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quarta-feira, 31 de maio de 2023

O café filosófico do quotidiano – sobre o que são arquétipos (de fato)

(Não... arquétipos não são isso que aparece no YouTube) 

Olá!

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Métodos de escoar um bom café não são apenas uma experiência estética de aromas, sabores e visuais, mas também da percepção de como a mente humana pode ser engenhosa e oferecer soluções simples para dificuldades aparentes. Tenho um desses exemplos na minha frente, um belíssimo artefato conhecido como Chemex.


A origem desse método é das mais interessantes, e tem uma boa parte de fábula. Diz-se que era hábito entre os laboratoristas a utilização de instrumentos de seu trabalho para obter café nos momentos em que não havia melhores oportunidades para fazê-lo. Com isso, um balão de ensaio era utilizado como recipiente…


… enquanto era aproveitado um filtro de laboratório para passar o café, o que era feito através da sua dobra dupla e montagem com uma folha para um lado, e três folhas para o outro.

Conhecendo esse costume, um químico alemão resolveu patentear a ideia e produzi-la em escala, adicionando uma pega de bambu para facilitar a utilização pela patuleia. Esta pega é unida ao conjunto através de um cordão de couro, que lhe dá estilo e ajuda (segundo o fabricante) a evitar acidentes por quedas.


Para os dias sem filtro de papel, é sempre possível apelar para o filtro metálico que costuma ser oferecido com o conjunto.



Nome do utensílio: Chemex

Tipo de técnica: percolação em filtro de laboratório

Dificuldade: Média

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: um filtro de papel quadrado é redobrado e inserido no bocal do utensílio, com o lado triplo sobre o sulco de serviço. Após escaldamento, o pó é despejado no fundo do cone formado e a água é despejada aos poucos, com cuidado para não afundar o conjunto para o interior do recipiente.

Resíduos: Mínimos.

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio/alto

O Chemex tem essa história legal, de transformar um determinado uso em outro, sem perder sua referência anterior, mas já demonstrando como nós, humanos, somos criativos e fazemos a roda girar. E eis que eu me vejo diante de uma situação semelhante, de transformação de usos, mas que aponta para o lado inverso: o uso inapropriado de termos que foram cuidadosamente burilados, de modo a desvirtuá-lo por completo. Vou dar mais detalhes.

Não me interesso unicamente por Filosofia, mas por coisas igualmente importantes e por bobagens variadas também. Por isso, os algoritmos do YouTube me indicam coisas dos mesmos níveis: tem palestras as mais crânio possíveis e as mais rematadas fanfarras, às vezes coligadas entre si pelo finíssimo fio de um termo. Eu volta e meia pesquiso sobre Psicologia, e isso me leva a alguns jargões específicos. Sendo assim, algumas outras sugestões me são dadas, quase sem nenhum vínculo à real intenção. A mais recente diz respeito a arquétipos, que é um dos termos mais importantes da psicanálise junguiana, e que já tive a oportunidade de tratar, mas há uma autêntica torrente de blogueiros e blogueiras falando sobre um tal de arquétipo de Cleópatra, arquétipo disso, daquilo e do outro, com uma significação completamente errônea. Seria algo como assumir pontos de uma personalidade que, em tese, já estaria gravada em nossa mente, sendo necessário uma ativação para que essas características passassem a fazer parte de nossa própria personalidade. Essa ativação seria feita através da observação de imagens, da recitação de palavras e coisas semelhantes. Uma incorporação, enfim. Como muitos dos propagadores anunciam objetivos financeiros, não diria que estão meramente enganados, mas sendo enganosos. É meu dever letivo tentar trazer o trem de volta para os trilhos, embora seja risível minha tentativa.

Vamos lá, vou tentar ser o mais didático possível. A ideia de que nossa mente não é completamente controlável pela consciência não é nada nova, mas começou a tomar corpo filosófico a partir de Arthur Schopenhauer, que, na contramão dos racionalistas, pensava que a razão estava muito aquém do que se imaginava em termos de condução dos pensamentos. Para ele, o verdadeiro motor estava na vontade; não aquela vontadinha que temos de tomar uma cerveja gelada em um dia saarauí, mas em um sentimento inesgotável e indominável absolutamente inespecífico, que é preenchido sucessivamente por algum objeto. Isso pode ter a conotação que se quiser: sexo, posse, poder, e até mesmo a tal cervejinha. O ser humano não tem nenhum controle sobre isso - tão logo um desejo seja satisfeito, outro ocupa seu lugar, do nascimento até a morte. Em resumo, desejamos sempre, mesmo que não queiramos, mesmo que isso seja uma autêntica perturbação, mesmo que tenhamos meios materiais suficientes para obter qualquer coisa.

Na esteira desse pensamento, vem Nietzsche, que se alinha com o desejo infinito, mas por um viés mais positivo (do seu jeito peculiar). Para ele, de fato a vontade estava no comando, mas na forma de vontade de potência, um conceito nietzscheano que se refere a uma força motriz existente em todo o universo. A vontade de potência consiste na energia residente em todo ser, e que deveria, ao menos em tese, fazer com que se desejasse não apenas sobreviver, mas viver bem, viver como em uma explosão de energia, repletos de experiências intensas. Nietzsche, ao contrário de Schopenhauer, não vê o desejo incessante como uma corrente a ser arrastada, mas como parte do pacote que a vida traz, e realizar seu objetivo seria justamente largar-se ao seu fluxo. Ficou claro que ambos concordam que é a vontade que impulsiona o mundo, ainda que um ache isso o pior fardo da humanidade, enquanto o outra pense ser exatamente o melhor que o universo nos dá? É por isso que são chamados de filósofos voluntaristas.

Freud surge sustentado por esse mesmo pilar, procurando levar para a ciência o substrato que estava no âmbito da filosofia. Ele desenvolve uma teoria de funcionamento psíquico que se fundamenta na mesma ideia de que parte do desempenho da mente não está subordinado ao controle do indivíduo. Ele compreende que o psiquismo se move por uma porção consciente, a quem ele chama de ego, e duas inconscientes, denominadas id e superego. O ego corresponde ao pensamento claro que temos em todo nosso momento de vigília, como nossas decisões, nossos cálculos e demais coisas. Já o id é o nosso elemento derivado do fato de sermos animais, puramente instintivo e manifesto na forma de impulso. É nele que reside o desejo, sendo a libido seu principal motor, na concepção de Freud. Por outro lado, o superego representa a porção mental que absorve o ambiente em que se vive, e, com isso, internaliza os seus conteúdos morais e culturais, que são externos ao indivíduo, mas que, de uma forma ou de outra, pautam a sua conduta. Um exemplinho porco: quando você é criança, seu id te impulsiona a enfiar o dedo em qualquer buraquinho de tomada, e seus atentos pais procuram impedi-lo. Dependendo da urgência ou da agressividade deles, essa experiência pode ser um tanto traumática, e o limitante superego pode receber reforços dolorosos, fazendo que seu inconsciente exerça o papel de seus pais daí por diante. Assim, o ego está constantemente em situação de pressão. Ele recebe o impulso do id e busca materializá-lo, mas ao fazer isso dá de frente com os freios do superego, que lhe determina o comportamento oposto. A mente humana funciona assim e está bem que assim seja, porque um id sem amarras torna o comportamento ilimitado, e um superego exacerbado preenche um ser humano de culpas e medos e o imobiliza. Quando há desequilíbrio nesse jogo, vem as crises psíquicas, como as neuroses.

Jung foi aluno e discípulo de Freud. Concordou com as bases gerais da psicanálise, mas teve vários pontos dissonantes e complementares em relação ao ideário do mestre. No ponto que nos interessa, Jung entendia que havia mais tarefas a serem segregadas no inconsciente. Ele entendia que Freud, ao dividir a psique em ego, id e superego, estava levando em consideração unicamente o plano individual, sendo que faltava algo que se referisse à espécie humana expressa coletivamente.

A mente humana evoluiu como todo e qualquer órgão do corpo humano. É evidente que nossos mais remotos ancestrais eram bem diferentes do que somos hoje, e isso porque o ambiente foi selecionando aquelas melhores características. Uma mão é como é hoje porque polegares opositores se mostraram mais eficientes para tarefas às quais nossa espécie precisava se dedicar. A posição ereta se mostrou mais adequada para a vigilância necessária às nossas vulnerabilidades e os olhos frontais para uma melhor visão do horizonte, e estas são características de toda a espécie. As exceções, quando ocorrem, demonstram claro prejuízo para a sobrevivência. No campo da mente, entende-se que ocorreu o mesmo, com funções mentais comuns e conformações de pensamento que são distribuídas por toda a humanidade. Vejam como nossas vidas guardam um pacote considerável de semelhanças: nascemos da mesma forma, atingimos a puberdade em um tempo semelhante, com alterações corporais igualmente semelhantes; recebemos, neste meio tempo, instruções de pessoas mais velhas, que vivem em grupos mais ou menos maiores e assim por diante. Tudo isso é acompanhado por uma mente que busca se adaptar a todos esses pacotes de mudanças ocorridos na vida e, estando o melhor adaptados possível, tanto melhores são suas chances de sobreviver. Se existe uma estrutura que me leva a reconhecer um perigo, por exemplo, melhores minhas chances de sobreviver. Portanto, mentalmente somos levados por uma evolução parecida com a corporal. Não pensamos em absoluto como essa mente se amolda ao cérebro, apenas vamos vivendo, assim no Brasil como na Austrália, na China, na Namíbia, na Finlândia. Isso é inconsciente, da mesma forma que ocorre com nosso impulso em pegar um doce e o refreamento de não o fazer para engordar. Só nos colocamos em raciocínio quando tudo isso já aconteceu. Como toda a humanidade costura a linha da sua vida de maneira similar, esses aspectos funcionais se amoldam e se transmitem por herança de geração a geração. Só que como não temos uma maneira de enxergar a psique, como enxergamos um coração ou um baço, não é tão simples de se compreender como se dá essa estruturação. Jung desenvolveu uma hipótese que explicaria como o inconsciente coletivo é formado a partir de compartimentos pré-formatados denominados arquétipos

A palavra arquétipo vem do grego e é a junção das palavras arché, que significa origem ou princípio, e typos, que significa marca, impressão. Dessa forma, o arquétipo é uma estrutura mental que já está "pré-gravada” na mente humana, dada pela herança coletiva que é transmitida para cada um dos indivíduos. Essas estruturas não são prontas, mas estão preparadas para receber imagens vindas do mundo exterior, que se articulam e preenchem o arquétipo. Ele é um “espaço vazio”, pronto para ser preenchido por dados do mundo exterior, de modo que a mente reconhece inconscientemente um conjunto de circunstâncias que se encaixam naquele arquétipo e lançam mão dele. Ativar um arquétipo, portanto, representa preencher uma forma vazia (o arquétipo) com um conteúdo (o fato ocorrido na vida).

Jung classificou alguns dos arquétipos, e aqui poderemos verificar como eles não têm nada a ver com o conceito recente de blogueiros e vendedores de amenidades místicas.

O arquétipo do self é o mais importante deles. Como eu já falei, na psicologia junguiana, o ego é a porção consciente do equipamento psíquico, e é preciso que ele se relacione com toda a parte inconsciente para que a personalidade seja constituída completamente. Afinal de contas, as divisões entre as instâncias psíquicas não são estanques e nem isoladas, e precisam “conversar” entre si. O self é o centro dessa personalidade integrada, da soma entre o consciente e o inconsciente, e, quando está funcionando adequadamente, produz um indivíduo equilibrado e sem neuroses. Do contrário, as instâncias não se relacionam harmonicamente entre si e temos as pessoas que possuem algum tipo de mal psicológico, especialmente naquele campo da preponderância da instintividade ou da passividade. O self é esse paradigma que modela onde está cada uma das partes da mente, para ser reducionista ao extremo.

Outro arquétipo muito importante é o da persona. Ele corresponde à nossa necessidade de nos diferenciar entre uma imagem pública e outra privada. Como bem sabemos, não vivemos eremiticamente, mas em sociedade, o que nos leva à necessidade de equilibrar entre aquilo que queremos como indivíduos e o que o meio social nos disponibiliza, o que gera, invariavelmente, um desalinhamento. Para conseguirmos viver nesse meio, é preciso que haja um meio termo entre o que somos entre quatro paredes e o que apresentamos em nossa rua, nossa família, enfim, em nossos grupos de convívio.

Há o arquétipo oposto ao anterior, a sombra. Representa tudo aquilo que não aceitamos em nós mesmos e que queremos ocultar de nossos meios de convívio, por entendermos se tratar de características ruins, vexatórias, impudicas, negativas. A tendência do ego é manter essas qualidades ocultas no inconsciente, e, desta forma, não as incluir na persona, a parte pública da personalidade.

Outros arquétipos são a dupla anima/animus. Eles são, respectivamente, a porção psíquica feminina que um homem possui e a masculina de uma mulher. Estes arquétipos estariam coligados à repressão de certas características em cada um dos sexos, sendo que no homem estaria reprimida a sensibilidade e, na mulher, a racionalidade. Estas conformações não seriam uma predisposição natural destes arquétipos, mas o que o processo evolutivo fez deles. Tanto isso é verdade que ambos se interpenetram: uma psique equilibrada depende de que a porção feminina de um homem interaja com o restante da personalidade, o mesmo se aplicando para o sexo oposto.

Embora haja outros arquétipos que apontam mais para papéis sociais, como é o caso do herói, do sábio e dos pais, não é possível notar como eles não tem nada a ver com essa nova ideia que está se propagando como um rastilho de pólvora? Os arquétipos não se direcionam para pessoas, como uma Cleópatra, e não são objetos místicos que podem ser utilizados como quando se diz abracadabra. Aliás, o próprio conceito junguiano de arquétipo é discutível, como toda a psicologia analítica, mas disso nós trataremos em breve. Se meu conselho serve, não caiam nesse tipo de embuste, simplesmente isso. E se informem.

Uma chemex muda o uso original tanto do filtro, quanto da garrafa, mas não o desvirtua. É exatamente o oposto que ocorre neste caso. Falar bobagem é uma das funções da linguagem, já vender mentiras é uma das doenças do capitalismo. É bom ser cuidadoso. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Neste caso, é uma repetição, coisa que não costumo fazer. Mas o ideal é buscar as fontes primárias.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000.

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