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Tudo bem
com vocês, pessoas? Vamos nos dirigir às falácias novamente, neste intrépido
empreendimento chamado Pequeno Guia das Grandes Falácias. Vou mencionar mais um
apelo, as falácias informais de relevância. Como de costume, principiarei dando
base “experimental” ao pensamento que norteia o erro, pinçando alguma coisa
extraída do mundo que nos rodeia.
Em meados
do século XVIII, o mundo conheceu uma virada científica e tecnológica que
acelerou de tal forma o progresso que o próprio conceito de memória foi
alterado. De fato, uma pessoa que observasse a boa e velha Várzea do Carmo em
1500 ou em 1900, pouca diferença perceberia: o trajeto curvilíneo do rio
Tamanduateí serpenteando pela parte baixa dos outeiros onde se situa a região
central da cidade de São Paulo, com a desembocadura do rio do Carmo a
encher-lhe de água nos temporais de verão.
Avançando
meros 50 anos, já estava essa mesma área irreconhecível: o rumo do Tamanduateí
foi modificado, tornando-se reto; o rio do Carmo desapareceu, entubado que foi
em uma galeria da rua Tabatinguera, e foi erigido um quartel e um parque – o
Parque Dom Pedro II. Só não mudaram as cheias. Mais 50 anos e ele está ainda
mais descaracterizado: a arborização foi sobejamente diminuída; muitos prédios
foram erguidos, mas, sem a manutenção necessária, degradaram rapidamente. A
região ganhou um imenso terminal de ônibus e perdeu qualquer espírito
paisagístico, sendo o trecho mais violento do Centro, pior até mesmo que a
Cracolândia. Guardem bem todas estas informações.
Quando eu
ainda era um rapazinho, na já longínqua década de 80, trabalhei em uma
metalúrgica que produzia máquinas-ferramenta para deformação de metais: eram
tesouras mecânicas, guilhotinas, calandras, laminadores e principalmente
prensas. Se você que me lê não sabe o que é isso, imagine o seguinte: você está
na frente de um computador com sua caneca de alumínio, daquelas que mantém sua
água, refri, chá, gasosa, cerveja, energético, caipirinha ou o que lhe
contentar geladinhos por mais tempo. Essa caneca não saiu assim da natureza.
Ela era minério de alumínio, que, uma vez aquecido, foi laminado e transformado
em placa. Uma dessas placas foi colocada em uma máquina que, ao submeter-lhe à
pressão de um golpe de algumas toneladas, deu-lhe a forma característica,
obtida a partir de um molde que permite ao industrial produzir uma grande
quantidade de outras canecas iguais. Essa máquina é a tal prensa.
(Para
quem não se interessa pela área de mecânica e metalurgia, pode saltar estes
parênteses confortavelmente; mas para esclarecer a quem ficou se perguntando
que diabos são esses nomes todos: tesouras mecânicas servem para cortar chapas
e peças metálicas; as guilhotinas também, mas o princípio de funcionamento é
diferente – na tesoura, o corte é progressivo, como em uma tesoura manual, ou
seja, o corte inicia quando você começa a pressionar as argolas e termina
quando seus dedos chegam ao fim do curso. Já a guilhotina corta a peça toda de
uma só vez, em um só golpe, como se fosse a cabeça de um condenado. Dependendo
de sua regulagem, pode ser utilizada não para cortar, mas para dobrar metais,
produzindo peça em “L”, como nas mãos francesas. Em tempo: tecnicamente,
guilhotinas de papel são tesouras, não guilhotinas. Calandras são equipamentos
de três rolos, onde dois rolos menores pressionam a chapa de metal contra o
rolo maior, fazendo com que esta fique curvada, e laminadores são máquinas de
dois rolos que se prestam a dar espessura desejada a uma chapa metálica. Sabe
aquelas maquininhas de fazer massa de macarrão? O laminador é uma dessas com
mania de grandeza).
O
fabricante era filho de alemães, e gabava-se de produzir equipamentos
duradouros, mesmo que trabalhando sob condições extremas de impacto e
temperatura, como era o caso das infernais forjarias. E era verdade mesmo, sem
papo de vendedor. As máquinas aguentavam sarrafo bruto à vontade.
Pois bem.
Vieram os anos 90, e, com eles, a abertura de mercados; e, com ela, as máquinas
chinesas. Máquinas modernas, precisas, muito mais leves e fáceis de transportar
do que os trambolhos teuto-tupiniquins. Utilizavam comandos eletrônicos geridos
por computador, em substituição aos dispositivos mecânicos da velha guarda.
Eram fabricadas em poucas semanas, enquanto levávamos alguns meses para
produzir ferramentas do mesmo porte. A tecnologia embarcada fazia supor um
preço maior, mas não – uma prensa chinesa custava METADE da correspondente
nacional. Com tudo isso, não havia como evitar: as novas máquinas chinesas eram
melhores que as velhas brasileiras, correto?
Seriam, se
não fosse um mero detalhe: as máquinas do velho senhor tedesco duravam não
duas, nem três, mas QUATRO vezes mais tempo considerando o mesmo nível de
eficiência. A heroína a salvar sua reputação era, como eu disse, a existência
da política de superdimensionamento para evitar que problemas estruturais
ocorressem, como quebras de solda ou fissuras, fatais em prensas. Em mãos
habilidosas, rendiam e resistiam como nos bons tempos. Não deu muito certo,
muito embora. A empresa se apequenou, e, de gigante do ramo, virou mais uma
oficina de manutenção do que propriamente uma fabricante.
Isso tudo
para demonstrar que a afirmação de que algo é melhor apenas porque é mais novo
ou mais moderno é algo falacioso. É o apelo à novidade, ou argumentum ad novitatem.
Tudo o que é novo é necessariamente melhor? |
É preciso colocar alguns pingos nos is. Em um mundo onde os ciclos de validade de uma determinada tecnologia são cada vez mais curtos, temos a tendência de vincular atualização permanente com melhoria na qualidade, o que nem sempre se encaixa. Lembrem-se do famoso caso do botão Iniciar, onipresente em todas as versões do Windows, que sumiu na versão 8, para reaparecer na versão 10, dada a avalanche de protestos dos usuários. Só que a variação tecnológica é tão presente em nossas vidas que acabamos por confundi-la com hábitos e costumes, achando que a novidade nestes também devem ser considerados melhores necessariamente, o que não são. A mesma pressão psicológica para trocar o celular se aplica, desta forma, à ética, ao convívio, ao corpo social. Basta que se pense nos velhos hábitos de gentileza com os mais velhos que acabam por se confundir com uma certa indiferença. Mas esta não é a tônica deste texto.
Outra
coisa: novidade assemelha-se à evolução, e devemos lembrar que este é o
mecanismo que fez com que as espécies no mundo sejam o que elas são hoje. Só
que há um erro nesse raciocínio: na natureza, as novidades nem sempre são
melhoramentos. Ao contrário até. As mutações costumam ser desvantajosas, sendo
apropriadas em um número menor de vezes. Pense em uma mutação que gere o
encurtamento da língua de um tamanduá, por exemplo. Certamente o pobre bichinho
terá transtornos, e não benesses. Ou seja, as transformações são objetos para
que a seleção natural atue, e a novidade pode ser fator de extinção, não de
melhoria.
É óbvio
que o recurso à novidade nem sempre é falaz. Não há dúvida, por exemplo, que os
carros atuais poluem muito menos a atmosfera do que os antigões. Quem se lembra
dos velhos DKW’s com motor de dois tempos sabe que de seu escapamento brotava
uma fumaça azuladinha, de bela tonalidade, inexistente nos carros de hoje. Essa
coloração se dava pela presença de óleo lubrificante junto à gasolina,
misturados que eram, proporcionando uma quantidade muito mais significativa de
poluentes, e poluentes perigosos. A presença de injeção eletrônica e
catalisadores minimizou muito o problema, que somente é grande devido à
gigantesca quantidade de veículos em circulação neste mundo de meu deus.
Por isso,
dizemos ser esta uma falácia de relevância. Quando a novidade é importante para
o argumento em questão, não podemos dizer que se trata se uma falácia. Mas, em
geral, temos a tendência a associar o antigo ao antiquado, à ferrugem, à
obsolescência; e novo ao avanço, ao moderno, ao melhor, esquecendo que nem sempre
esse é um argumento válido.
E agora
lembremo-nos da Várzea do Carmo e do Parque Dom Pedro II. Qual era melhor? O
intocado e pouco aproveitável? O renovado e elitizado? O decadente e bem
fornido de transportes? É melhor o novo, o velho ou o muito velho? Nada poderá
ser dito com relação à novidade, mas com o uso racional da área. Por exemplo: a
várzea original era muito ecológica, mas, justamente por ser várzea, era uma
megalópole de mosquitos e pernilongos. Já o parque recém-montado era uma graça,
mas foi a partir dele que o rio Tamanduateí ganhou estatuto de esgoto a céu
aberto, sua única função a partir daí. E, por fim, o bairro atual é todo
funcional, com ônibus, metrô, fura-fila, mercadão, vinte-e-cinco e santa-rosa,
mas é preciso muito cuidado para andar por lá. Qualquer que seja o motivo de
rejeição ou preferência, fatalmente estará pouco relacionado à novidade das
implantações feitas na área. Perceberam?
Recomendação
de canal:
Neste
tempo em que as novidades são apresentadas nas propagandas como a quintessência
da necessidade de consumo, é sempre bom ter alguém com os pés no chão para nos
dar uns toques sobre suas armadilhas. Vou recomendar o bom canal da jornalista
Francine Lima, que se ocupa em desvendar e desarmar as arapucas existentes em
rótulos e embalagens, sempre com precisão e bom humor.
LIMA,
Francine. Do campo à mesa. Vídeos.
Disponível em: https://www.youtube.com/user/docampoamesa
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