(Será que a filosofia é um caminho que te tira a fé?)
“Como é possível que hoje muitas minorias religiosas sofram discriminação ou perseguição? Como permitimos que nesta sociedade altamente civilizada existam pessoas que são perseguidas simplesmente por professar publicamente sua fé? Isso não só é inaceitável, é desumano, é insano”.
Jorge Maria Bergoglio, aka Papa Francisco I
Olá!
Métodos de extração de café assemelham-se à pesquisa
científica, tanto em sua forma, quanto em seu propósito. Isso acontece porque
certos métodos parecem ter saído de um laboratório (quando de
fato não tenham saído), enquanto há um espírito de experimentação para se
descobrir maneiras cada vez melhores de obter seu objetivo, o líquido.
Isso explica por que há tantos lançamentos, às vezes
compostos por grandes parafernálias e maquinismos, outras por inovações simples
e bem sacadas. Um dos principais problemas é deixar a água passar muito
demoradamente, porque isso traz a tendência ao amargor. Claro que quem toma
café já espera e aceita alguns IBU’s*, mas há um limite que te obriga a colocar
açúcar, e isso não é desejável. Normalmente isso é resolvido engrossando a
moagem, porque a solução concorrente seria acelerar a gravidade, o que não é
tão fácil assim.
A empresa japonesa Kalita, célebre em pesquisa desse tipo de
problema, construiu uma opção muito simples de resolver o problema, com um
produtinho chamado Syphon.
Olhando por fora, é um porta-filtro como outro qualquer, que
usa filtros trapezoidais, iguais àqueles da Melitta link, feitas com a mesma
numeração e as mesmas dobras.
O segredo se vê por dentro. Uma pequena válvula faz com que ocorra um efeito sifão, o que “puxa” a água para baixo com mais velocidade e impede o excesso de compostos amargos.
Sou obrigado a confessar que duvidei da promessa, mas ela se
cumpriu. Um simples caminho colocado na posição certa fez com que todo o
líquido passasse mais rápido, e o resultado de fato ficou de acordo,
minimizando a extração do amargor.
Nome do utensílio: Kalita Syphon
Tipo de técnica: Percolação
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: média
Dinâmica: Aloca-se um filtro trapezoidal no porta-filtro com as dobras de costume. Após a saturação, o pó é depositado e a água pode ser despejada aos poucos ou toda de uma vez, sempre após uma pré-infusão. Aguarda-se um tempo de escoamento e é tudo.
Resíduos: Baixos
Temperatura de saída: Média
Nível de ritual: médio
A pergunta subsequente diz respeito à minha “saída de
armário”, feita ainda em 2016, mas assumida somente três anos depois. No que
seus estudos de filosofia influenciaram sua posição atual com relação à
religião?
A pergunta ocorre porque assumi minha falta de religião, e
tem gente que relaciona isso ao fato de eu ter estudado filosofia. E já escutei
falar muitas e muitas vezes que o ambiente acadêmico, seja voltado para a
filosofia, seja para a ciência, favorece uma visão onde o fenômeno deus é
excluído. Isso não é nem verdade, nem mentira. Há pesos e contrapesos na
relação.
A primeira questão é a diversidade de visões. É verdade que
vários dos filósofos de ponta posteriores à Revolução Francesa pensaram em um
universo sem divindades, mas pontas de lança como Kant e Hegel não descartavam
Deus nos seus sistemas, muito pelo contrário. Outro exemplo vem dos primórdios,
quando todos os filósofos da physis, de uma forma ou de outra, colocavam
a chancela divina em seus tratados, coisa que somente Leucipo e Demócrito
colocaram em um desvio puramente materialista, o atomismo. Tales, Anaximandro,
Xenófanes, Empédocles e todos os outros colocavam os deuses como arché da arché
ou como os artífices que as moldavam, mesmo que o substrato da realidade fosse
um elemento material.
Então não é pela ausência de deuses que estudar filosofia
leva alguém a se tornar ateu. O que eu declaro ser realmente assertivo nessa
ideia é o pensar aberto, pensar diverso, pensar criticamente. Quando nós vemos,
no transcurso da história da filosofia, o seu andar dialético, então aprendemos
que as posições em antagonismo são igualmente válidas, e a questão fica no
valor de verdade que cada uma pode ter. Ou seja, sim, houve influência, mas ela
não foi decisiva. E a filosofia induz ateísmo em que já está propenso a isso.
Como eu
disse anteriormente, minha desconversão não se deu através de um fenômeno
pontual, mas de um longo trajeto em que eu passei, onde a cada dia eu me
confrontava com uma nova explicação melhor do que a religião me dava, fazendo
ela ser colocada mais e mais no âmbito do mito. Inicialmente, quando você não
obtém mais respostas na religião que você professa, a tendência é manter a
estrutura e substituir a divindade, e é aí que temos as conversões. Isso é
fácil de explicar: não se muda a maneira de pensar, apenas os objetos da fé. É
como quando o técnico quer dar mais velocidade no ataque - ele tira o
centroavante pesadão e coloca um ponteiro lépido. Mudam-se as peças, mas
mantém-se a lógica de se ter um mesmo modo de fazer o jogo. O alicerce dessa
estrutura é a fé, que não é nem um pouco fácil de ser removida. É por isso que
eu falo de processos lentos.
Quando observamos outras ideias (sem se levar em conta
outras religiões), começamos a trazer possibilidades novas para nosso arcabouço
intelectual. Elas podem ser aceitas e confrontadas com derrota, ou simplesmente
rechaçadas, e a fé vence. Não há nada de mal nisso, reforço. Para os
religiosos, é um teste de fé; para os não religiosos, é mais uma hipótese que
se coloca.
Entretanto, um olhar que encaminhe para a realidade
palpável, para a materialidade tangível, para o universo observável,
inevitavelmente conduz à ciência. E aí a porca torce o rabo.
Não se trata de colocar a ciência como oposição à religião,
como tantos gostam de fazer. Há duas questões: a ciência explica o mundo de
maneira muito melhor que a religião, a não ser que você acredite que não são
bactérias que causem as infecções, e sim a revolta divina. Por conta disso,
muitos religiosos veem a ciência como fumaça nos olhos, que tiram a função de
Deus no universo, e que isso é ação diabólica e etc. Eu acho isso um erro,
porque vem da ideia de inerrância e de literalidade dos escritos, do contrário
bastaria imaginar um deus que movimenta todos os aspectos científicos. Há religiões
que fazem isso, inclusive. Sabiamente.
Mas… se eu olho para o universo e vejo que ele se basta,
para que preciso incluir uma divindade que lhe justifique? Certo: há muitas
coisas que ainda não são possíveis de explicar pela via da ciência. E é assim
mesmo que funcionam as coisas. Não é preciso criar um deus
das lacunas a cada buraco no conhecimento. Por vezes, é só preciso esperar
e se conformar. Isso é chato, mas é honesto.
E como isso influencia em minha vida, em minhas posições?
Pouco, na verdade. Eu não mudei quase nada desde que saí do armário,
provavelmente porque já tinha a cabeça meio dirigida para maneiras parecidas de
ver a vida com as que tenho agora. Sempre usei para mim mesmo o subterfúgio do
deus que guia o mundo e a natureza, então tudo o que ocorre tem sua explicação
natural e sua explicação metafísica, uma em consonância com a outra. Então, não
dói tirar a segunda. O universo permanece tal e qual, com ou sem deus, para
quem o vê sob critérios científicos. Se te traz conforto a fé, pode mantê-la
sem problema algum. Só não venha me dizer que há literalidade nos escritos. Aí,
vamos discordar.
Eu sou absolutamente contra a caceteação de ateus que se
parecem com os religiosos mais chatos fazendo seus proselitismos de dedo em
riste. Vai contra o espírito de liberdade que povoa quem já não se prende mais
a uma convicção religiosa, parecendo simplesmente ter trocado de sinal.
Reconheço que há gente que tem um propósito em mostrar como há gente que abusa
da fé alheia, mas isso é, na essência, contraproducente.
Sendo assim, eu acho que a única mudança de fato está na
visão que eu tinha sobre o estado laico, provavelmente a principal bandeira a
ser levantada pelos sem-fé do mundo todo, porque temos dificuldades de olhar
certos aspectos da falta de laicidade enquanto estamos dentro da casinha. É
quase como o que acontece com o planeta Terra: só saindo dele sabemos de
verdade como ele é, redondo, azul, cercado de nuvens. Não deveria ser difícil
para um religioso respeitar convicções alheias. Mas é um viés
de ponto cego achar que não somos influenciados pelas ideias que nos estão
calcadas.
Enxergar o mundo pelas vias do estado laico é a única
maneira de assegurar não só o direito de não seguir a nenhuma religião, mas
também e principalmente o direito de professar religiões. Quando se olha para a
história, vê-se que se matou por causa de religiões. Quando há chancela do
Estado, pior ainda é a situação. A essência da democracia está em se poder
praticar todos os atos que queiramos, desde que não haja proibição para isso. O
Estado, portanto, não pode tutelar a religião, seja lá qual for.
Quando vemos um rito qualquer em um órgão público, devemos
ficar alerta. Missa, culto, cerimônia, nada disso deve ser permitido dentro de
um contexto englobado pelo Estado. Ora, direis, mas agrupa-se fora do Congresso
em uma igreja qualquer e o efeito é o mesmo. Sim, mas é preciso que o próprio
Estado mantenha seus ritos: o de não permitir que uma religião prepondere sobre
as demais. Ainda que se permita todo e qualquer culto, ainda assim há o direito
de quem não professa fé alguma. É antipático? É, mas só assim todos tem seu
direito respeitado.
Em um momento onde cada vez mais vemos o congresso sendo
dominado por parlamentares com posição religiosa misturada aos temas sociais,
tanto mais importante vai se tornando a separação entre o que as pessoas creem
e o que as pessoas fazem em comum. Me dá rinite e artrite só de pensar em uma
sociedade dominada pelo que quer uma determinada vertente religiosa, por mais
que ela seja majoritária.
E é preciso ficar atento, porque a coisa está acontecendo
debaixo de nossos olhos. Tenho ojeriza de que me digam o que fazer sem um
propósito coletivo. A melhor maneira de me fazer voltar a ser cristão é me
proibir de ser cristão.
Agora vou tomar meu café apressado por belos fenômenos
físicos aplicados à arte. Bons ventos a todos! Um ótimo 2025.
Recomendação de leitura:
É um livro que carrega meio forte nas cores, mas não deixa
de trazer muitas informações importantes sobre a formação de uma bancada
religiosa no Congresso Nacional. Em tempo: o tamanho está ainda maior hoje.
DIP, Andrea. Em Nome de Quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
*IBU - International Bitterness Unit é uma padronização para
se medir o quão amarga é uma bebida, e é muito utilizada para dar ideia
sensorial de cervejas.
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