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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

A morte e a eternidade do rock’n’roll

(O rock morreu? Viva o rock!!!) 

“Pra que sofrer com despedida

Se quem parte não leva

Nem o sol, nem as trevas

E quem fica não se esquece

Tudo que sonhou?

Rita Lee

Olá! 

Vou começar o texto de hoje com uma notícia chata. A dona Madalena morreu. Ora (direis), a dona Madalena tinha 93 anos, vamos combinar que não se trata de uma manchete de repercussão nacional. Não, não é, de fato, mas o mundo é feito de pequenos mundos, e, por isso, há relevância naquele que eu vivo, especialmente pelo trabalhão que deu o seu encaminhamento. Obviamente, ela morreu de idade, como se diz por aí, mas o diagnóstico preciso foi uma embolia pulmonar. Vinha com uma tossinha chata, e a patroa a levou ao hospital, para dar uma olhada. É aquele momento em que os médicos ficam em uma encruzilhada quando deparam com o caso: não intervir é praticamente condenar a pessoa, intervir é ainda mais arriscado. Sendo assim, a alternativa é clinicar e observar, tentando ver onde vai dar. Deu onde deu.

A dona Madalena tinha o hábito de tirar uma soneca depois do almoço, e foi nesse momento que se deu o passamento. Uma morte de passarinho, como fala a patuleia. A patroa, como de hábito, desceu ao apartamento dela às 16 horas, e deu de frente com aquele corpo imóvel. “Tá dormindo ainda”, pensou ela, mas juntou lé com cré e se deu conta de que, apesar da boca aberta, o ronco nosso de cada dia não vinha. Aproximou-se lentamente e a chamou, sem resposta. Encostou a mão no corpo já frio e diagnosticou o fato. Daí por diante, aquela habitual correria se estabeleceu, com a consorte chamando o SAMU, que chamou a Polícia, que chamou o rabecão, que chamou a funerária, que chamou o andor, e daí para a carneira, o horroroso nome dado naquele cemitério à gaveta onde os cadáveres repousam.

Eu acompanhei a patroa desde o momento em que voltei para casa, incluindo delegacia e reconhecimento do cadáver. O IML* é meio seco com essa questão. Traz o corpo até a porta dos carros e chama o defunto pelo nome, para que os parentes venham ver se o boneco pertence a eles. Embora a dona Madalena não fosse nenhuma menininha, ela não era exatamente feia, mas estava com uma cara terrível: de boca aberta e dentes para fora, já naquela alegre coloração típica dos defuntos. Ao contrário da morte de passarinho precitada, tínhamos uma figuração de sofrimento nesse momento.

Na mesma hora lembrei da morte de um cachorro que eu tive, chamado Coronel. Ele sofria da mesma doença da dona Madalena: velhice. Tinha problemas do coração e um câncer, que, felizmente, era muito preguiçoso.  Na noite anterior à sua morte, passou a noite inteira andando para lá e para cá, sem conseguir dormir, com bastante dificuldade para respirar. Fui me arrumar para levá-lo ao veterinário, já pensando se valia a pena aquele sofrimento, mas ele mesmo resolveu a parada antes. Enquanto tomava um café para acordar, ele veio próximo à porta, arfando.  De repente, ele ficou paralisado e fez um esgar de forte dor, desmoronando de lado. Já no chão, um chorinho quase imperceptível foi a sua despedida do mundo, apesar de se manter de olhos abertos e boca repuxada. É feia a cara da morte.

Infelizmente (ou não), ainda não inventaram uma maneira de manter as coisas eternas. Isso não se aplica apenas a pessoas e bichos, mas também a povos, países, tendências e até mesmo ideias. Isso faz com que os costumes caiam na mesma vala comum, e com isso as modas e as correntes em geral, incluindo as musicais. Como sou velha guarda, gosto de acompanhar canais idem, e é meio recorrente a ideia de que velamos um morto. Dizem que o rock morreu. Será verdade?

Vou começar fazendo um relato empírico pessoal. Eu-jovem tinha muita sanha em montar minha própria banda, e o fiz por cinco vezes, fora as jams ocasionais com os amigos. Cinco tentativas frustradas, que se desvaneceram tão logo a realidade tenha sido posta às suas frentes. Eram tempos de vontades boas e instrumentos ruins, de letras que falavam de barreiras comunicativas, de desejos inalcançáveis, de protesto e de pessimismo, vide Legião, Engenheiros, Ira! e tantos outros, e eu queria também dar meus gritos. Como eu, tantos outros eus-jovens tinham os mesmos anseios e tentavam expressar isso no seu rock de garagem, básico e bem expresso, sem muitos volteios. Não havia comodismo: carregávamos nossa bateria em um Fusca, que não é notável pelo espaço disponível. Era o carro que tínhamos, e os outros instrumentos iam na mão mesmo. Alguns dos músicos vinham de longe, e sacrificávamos os domingos para ensaiar músicas próprias e de outrem. Isso se repetia em muitas garagens, quartos, quintais, salas e cômodos do bairro em que eu morava. Tinha grupos com nomes como Visão Natural, Opção, Gregs, Alma, Espermaloprados (que nome), a banda do Almir (que eu não lembro o nome), e as que eu passei: Carnívoro, Tropa de Choque, Sentença de Fogo, Mosaico e, principalmente, Exílio. Cada uma delas tem sua história, sua produção, suas ideias e ideais. Era bem comum andar pelas ruas e ouvir os rangidos das guitarras pobres e dos amplificadores rasteiros, aterrorizando as vizinhanças como fazem os batidões hoje em dia. Afinando bem os ouvidos, era possível notar talento e musicalidade, e principalmente uma indisposição com o mundo que nos cercava (e a vontade de pegar menininhas). Tínhamos medo da Guerra Fria, e também da penúria do país.

Hoje em dia, os computadores permitem fazer coisas que nem nos nossos mais róseos sonhos seria possível de realizar. Todos os pedais de efeitos que não podíamos comprar estão no clique de um botão na tela. Uma mesa de quatro canais, raridade quase impossível, é um conceito infinito em um dos Sound Forge da vida. Não dá para ter uma bateria? Tem programa para isso. A gravação da voz ficou xoxa, capenga, manca, anêmica, frágil e inconsistente? Há sempre um Autotune para fortalecer a amizade. Um apoio e tanto para quem tocava em pedaços de pau com arame, ou tambores que perdiam para Tupperwares.

Mas eu ando pelas mesmas ruas, mesmos bairros e mesmas garagens e não vejo mais bandas tocando. Ouço, sim, rapaziadas que se sentam na porta de casa com poderosas caixas acústicas que projetam a quilômetros aquele sertanejinho xexelento pelos quatro ventos, vingando-se da minha rebeldia juvenil. Há todos esses recursos, fora o barateamento dos instrumentos e sua melhor qualidade, e é muito difícil encontrar esse antigo entusiasmo. 

Bem, sertanejos não se ocupam mais de tocar suas violas e sanfonas, e basta aprender a “cantar” na terça acima ou abaixo para se proclamar cantor sertanejo. As letras você pega em poemas de segundanistas (do primário). Já os funkeiros precisam de maquininhas virtuais de gerar ritmo e aprender o máximo possível de palavrões. Cospem na cara da sociedade dessa forma e é suficiente para eles. Assim, o aprendizado de um instrumento ou passar mais de meia hora escrevendo uma letra não está na moda neste momento, e não significa necessariamente que a realidade vai se manter assim para sempre, mas essa é a realidade atual e é baixa a produção rockeira, muito longe do mainstream.

Há duas respostas comuns para essa questão: quem disse que não há produção e tal banda salvou o rock. São duas meias verdades. Existe, sim, gente fazendo sons novos e bons, assim como há ainda velhos lobos que não se limitam a viver das glórias passadas, mas não na quantidade que se praticava na década de 80, isso é objetivo e empírico. E dizer que tal banda salvou o rock é um lugar comum que usamos quando achamos alguma novidade que vai remexer nas gavetas da nossa memória e trazer algo semelhante aos “bons tempos”. Eu mesmo fiz isso aqui, sem um grande senso crítico, mas com a intenção de apresentar uma novidade que me empolgou, só isso.

O fato é que o rock não morre; ele subsiste por si só. E sabe por quê? Porque há limite no animismo, no sentido de que dizer que uma corrente morta é uma metaforização. As coisas vão e voltam, e o rock está em um momento em que ele foi. Daqui a pouco volta? É provável, já que a corrente foi muito impactante para simplesmente desaparecer. Dois exemplinhos de como as coisas voltam: o foxtrot era um ritmo da década de 30 da século passado, e ficou adormecido como música de velho até voltar como estilo de dança a partir dos anos 2000, com seu intenso deslizar e cruzar de pernas, porque acharam que se adaptava bem à música eletrônica de então. O outro é mais extremo: o canto gregoriano, surgido lá nos idos do século VI no mínimo, e que teve uma hype depois dos anos 2000, em combinação com a mesma música eletrônica.

Mas, se não voltar, ficará no registro, não há grandes dramas nisso. Há ondas que vem e que vão, assim como há águas que batem nas pedras e se desmancham na espuma. A vida é cíclica sem necessidade de um eterno retorno, e faz parte sabermos viver o hoje, colher o dia. O que é mais certo é que os sertanejos e os batidões aos quais me referi vão passar também, para serem substituídos por coisas que talvez consideremos ainda piores. Sabe-se lá como serão as coisas com inteligência artificial atuando, já que não há grandes problemas em desfiar a sutil poética existente nessas duas correntes. Pode ser que sejam construídas canções personalíssimas, que sirvam para um único contribuinte, quem sabe?

Para além da poética própria dos inícios e fins, entretanto, há uma vida prática onde comemos nosso arroz-com-feijão. Os festivais são, desde a época de Woodstock, símbolos de uma coletividade que se agrega em torno de ideais. Aí vem um tal de Rock in Rio e traz um de seus dias específico daquele mesmo sertanejo que tanto me provoca ojeriza. Que sentido tem isso? Uma hipótese que coloco é que o rock foi capaz de feitos históricos: festivais gigantescos que simbolizavam uma nova juventude, a união do mundo para salvaguardar a miséria, a revolta contra as guerras, uma vontade de mudança, a contraposição ao mundo estabelecido pelos adultos de plantão. Nenhum show de sertanejo foi capaz de mobilizações para além do próprio show, como faz o rock, e isso dá um selo de credibilidade semelhante ao da ciência –  toda pseudociência quer ser ciência para ganhar as credenciais que esta conseguiu por sua seriedade e capacidade de gerar confiança. Ou, no caso, de apontar para um sentido, para uma luta, para um ideal.

Por isso, mesmo que esteja morto, o tal do rock and roll, nas suas mais diferentes vertentes, carrega a função de ser porta-voz da juventude. Mortos deixam registros: fotos, histórias, e, no caso, músicas. É verdade que o rap continua carregando uma bandeira semelhante, e o funk, por incrível que pareça, faz o papel de contraposição ao que se empurra goela abaixo da rapaziada, mas vivemos o estranho fenômeno de adolescentes conservadores, o que é quase um contrassenso, e já não vemos bandeiras sendo carregadas. 

Dizem que banda x ou y salvaram o rock, o que não é verdade, se analisarmos calmamente a impressão que temos: o fato é o mainstream é de outras tendências agora. Então resta presentificar o passado ou fazer um trabalho de garimpagem, o que é muito tranquilo nos dias de hoje, com os Deezers e Spotifys. Na primeira hipótese, há milhares e milhares de opções, milhões e milhões de horas de músicas, que podem ser localizadas em terabytes de textos que trazem boas indicações, ao custo de uma conexão de internet. É tanto material que é impossível de conhecer tudo, e sempre fica no ar aquela pergunta: “como eu nunca tinha ouvido isso?”. Exemplifiquei uma experiência própria neste texto. Na segunda, há muita coisa boa surgindo a cada instante, embora não pululem no dial das rádios como outrora, e demanda do contribuinte uma disposição em encontrar. Algumas bandas muito boas, novas e antigas, estão a pleno vapor e produzindo material de primeira. o Big Big Train continua fazendo progressivo de primeira, os japoneses do Koenjihyakkei continuam fazendo suas maluquices e o Gojira faz seu metal pesadíssimo há quase trinta anos. As três meninas mexicanas do The Warning produzem um hard rock afiadíssimo, enquanto as inesperadas indonésias do Voice of Baceprot desmontam qualquer tipo de estereótipo. Material há.

Talvez a grande dificuldade que temos hoje em dia é se centrar no novo. É quase inevitável que comparemos o que as bandas velhas fazem de novo com o que elas faziam antes, geralmente em prejuízo. E as bandas novas, nós as olhamos como inferiores ou mesmo meras imitadoras. Observo, por exemplo, o caso da banda Greta van Fleet. A uma primeira audição, dizemos ser uma imitação servil e desditosa do Led Zeppelin, uma cópia escancarada até nos trejeitos vocais. Mas eu resolvi olhar por outro ângulo. Digamos que o van Fleet nunca tenha existido, e seus álbuns tenham sido lançados em um retorno do Led Zeppelin. Eu diria que estes seriam decepcionantes? Que consistiriam uma categoria de álbuns desgraçados? Não, eu diria que seria um retorno muito digno. Não seria o caso de colocá-los na mesma prateleira do II e do IV, mas dariam credenciais para não se dizer que os velhos membros deveriam estar jogando bocha e dominó.

Sendo assim, entendo que nós mesmos criamos o que se chama de morte do rock, porque nós nos tornamos rigorosos demais. U2, Metallica, Guns’n’Roses e tantas outras bandas lançaram materiais que diferiam de seus inícios de carreira, e que não foram bem acolhidos, porque os fãs queriam mais e mais e mais do mesmo. Pensem no seguinte: o mesmo nós já temos, e porque não queremos o mais, ele não vem. Não adianta reclamar: a morte do rock vem dos fãs.

Ou então não é nada disso e eu só estou devaneando pelo excesso de cadáveres. Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

O radialista Gastão Moreira faz um bom serviço pelas duas mãos em seu subestimado canal no YouTube: traz excelentes memórias e peneira ótimas novidades. Para quem se vê perdido como eu, pode ser um bom guia.

https://www.youtube.com/@kazagastao/featured

Imagem da guitarra retirada de:

https://www.izzo.com.br/guitarra-wgs-sunburst-winner/p


*Na verdade é o SVO - Serviço de Verificação de Óbitos, mas todo mundo chama lá de IML.

Um comentário:

  1. Olá. Pois é, acho a frase "o rock morreu" meio sem sentido, a não ser que estejamos falando em termos mercadológicos. Acho que o rock, assim como seus fãs (sou um deles), tornou-se envelhecido. E não vejo problema nisso. Concordo com você que muitos apreciadores do gênero têm dificuldade de se centrar no novo. Felizmente, existem os streamings de música hoje - que resolvem a questão do acesso (como era difícil adquirir os discos que eu desejava quando era jovem!). A Internet permite essa presentificação do passado que você menciona e também a garimpagem (o que proporciona sempre um prazer ao achar um artista/banda que você nunca tinha ouvido antes ou ouvido pouco).Ah, acompanho também o canal do Gastão, um cara que eu prezo desde quando ele era VJ na antiga MTV. Abraço.

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