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quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Pequeno guia das grandes falácias – 72º tomo: o ilícito maior

(Às vezes queremos abranger mais do que podemos. Até para fazer falácias).  

“Quase todos os homens morrem de seus remédios, não de suas doenças”

Moliére

Olá!

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Merthiolate, Mercurocromo, tintura de iodo, violeta genciana, azul de metileno… Esses produtos todos grassaram nos meus pés e joelhos na infância, em um tempo de ruas de terra e quintais de pedriscos. Nas poucas fotos dessa época, estão lá esses produtos de cor forte nos membros esquálidos daquele menino loirinho, branco como uma cera, a não ser pelos manchões já citados.

Não se pode cobrar primores de cientificidade para pessoas que vieram do campo e de bairros operários, mais preocupados em sobreviver do que se aprimorar intelectualmente, e, mesmo que se faça a coisa certa, às vezes é por uma coincidência. Minha mãe tinha uma certa ritualística que aproximava essas químicas de uma pajelança: para cortes rasos, “metiolato”; para os mais fundos, “mercúrio”. Os raspões eram do iodo e para pancadas vinha a água végeto-mineral, mais conhecida como “água végeta”, no dizer dos ascendentes. Não sei o valor medicinal de cada um deles nos dias de hoje, mas havia um fato inconteste: ardiam, e ardiam muito. Exceção da última, que era geladinha.

Dizia-se que esse ardor para um ser-humaninho era como um caldeirão de óleo fervente para os micróbios, que estertoravam como loucos no oceano de tinturas que lhes era despejado nas supostas cabeças e, por esse motivo, os tratamentos impediam que se gerasse uma infecção. “Remédio bom não é para ser gostoso”, é o que se dizia.

Concordo. O que importa é o poder profilático, e não as sensações gustativas, olfativas, ou, no caso, as tácteis. Isso importa na culinária e na perfumaria, e não na farmácia. Mas o diabo é que nosso corpo é tradicionalista: uma vez criado um hábito, é difícil de se desgrudar dele. Isso inclui aquilo que esperamos de antissépticos tópicos - que ardam com gosto. Só que inventaram uma tal de clorexidina, que é muito mais eficiente do que todas as mezinhas citadas e simplesmente não arde! Propaganda? Não, constatação. E a fiz dolorosamente.

O filho mais velho está de mudança de retorno para São Paulo, e lá fui eu para auxiliá-lo. É impressionante como se acumula coisas em um sobradinho, e como elas se multiplicam de tamanho estando fora de seu lugar. A movimentação difícil faz com que cada passo ganhe perigo, já que é bom poder alcançar o corrimão da escada em caso de tropeções. Foi o desfecho da minha participação na mudança do moleque, felizmente já bem encaminhada àquela hora. Um tropeção na escada e um corte produzido na base do calcanhar que fez com que uma pequena inundação de sangue lambuzasse alguns degraus.

Havia o temor de precisar ir ao hospital, que, na urbe curitibana, não tem cobertura do meu caro, porém limitado convênio. A patroa usou seus dotes de cuidadora e fez uma limpeza, para avaliar a situação. O corte não era mais fundo do que grande, passível de um ponto falso, e é isso o que foi feito. Fiquei lá com a perna erguida até o sangue estancar, enquanto a precitada cônjuge deu uma corridinha até a farmácia, de onde veio com ataduras e um sprayzinho maroto. Uma vez acionado, o suor frio já apontou nos poros e pensei: “vai arder”. Mas nada.

Perguntei para a cara-metade do que se tratava, ao que ela me disse que era Merthiolate, sem propagandas. Como assim, se não ardeu? A resposta é clorexidina, que substituiu o antigo Tiomersal, proibido no começo dos anos 2000 por conter mercúrio em seu preparo, um elemento perigoso para o organismo e devastador para o ambiente. Foi o tipo da mudança ganha-ganha, já que o princípio ativo não mudou escandalosamente os custos, é um produto mais eficiente e o planetinha agradece uma agressão a menos.

Mas a reminiscência infantil ficou remoendo minhas entranhas: cadê o ardor, cadê o ardor? Remédio docinho, pomada que não gela e Merthiolate que não arde não são remédios. É como se eu jogasse toda a lógica fora por um simples diabinho que fica soprando no meu ouvido: cadê o ardor, cadê o ardor?

Para além de disposições metafísicas ou idiossincrasias psicológicas, esse meu pensamento carece de lógica. Vou demonstrar meu ponto pelo método mais clássico de todos: o silogismo.

Já falei tantas vezes dessa ferramenta da filosofia neste boteco que nem vou ficar referenciando links, apenas o último em que tratei do assunto, pela estreita relação que guardam entre si. Portanto, trarei mais informações sem desprezar as anteriores. Vamos lá.

Silogismo é a maneira aristotélica de procurar descrever raciocínios com ordenação tal que a verdade de seus componentes garanta a verdade de sua conclusão. Não se trata de uma mera colocação de frases a esmo, mas de arranjos linguísticos que são enfeixados como se fossem engrenagens; se não, não funcionam para seu objetivo. Furos são possíveis, e eles podem passar batido.

Em termos linguísticos, o silogismo lança mão de proposições, ou seja, sentenças que podem receber valor de verdade, ou seja mais ainda, serem verdadeiras ou falsas. Qualquer frase que não possa receber tal valor, não é uma proposição, e vice-versa. Se eu grito da arquibancada para o campo “vai roubar sua mãe, juiz ladrão” não há como colocar valor de verdade, por se tratar de uma sentença no modo imperativo. Agora, se eu disser “centroavante perneta!”, já aí temos essa possibilidade, especialmente porque é possível reconstruir o impropério em forma de declaração: “este centroavante é perneta”. É possível dizer se o centroavante merece a pecha ou não. Mas é só um exemplo.

Gramaticalmente, uma proposição forçosamente vai ter aqueles dois elementos que tanto nos habituamos a analisar desde o ginasial: os sujeitos e os predicados. Eles são os componentes mais essenciais de uma proposição, e indicam, em síntese, duas alternativas:

  1. Quem pratica uma ação e que ação é praticada;
  2. Quem está em um determinado estado e que estado é esse.

Nos dois casos, o primeiro é o sujeito, a parte subjetiva da frase, no sentido de que é ele que produz a ação ou recebe o estado; e o segundo é o predicado, a parte objetiva da frase, que especifica sobre qual ação ou estado estamos falando. Não vou me ater ao aspecto linguístico, nem dar aulas de português aqui, mas é importante fazer essa rápida conceituação.

Pois bem. Silogismos são deduções, ferramentas mentais que permitem antecipar resultados mesmo que não tenhamos um fato concreto à nossa frente, mas que, ainda assim, guardam correlações entre sujeitos e predicados. Olhando para o mais canônico dos silogismos…

… veremos transitando pelas diferentes proposições três palavras, que ora são sujeitos, ora são predicados.

Quando deslocamos o foco da linguagem para a lógica, traduzimos os sujeitos e os predicados em termos, que são os elementos que, uma vez concatenados, fazem a magia silogística. No caso do sujeito, temos traduzida a categoria do termo, ou seja, pouco nos importa se estamos falando de Huguinho, Zezinho, Luizinho ou Sócrates, mas em qual extensão estamos categorizando nossa proposição: se estou falando de uma universalidade, de uma particularidade, de uma individualidade ou de uma ausência. Enfim, qual é o tamanho do domínio que a sentença procura medir. O predicado, por sua vez, procura trazer uma informação sobre o termo, seja uma ação que é praticada ou uma qualidade que se possui.

Pouco importa na lógica, como eu já disse, o nome que se aplica ao termo, já que o importante é a concatenação que se faz. Com isso, aprendemos nas aulas de lógica formal que os termos podem ser substituídos por identificadores, as letras s e p. “S” de sujeito e “p” de predicado? Bingo.

Mas o que importa tudo isso no nosso tema? É que a extensão de uma sentença é dada por esses dois termos, e isso faz toda a diferença na construção da lógica. Vamos transformar minha revolta em termos silogísticos:

Todos os remédios que ardem são eficientes

Nenhum remédio moderno causa ardor (ou seja, nenhum remédio moderno é remédio que arde) 

Portanto, nenhum remédio moderno é eficiente

Notem que o sujeito da premissa maior fala em “todos”, ou seja, dá um caráter de universalidade. Mas notem também que a própria categorização é restritiva: falamos em medicamentos que ardem, mas não em qualquer medicamento. O que isso significa? Que a extensão do termo é particular disfarçada de universal, no contexto em que veremos.

Quando olhamos para a conclusão, vemos que ela tem uma extensão universal negativa. Isso significa que estamos excluindo qualquer medicamento moderno da nossa lista de medicamentos eficientes, o que é um absurdo. A ciência farmacêutica caminha para aperfeiçoar seus produtos, e não para piorá-los. Mas, para além do aspecto intuitivo, essa conclusão contém um erro formal: uma extensão universal na conclusão não pode derivar de uma extensão particular na premissa maior. Trocando em miúdos, há um universo menor na primeira premissa do que na conclusão, e estamos concluindo por mais elementos do que é possível alcançar pelo raciocínio. Ficou claro? Não?!?!?!

Um silogismo, para funcionar, precisa ter a forma de um funil, e não de uma pirâmide. Ele precisa começar mais largo e terminar mais estreito, e não o contrário. A premissa maior precisa falar sobre mais elementos, ou seja, ter uma maior extensão, do que a conclusão. O que estamos vendo aqui é exatamente o contrário. Percebam que a restrição do termo maior deste silogismo faz com que tenhamos uma extensão menor nele do que na conclusão, já que falamos no começo em remédios que ardem, e, no final, em remédios modernos. Remédios modernos podem ou não arder, então a restrição inicial torna o sujeito “remédios que ardem” menor que o termo “remédios modernos”, que embasa a conclusão. Isso é contra os mecanismos de garantia de validade de um silogismo.

Quando um erro desses acontece, vemos que está na forma da declaração, e não no seu conteúdo. Por isso, é uma falácia do tipo formal, que recebe o nome de ilícito maior. Não se trata de um crime grande, daqueles de ganhar manchetes de jornal, mas de usar de forma indevida a correlação entre a premissa maior e a conclusão, que acaba tendo problemas de distribuição, como comentamos até agora. Às vezes é chatinha de achar, porque fica aquele aroma de falácia sem aparência escancarada, como acontece nos inúmeros apelos, e, por isso mesmo, requer um pouco mais de técnica para ser detectada.

Apenas para finalizar e trazer notícias, meu pé já está bem melhor e, de fato, não chegou a infeccionar, mesmo usando um medicamento que não arde, e que só é antigo no nome, já que, sem apelos à novidade, é para a frente que a farmacêutica deve apontar. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Olha um artiguinho bem legal e de ótima fonte falando sobre os antissépticos. É de linguagem bastante técnica, mas dá para situar bem quais são os mais usados e os mais seguros, com motivos muito bem explicados. Vale a pena ao menos conhecer.

MCDONNELL, Gerald; RUSSELL, Denver. Antissépticos e Desinfetantes: Atividade, Ação e Resistência. EUA: PubMed, 1999. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC88911. Acesso em 01.12.2024.

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