(Às vezes queremos abranger mais do que podemos. Até para fazer falácias).
“Quase todos os homens morrem de seus remédios, não de suas doenças”
Moliére
Olá!
Merthiolate, Mercurocromo, tintura de iodo, violeta
genciana, azul de metileno… Esses produtos todos grassaram nos meus pés e
joelhos na infância, em um tempo de ruas de terra e quintais de pedriscos. Nas
poucas fotos dessa época, estão lá esses produtos de cor forte nos membros
esquálidos daquele menino loirinho, branco como uma cera, a não ser pelos
manchões já citados.
Não se pode cobrar primores de cientificidade para pessoas
que vieram do campo e de bairros operários, mais preocupados em sobreviver do
que se aprimorar intelectualmente, e, mesmo que se faça a coisa certa, às vezes
é por uma coincidência. Minha mãe tinha uma certa ritualística que aproximava
essas químicas de uma pajelança: para cortes rasos, “metiolato”; para os mais
fundos, “mercúrio”. Os raspões eram do iodo e para pancadas vinha a água végeto-mineral,
mais conhecida como “água végeta”, no dizer dos ascendentes. Não sei o valor
medicinal de cada um deles nos dias de hoje, mas havia um fato inconteste:
ardiam, e ardiam muito. Exceção da última, que era geladinha.
Dizia-se que esse ardor para um ser-humaninho era como um
caldeirão de óleo fervente para os micróbios, que estertoravam como loucos no
oceano de tinturas que lhes era despejado nas supostas cabeças e, por esse
motivo, os tratamentos impediam que se gerasse uma infecção. “Remédio bom não é
para ser gostoso”, é o que se dizia.
Concordo. O que importa é o poder profilático, e não as
sensações gustativas, olfativas, ou, no caso, as tácteis. Isso importa na
culinária e na perfumaria, e não na farmácia. Mas o diabo é que nosso corpo é
tradicionalista: uma vez criado um hábito, é difícil de se desgrudar dele. Isso
inclui aquilo que esperamos de antissépticos tópicos - que ardam com gosto. Só
que inventaram uma tal de clorexidina, que é muito mais eficiente do que todas
as mezinhas citadas e simplesmente não arde! Propaganda? Não, constatação. E a
fiz dolorosamente.
O filho mais velho está de mudança de retorno para São
Paulo, e lá fui eu para auxiliá-lo. É impressionante como se acumula coisas em
um sobradinho, e como elas se multiplicam de tamanho estando fora de seu lugar.
A movimentação difícil faz com que cada passo ganhe perigo, já que é bom poder
alcançar o corrimão da escada em caso de tropeções. Foi o desfecho da minha
participação na mudança do moleque, felizmente já bem encaminhada àquela hora.
Um tropeção na escada e um corte produzido na base do calcanhar que fez com que
uma pequena inundação de sangue lambuzasse alguns degraus.
Havia o temor de precisar ir ao hospital, que, na urbe
curitibana, não tem cobertura do meu caro, porém limitado convênio. A patroa
usou seus dotes de cuidadora e fez uma limpeza, para avaliar a situação. O
corte não era mais fundo do que grande, passível de um ponto falso, e é isso o
que foi feito. Fiquei lá com a perna erguida até o sangue estancar, enquanto a
precitada cônjuge deu uma corridinha até a farmácia, de onde veio com ataduras
e um sprayzinho maroto. Uma vez acionado, o suor frio já apontou nos poros e
pensei: “vai arder”. Mas nada.
Perguntei para a cara-metade do que se tratava, ao que ela
me disse que era Merthiolate, sem propagandas. Como assim, se não ardeu? A
resposta é clorexidina, que substituiu o antigo Tiomersal, proibido no começo
dos anos 2000 por conter mercúrio em seu preparo, um elemento perigoso para o
organismo e devastador para o ambiente. Foi o tipo da mudança ganha-ganha, já
que o princípio ativo não mudou escandalosamente os custos, é um produto mais
eficiente e o planetinha agradece uma agressão a menos.
Mas a reminiscência infantil ficou remoendo minhas
entranhas: cadê o ardor, cadê o ardor? Remédio docinho, pomada que não gela e
Merthiolate que não arde não são remédios. É como se eu jogasse toda a lógica
fora por um simples diabinho que fica soprando no meu ouvido: cadê o ardor,
cadê o ardor?
Para além de disposições metafísicas ou idiossincrasias
psicológicas, esse meu pensamento carece de lógica. Vou demonstrar meu ponto
pelo método mais clássico de todos: o silogismo.
Já falei tantas vezes dessa ferramenta da filosofia neste
boteco que nem vou ficar referenciando links, apenas o último
em que tratei do assunto, pela estreita relação que guardam entre si. Portanto,
trarei mais informações sem desprezar as anteriores. Vamos lá.
Silogismo é a maneira aristotélica de procurar descrever
raciocínios com ordenação tal que a verdade de seus componentes garanta a
verdade de sua conclusão. Não se trata de uma mera colocação de frases a esmo,
mas de arranjos linguísticos que são enfeixados como se fossem engrenagens; se
não, não funcionam para seu objetivo. Furos são possíveis, e eles podem passar
batido.
Em termos linguísticos, o silogismo lança mão de
proposições, ou seja, sentenças que podem receber valor de verdade, ou seja
mais ainda, serem verdadeiras ou falsas. Qualquer frase que não possa receber
tal valor, não é uma proposição, e vice-versa. Se eu grito da arquibancada para
o campo “vai roubar sua mãe, juiz ladrão” não há como colocar valor de verdade,
por se tratar de uma sentença no modo imperativo. Agora, se eu disser
“centroavante perneta!”, já aí temos essa possibilidade, especialmente porque é
possível reconstruir o impropério em forma de declaração: “este centroavante é
perneta”. É possível dizer se o centroavante merece a pecha ou não. Mas é só um
exemplo.
Gramaticalmente, uma proposição forçosamente vai ter aqueles
dois elementos que tanto nos habituamos a analisar desde o ginasial: os
sujeitos e os predicados. Eles são os componentes mais essenciais de uma
proposição, e indicam, em síntese, duas alternativas:
- Quem pratica uma ação e que ação é praticada;
- Quem está em um determinado estado e que estado é esse.
Nos dois casos, o primeiro é o sujeito, a parte subjetiva da
frase, no sentido de que é ele que produz a ação ou recebe o estado; e o
segundo é o predicado, a parte objetiva da frase, que especifica sobre qual
ação ou estado estamos falando. Não vou me ater ao aspecto linguístico, nem dar
aulas de português aqui, mas é importante fazer essa rápida conceituação.
Pois bem. Silogismos são deduções, ferramentas mentais que
permitem antecipar resultados mesmo que não tenhamos um fato concreto à nossa
frente, mas que, ainda assim, guardam correlações entre sujeitos e predicados. Olhando
para o mais canônico dos silogismos…
… veremos transitando pelas diferentes proposições três
palavras, que ora são sujeitos, ora são predicados.
Quando deslocamos o foco da linguagem para a lógica,
traduzimos os sujeitos e os predicados em termos, que são os elementos que, uma
vez concatenados, fazem a magia silogística. No caso do sujeito, temos
traduzida a categoria do termo, ou seja, pouco nos importa se estamos falando
de Huguinho, Zezinho, Luizinho ou Sócrates, mas em qual extensão estamos
categorizando nossa proposição: se estou falando de uma universalidade, de uma
particularidade, de uma individualidade ou de uma ausência. Enfim, qual é o
tamanho do domínio que a sentença procura medir. O predicado, por sua vez, procura
trazer uma informação sobre o termo, seja uma ação que é praticada ou uma
qualidade que se possui.
Pouco importa na lógica, como eu já disse, o nome que se
aplica ao termo, já que o importante é a concatenação que se faz. Com isso,
aprendemos nas aulas de lógica formal que os termos podem ser substituídos por
identificadores, as letras s e p. “S” de sujeito e “p” de
predicado? Bingo.
Mas o que importa tudo isso no nosso tema? É que a extensão
de uma sentença é dada por esses dois termos, e isso faz toda a diferença na
construção da lógica. Vamos transformar minha revolta em termos silogísticos:
Todos os remédios que ardem são eficientes
Nenhum remédio moderno causa ardor (ou seja, nenhum remédio moderno é remédio que arde)
Portanto, nenhum remédio moderno é eficiente
Notem que o sujeito da premissa maior fala em “todos”, ou
seja, dá um caráter de universalidade. Mas notem também que a própria
categorização é restritiva: falamos em medicamentos que ardem, mas não
em qualquer medicamento. O que isso significa? Que a extensão do termo é
particular disfarçada de universal, no contexto em que veremos.
Quando olhamos para a conclusão, vemos que ela tem uma
extensão universal negativa. Isso significa que estamos excluindo qualquer
medicamento moderno da nossa lista de medicamentos eficientes, o que é um
absurdo. A ciência farmacêutica caminha para aperfeiçoar seus produtos, e não
para piorá-los. Mas, para além do aspecto intuitivo, essa conclusão contém um
erro formal: uma extensão universal na conclusão não pode derivar de uma
extensão particular na premissa maior. Trocando em miúdos, há um universo menor
na primeira premissa do que na conclusão, e estamos concluindo por mais
elementos do que é possível alcançar pelo raciocínio. Ficou claro? Não?!?!?!
Um silogismo, para funcionar, precisa ter a forma de um
funil, e não de uma pirâmide. Ele precisa começar mais largo e terminar mais
estreito, e não o contrário. A premissa maior precisa falar sobre mais
elementos, ou seja, ter uma maior extensão, do que a conclusão. O que estamos
vendo aqui é exatamente o contrário. Percebam que a restrição do termo maior
deste silogismo faz com que tenhamos uma extensão menor nele do que na
conclusão, já que falamos no começo em remédios que ardem, e, no final, em
remédios modernos. Remédios modernos podem ou não arder, então a restrição
inicial torna o sujeito “remédios que ardem” menor que o termo “remédios
modernos”, que embasa a conclusão. Isso é contra os mecanismos de garantia de
validade de um silogismo.
Quando um erro desses acontece, vemos que está na forma da
declaração, e não no seu conteúdo. Por isso, é uma falácia do tipo formal, que
recebe o nome de ilícito maior. Não se trata de um crime grande,
daqueles de ganhar manchetes de jornal, mas de usar de forma indevida a correlação
entre a premissa maior e a conclusão, que acaba tendo problemas de
distribuição, como comentamos até agora. Às vezes é chatinha de achar, porque
fica aquele aroma de falácia sem aparência escancarada, como acontece nos
inúmeros apelos, e, por isso mesmo, requer um pouco mais de técnica para ser
detectada.
Apenas para finalizar e trazer notícias, meu pé já está bem
melhor e, de fato, não chegou a infeccionar, mesmo usando um medicamento que
não arde, e que só é antigo no nome, já que, sem apelos
à novidade, é para a frente que a farmacêutica deve apontar. Bons ventos a
todos!
Recomendação de leitura:
Olha um artiguinho bem legal e de ótima fonte falando sobre
os antissépticos. É de linguagem bastante técnica, mas dá para situar bem quais
são os mais usados e os mais seguros, com motivos muito bem explicados. Vale a
pena ao menos conhecer.
MCDONNELL, Gerald; RUSSELL, Denver. Antissépticos e
Desinfetantes: Atividade, Ação e Resistência. EUA: PubMed, 1999. Disponível
em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC88911.
Acesso em 01.12.2024.
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