uma visão crítica de sua própria realidade.

Se observarmos esses dois ângulos, conseguiremos compreender como há religiões, inclusive vertentes cristãs, que não veem o marxismo como fumaça nos olhos, mas como uma leitura material da estrutura exploratória que acontece na realidade. É óbvio que elas sublimam toda a crítica por conta da fé no reconforto e esperança futuros, mas não retiram o valores quando aplicados a outras formas de alienação: o deus-mercado, o deus-dinheiro.

O que há de mais claro: Marx, seguindo sua filosofia da práxis, queria que a religião deixasse de ser estudada para que os problemas reais viessem à mesa. A questão fica mais fácil quando pensada em termos de futebol. O Botafogo acaba de ser campeão da Libertadores, o único dos times ditos grandes que ainda não tinha esse título. O Botafogo da década de 60 era um time de sonho, com Garrincha, Didi, Amarildo, Nilton Santos, Quarentinha, Zagallo. Não chegou a títulos maiores porque havia um Santos com um craque chamado Pelé à sua frente. Era um time de sonho e nos sonhos ficou, com vários campeonatos cariocas e uma Taça Brasil, e é tudo. O time atual não tem a mística daquele de 60 anos atrás, mas tem a Libertadores. Na prática, sempre ficará o aspecto religioso do time de craques, mas quem teve o troféu é este time, que provavelmente já estará muito alterado no ano que vem. Outro caso é a mítica seleção brasileira de 1982. Dizem que ela é lembrada como se fosse campeã, mas a quarta estrela na camisa não veio com eles, mas foi bordada pelo pragmático time de 1994. Isso tudo significa que o aspecto metafísico tem um valor meramente relativo: quando você quer resolver problemas práticos, é para a realidade que você olha, tangível, observável, manifesta, concreta, sólida, palpável, imanente. Portanto, a religião-ópio nada mais é do que a expressão de sua filosofia da práxis, expressa ao máximo em sua célebre tese onze: Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.

Com relação ao que diz em si o livro contra Hegel, fica para outro momento. Já as teses sobre Feuerbach, idem. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

MARX, Karl. Crítica da Filosofia de Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010.