(Não... arquétipos não são isso que aparece no YouTube)
Olá!
Métodos de escoar um bom café não são apenas uma experiência
estética de aromas, sabores e visuais, mas também da percepção de como a mente
humana pode ser engenhosa e oferecer soluções simples para dificuldades
aparentes. Tenho um desses exemplos na minha frente, um belíssimo artefato
conhecido como Chemex.
A origem desse método é das mais interessantes, e tem uma boa parte de fábula. Diz-se que era hábito entre os laboratoristas a utilização de instrumentos de seu trabalho para obter café nos momentos em que não havia melhores oportunidades para fazê-lo. Com isso, um balão de ensaio era utilizado como recipiente…
… enquanto era aproveitado um filtro de laboratório para passar o café, o que era feito através da sua dobra dupla e montagem com uma folha para um lado, e três folhas para o outro.
Conhecendo esse costume, um químico alemão resolveu
patentear a ideia e produzi-la em escala, adicionando uma pega de bambu para
facilitar a utilização pela patuleia.
Para os dias sem filtro de papel, é sempre possível apelar
para o filtro metálico que costuma ser oferecido com o conjunto.
Nome do utensílio: Chemex
Tipo de técnica: percolação em filtro de laboratório
Dificuldade: Média
Espessura do pó: Médio
Dinâmica: um filtro de papel quadrado é redobrado e inserido no bocal do utensílio, com o lado triplo sobre o sulco de serviço. Após escaldamento, o pó é despejado no fundo do cone formado e a água é despejada aos poucos, com cuidado para não afundar o conjunto para o interior do recipiente.
Resíduos: Mínimos.
Temperatura de saída: Média
Nível de ritual: Médio/alto
O Chemex tem essa história legal, de transformar um determinado uso em outro, sem perder sua referência anterior, mas já demonstrando como nós, humanos, somos criativos e fazemos a roda girar. E eis que eu me vejo diante de uma situação semelhante, de transformação de usos, mas que aponta para o lado inverso: o uso inapropriado de termos que foram cuidadosamente burilados, de modo a desvirtuá-lo por completo. Vou dar mais detalhes.
Não me interesso unicamente por Filosofia, mas por coisas
igualmente importantes e por bobagens variadas também. Por isso, os algoritmos
do YouTube me indicam coisas dos mesmos níveis: tem palestras as mais crânio
possíveis e as mais rematadas fanfarras, às vezes coligadas entre si pelo
finíssimo fio de um termo. Eu volta e meia pesquiso sobre Psicologia, e isso me
leva a alguns jargões específicos. Sendo assim, algumas outras sugestões me são
dadas, quase sem nenhum vínculo à real intenção. A mais recente diz respeito a
arquétipos, que é um dos termos mais importantes da psicanálise junguiana, e
que já
tive a oportunidade de tratar, mas há uma autêntica torrente de blogueiros
e blogueiras falando sobre um tal de arquétipo de Cleópatra, arquétipo disso,
daquilo e do outro, com uma significação completamente errônea. Seria algo como
assumir pontos de uma personalidade que, em tese, já estaria gravada em nossa
mente, sendo necessário uma ativação para que essas características passassem a
fazer parte de nossa própria personalidade. Essa ativação seria feita através
da observação de imagens, da recitação de palavras e coisas semelhantes. Uma
incorporação, enfim. Como muitos dos propagadores anunciam objetivos
financeiros, não diria que estão meramente enganados, mas sendo enganosos. É
meu dever letivo tentar trazer o trem de volta para os trilhos, embora seja
risível minha tentativa.
Vamos lá, vou tentar ser o mais didático possível. A ideia
de que nossa mente não é completamente controlável pela consciência não é nada
nova, mas começou a tomar corpo filosófico a partir de Arthur Schopenhauer,
que, na contramão dos racionalistas, pensava que a razão estava muito aquém do
que se imaginava em termos de condução dos pensamentos. Para ele, o verdadeiro
motor estava na vontade; não aquela vontadinha que temos de tomar uma cerveja
gelada em um dia saarauí, mas em um sentimento inesgotável e indominável absolutamente
inespecífico, que é preenchido sucessivamente por algum objeto. Isso pode ter a
conotação que se quiser: sexo, posse, poder, e até mesmo a tal cervejinha. O
ser humano não tem nenhum controle sobre isso - tão logo um desejo seja
satisfeito, outro ocupa seu lugar, do nascimento até a morte. Em resumo,
desejamos sempre, mesmo que não queiramos, mesmo que isso seja uma autêntica
perturbação, mesmo que tenhamos meios materiais suficientes para obter qualquer
coisa.
Na esteira desse pensamento, vem Nietzsche, que se alinha
com o desejo infinito, mas por um viés mais positivo (do seu jeito peculiar).
Para ele, de fato a vontade estava no comando, mas na forma de vontade
de potência, um conceito nietzscheano que se refere a uma força motriz
existente em todo o universo. A vontade de potência consiste na energia
residente em todo ser, e que deveria, ao menos em tese, fazer com que se
desejasse não apenas sobreviver, mas viver bem, viver como em uma explosão de
energia, repletos de experiências intensas. Nietzsche, ao contrário de
Schopenhauer, não vê o desejo incessante como uma corrente a ser arrastada, mas
como parte do pacote que a vida traz, e realizar seu objetivo seria justamente
largar-se ao seu fluxo. Ficou claro que ambos concordam que é a vontade que
impulsiona o mundo, ainda que um ache isso o pior fardo da humanidade, enquanto
o outra pense ser exatamente o melhor que o universo nos dá? É por isso que são
chamados de filósofos voluntaristas.
Freud surge sustentado por esse mesmo pilar, procurando
levar para a ciência o substrato que estava no âmbito da filosofia. Ele
desenvolve uma teoria de funcionamento psíquico que se fundamenta na mesma
ideia de que parte do desempenho da mente não está subordinado ao controle do
indivíduo. Ele compreende que o psiquismo se move por uma porção consciente, a
quem ele chama de ego, e duas inconscientes, denominadas id e superego. O
ego corresponde ao pensamento claro que temos em todo nosso momento de vigília,
como nossas decisões, nossos cálculos e demais coisas. Já o id é o nosso
elemento derivado do fato de sermos animais, puramente instintivo e manifesto
na forma de impulso. É nele que reside o desejo, sendo a libido seu principal
motor, na concepção de Freud. Por outro lado, o superego representa a porção
mental que absorve o ambiente em que se vive, e, com isso, internaliza os seus
conteúdos morais e culturais, que são externos ao indivíduo, mas que, de uma
forma ou de outra, pautam a sua conduta. Um exemplinho porco: quando você é criança,
seu id te impulsiona a enfiar o dedo em qualquer buraquinho de tomada, e seus
atentos pais procuram impedi-lo. Dependendo da urgência ou da agressividade
deles, essa experiência pode ser um tanto traumática, e o limitante superego
pode receber reforços dolorosos, fazendo que seu inconsciente exerça o papel de
seus pais daí por diante. Assim, o ego está constantemente em situação de
pressão. Ele recebe o impulso do id e busca materializá-lo, mas ao fazer isso
dá de frente com os freios do superego, que lhe determina o comportamento
oposto. A mente humana funciona assim e está bem que assim seja, porque um id
sem amarras torna o comportamento ilimitado, e um superego exacerbado preenche
um ser humano de culpas e medos e o imobiliza. Quando há desequilíbrio nesse
jogo, vem as crises psíquicas, como as neuroses.
Jung foi aluno e discípulo de Freud. Concordou com as bases
gerais da psicanálise, mas teve vários pontos dissonantes e complementares em
relação ao ideário do mestre. No ponto que nos interessa, Jung entendia que
havia mais tarefas a serem segregadas no inconsciente. Ele entendia que Freud,
ao dividir a psique em ego, id e superego, estava levando em consideração
unicamente o plano individual, sendo que faltava algo que se referisse à
espécie humana expressa coletivamente.
A mente humana evoluiu como todo e qualquer órgão do corpo
humano. É evidente que nossos mais remotos ancestrais eram bem diferentes do
que somos hoje, e isso porque o ambiente foi selecionando aquelas melhores
características. Uma mão é como é hoje porque polegares opositores se mostraram
mais eficientes para tarefas às quais nossa espécie precisava se dedicar. A
posição ereta se mostrou mais adequada para a vigilância necessária às nossas
vulnerabilidades e os olhos frontais para uma melhor visão do horizonte, e
estas são características de toda a espécie. As exceções, quando ocorrem,
demonstram claro prejuízo para a sobrevivência. No campo da mente, entende-se
que ocorreu o mesmo, com funções mentais comuns e conformações de pensamento
que são distribuídas por toda a humanidade. Vejam como nossas vidas guardam um
pacote considerável de semelhanças: nascemos da mesma forma, atingimos a
puberdade em um tempo semelhante, com alterações corporais igualmente
semelhantes; recebemos, neste meio tempo, instruções de pessoas mais velhas,
que vivem em grupos mais ou menos maiores e assim por diante. Tudo isso é
acompanhado por uma mente que busca se adaptar a todos esses pacotes de
mudanças ocorridos na vida e, estando o melhor adaptados possível, tanto
melhores são suas chances de sobreviver. Se existe uma estrutura que me leva a
reconhecer um perigo, por exemplo, melhores minhas chances de sobreviver.
Portanto, mentalmente somos levados por uma evolução parecida com a corporal.
Não pensamos em absoluto como essa mente se amolda ao cérebro, apenas vamos
vivendo, assim no Brasil como na Austrália, na China, na Namíbia, na Finlândia.
Isso é inconsciente, da mesma forma que ocorre com nosso impulso em pegar um
doce e o refreamento de não o fazer para engordar. Só nos colocamos em
raciocínio quando tudo isso já aconteceu. Como toda a humanidade costura a
linha da sua vida de maneira similar, esses aspectos funcionais se amoldam e se
transmitem por herança de geração a geração. Só que como não temos uma maneira
de enxergar a psique, como enxergamos um coração ou um baço, não é tão simples
de se compreender como se dá essa estruturação. Jung desenvolveu uma hipótese
que explicaria como o inconsciente coletivo é formado a partir de
compartimentos pré-formatados denominados arquétipos.
A palavra arquétipo vem do grego e é a junção das palavras arché,
que significa origem ou princípio, e typos, que significa marca,
impressão. Dessa forma, o arquétipo é uma estrutura mental que já está "pré-gravada”
na mente humana, dada pela herança coletiva que é transmitida para cada um dos indivíduos.
Essas estruturas não são prontas, mas estão preparadas para receber imagens
vindas do mundo exterior, que se articulam e preenchem o arquétipo. Ele é um
“espaço vazio”, pronto para ser preenchido por dados do mundo exterior, de modo
que a mente reconhece inconscientemente um conjunto de circunstâncias que se
encaixam naquele arquétipo e lançam mão dele. Ativar um arquétipo, portanto,
representa preencher uma forma vazia (o arquétipo) com um conteúdo (o fato
ocorrido na vida).
Jung classificou alguns dos arquétipos, e aqui poderemos
verificar como eles não têm nada a ver com o conceito recente de blogueiros e
vendedores de amenidades místicas.
O arquétipo do self é o mais importante deles. Como
eu já falei, na psicologia junguiana, o ego é a porção consciente do
equipamento psíquico, e é preciso que ele se relacione com toda a parte
inconsciente para que a personalidade seja constituída completamente. Afinal de
contas, as divisões entre as instâncias psíquicas não são estanques e nem
isoladas, e precisam “conversar” entre si. O self é o centro dessa
personalidade integrada, da soma entre o consciente e o inconsciente, e, quando
está funcionando adequadamente, produz um indivíduo equilibrado e sem neuroses.
Do contrário, as instâncias não se relacionam harmonicamente entre si e temos
as pessoas que possuem algum tipo de mal psicológico, especialmente naquele
campo da preponderância da instintividade ou da passividade. O self é esse
paradigma que modela onde está cada uma das partes da mente, para ser reducionista
ao extremo.
Outro arquétipo muito importante é o da persona. Ele
corresponde à nossa necessidade de nos diferenciar entre uma imagem
pública e outra privada. Como bem sabemos, não vivemos eremiticamente, mas
em sociedade, o que nos leva à necessidade de equilibrar entre aquilo que
queremos como indivíduos e o que o meio social nos disponibiliza, o que gera,
invariavelmente, um desalinhamento. Para conseguirmos viver nesse meio, é
preciso que haja um meio termo entre o que somos entre quatro paredes e o que
apresentamos em nossa rua, nossa família, enfim, em nossos grupos de convívio.
Há o arquétipo oposto ao anterior, a sombra.
Representa tudo aquilo que não aceitamos em nós mesmos e que queremos ocultar
de nossos meios de convívio, por entendermos se tratar de características
ruins, vexatórias, impudicas, negativas. A tendência do ego é manter essas
qualidades ocultas no inconsciente, e, desta forma, não as incluir na persona,
a parte pública da personalidade.
Outros arquétipos são a dupla anima/animus. Eles são,
respectivamente, a porção psíquica feminina que um homem possui e a masculina de
uma mulher. Estes arquétipos estariam coligados à repressão de certas
características em cada um dos sexos, sendo que no homem estaria reprimida a
sensibilidade e, na mulher, a racionalidade. Estas conformações não seriam uma
predisposição natural destes arquétipos, mas o que o processo evolutivo fez deles.
Tanto isso é verdade que ambos se interpenetram: uma psique equilibrada depende
de que a porção feminina de um homem interaja com o restante da personalidade,
o mesmo se aplicando para o sexo oposto.
Embora haja outros arquétipos que apontam mais para papéis
sociais, como é o caso do herói, do sábio e dos pais, não é possível notar como
eles não tem nada a ver com essa nova ideia que está se propagando como um
rastilho de pólvora? Os arquétipos não se direcionam para pessoas, como uma
Cleópatra, e não são objetos místicos que podem ser utilizados como quando se
diz abracadabra. Aliás, o próprio conceito junguiano de arquétipo é discutível,
como toda a psicologia analítica, mas disso nós trataremos em breve. Se meu
conselho serve, não caiam nesse tipo de embuste, simplesmente isso. E se
informem.
Uma chemex muda o uso original tanto do filtro, quanto da
garrafa, mas não o desvirtua. É exatamente o oposto que ocorre neste caso.
Falar bobagem é uma das funções da linguagem, já vender mentiras é uma das doenças
do capitalismo. É bom ser cuidadoso. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Neste caso, é uma repetição, coisa que não costumo fazer.
Mas o ideal é buscar as fontes primárias.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo.
Petrópolis: Vozes, 2000.
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