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terça-feira, 19 de março de 2024

Para lá da serra que eu vejo na janela – 7º episódio: Jaguary de Cima e a peregrinação que vale para fora da religião

(Vejo peregrinos e me pergunto se ainda é possível que exista sentido delas para mim) 

A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.

Camus

 

Olá!

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Depois de dois dias alocados no distrito do Vale do Bom Jardim, acabamos pegando amizade com a dona do chalé. Eu sou um cara que normalmente falo menos do que escrevo, que é o inverso da patroa. É com isso que nós conseguimos pegar muitas referências dos lugares que visitamos, e, para isso, nada melhor do que trocar ideias com os locais. Neste caso, a charla valeu uma visita para outro distrito do município de Camanducaia, onde poderíamos contemplar a natureza de um bairro ainda mais alto, e com bastante história e boa comida. É Jaguary de Cima, e vamos para lá.

O nome do bairro é devido ao rio que tem parte de suas nascentes lá no alto, e que vai serpenteando por entre as montanhas até desembocar no estado de São Paulo, não tão longe dali. Ele forma várias prainhas e tem muitos saltos no trajeto, bons para dar uma molhada nas costas.

Apesar das culturas rurais espalhadas pela região, as formações montanhosas fazem com que ainda haja um bom tanto de mata nativa, já que não é tão simples de praticar agricultura em desníveis tão expressivos. Isso faz com que ainda seja possível encontrar muitos recantos de mata densa e dá uma pequena ideia de como a Mantiqueira era recoberta originalmente.

O principal ponto turístico é a Fazenda Esperança, uma antiga herdade de meados do século XIX que ainda guarda muitas de suas características originais.

Para dar mais guarida ao seu aspecto histórico, a fazenda possui alguns equipamentos que demonstram como foi sua vida no decorrer dos tempos. Um deles é um museu, que mantém sua estrutura elevada de época e uma série de objetos e utensílios utilizados pelos moradores em tempos passados.

Muitos desses objetos são artigos corriqueiros, da vida de ofício e de afazeres domésticos, dando uma dimensão de deslocamento no tempo para um momento histórico onde os trabalhos eram realmente mais manuais.

Outros fazem remissão discreta ao contexto histórico que levou ao povoamento não só daquela região, mas de todo o estado de Minas Gerais: os tropeiros que partiam do litoral e que para lá levavam víveres e de lá traziam produtos agrícolas.

Do lado de fora, há uma parafernália que chamamos de trapizonga. Trata-se de um conjunto de monjolos que são acionados alternadamente por um conjunto de chavetas dispostas em um eixo que, por sua vez, é movimentado através de uma roda d'água. Da próxima vez que alguém chamar algo por esse nome, saiba que a sua origem não é sinônimo de coisa desconjuntada, mas de mecanismo complexo.

Também há plantações e pomares espalhados pela área, sendo que as figueiras estavam em plena produtividade. Muito do que se serve no restaurante – ótimo – é produzido na própria fazenda.

A estrada que leva ao distrito tem uma característica toda própria. Ela faz parte do Caminho da Divina Providência, uma rota de peregrinação criada por um grupo de jovens da paróquia de São José, da cidade de Limeira/SP, no meio da década de 80. Faz a linha a mais reta possível até a cidade de Aparecida, no Vale do Paraíba, destino final de diversas romarias.

Todo o caminho é marcado pelo propósito da peregrinação mencionada. Logo no começo da estradinha que leva a Jaguary, uma pequena capelinha já é ponto de parada para os devotos que se preparam para encarar aquele trecho de subida.

E é exatamente uma igreja dedicada à mesma santa que informa ao caminheiro que ele chegou ao povoado.

Estamos praticamente no meio do caminho que vai à terra da padroeira desta Pindorama. Daqui, são mais 127 quilômetros em meio a vales, matas e muita terra nos calçados.

Disponível em https://tvjaguari.com.br/caminho-da-divina-providencia-38096/

Eu cruzei com dois grupos de romeiros pelo caminho. Fiquei com vergonha de fotografá-los, como se fossem curiosidades de circo. Um deles era bem grande, com umas cinquenta pessoas e um guia. Já o outro era bem menor, mais motorizado e com bastante idosos, mas igualmente bem organizado. São caminhadas que levam dias, e demandam muitos pontos de parada e apoio, geralmente conseguidos com membros das comunidades religiosas que se distribuem pelo caminho.

As peregrinações são importantes nas religiões porque carregam uma boa dose de conteúdo sacrifical. A ideia é que ninguém faz nada, se faz fácil. Se eu sair de casa para peregrinar até a Catedral da Sé, peregrinarei por trezentos metros, o que é uma tapeação contra a divindade, ou seja, eu posso até ir à catedral, mas sem esse teor de sacrifício que é a longa caminhada. Elas fazem muito sentido quando se relembra das grandes caminhadas que eram necessárias no passado para ir de um lugar a outro, que atravessavam os campos (per agro, ou através dos campos, em grego) quando evidentemente não existiam aviões para se deslocar fisicamente, nem internet para fazê-lo virtualmente.

Houve momentos em que eu quis fazer alguma peregrinação desse tipo, principalmente a famosa rota de Santiago de Compostela, na Espanha. Mas aí tem a grana e eu me contentaria com Trindade, Bonfim ou Aparecida mesmo. Confesso que não se tratava exatamente de uma questão de fé, de alcance de graça ou de coisa parecida, mas porque o espírito de romaria me parecia muito atraente, aquela coisa de se percorrer uma estrada como se fosse uma metáfora para a vida. Hoje esse sentido não existe mais.

Para quem é religioso (de fato) é bem isso: o caminho representa a vida terrena. Cada pedra que se tropeça pode ser entendida como as dificuldades para a manutenção da fé, e o destino final, aqui uma igreja ou outro lugar santo, é a vida eterna, onde se retornará à divindade à escolha.

E para um ateu? A experiência vale?

Não no mesmo sentido, é óbvio. Seguindo a mesma alegoria, há uma divergência muito grande: não há nada no fim do caminho, a não ser a morte. Se partirmos da premissa de que não há transcendência, o fim é o fim. O que resta, então? O caminho.

O caminho representa uma mudança de foco no que normalmente seria a peregrinação. Pode-se até enxergar que o trajeto é como um tapete vermelho de igreja, que leva do pórtico ao altar, e isso realmente faz muito sentido no âmbito religioso, mas, novamente, o que temos aqui é um plano secundário. Agora imagine uma estrada que leva para um barranco. O que importa é só ela, e não o que está no fim. 

Por esse motivo, a caminhada da peregrinação dos sem-fé é mais importante do que a chegada. E isso é prova do absurdo que é a existência.

Qual das duas é melhor? Sem dúvida, a do religioso, admito. Eu às vezes me pego pensando: qual não seria a decepção daquele que acreditou a vida inteira e, chegando no fim, não vê nada? Mas se tudo acaba, acabou, inclusive a chance da decepção. Acreditando, pelo menos não se teve a angústia.

Quer dizer… isso quando a crença é legítima, né? Eu vejo choro e desespero sob qualquer condição. Pela lógica religiosa, uma morte deveria ser comemorada, e não lamentada. É a passagem para a vida eterna, onde poderemos rever os pais, parentes e amigos que se foram. Em outra lógica, é o caminho completo, uma etapa que obrigatoriamente deveria ser cumprida. Mas choramos nos enterros, lamentamos de saudades. Acho que isso demonstra que somos todos agnósticos. É aquela velha história: não há ateu em avião caindo, não há religioso enfartando. Não temos certeza nem disso.

Só que a escolha não é possível. Quando se crê, se crê; o resto é autoengano. Só atingimos algum nível de reconforto quando cremos de verdade em alguma coisa. Crer da boca para fora é, digamos, ilusão para quem o faz e jogo sujo com a teórica divindade. Por assim dizer, está fora da regra do jogo, como tentou Pascal em sua aposta.

O ser humano é um ser dividido entre o sim e o não permanentemente. Há uma grande dificuldade em se enxergar as diversas nuances possíveis entre dois pontos distintos, e isso se reflete até mesmo em nossa argumentação, forçando dicotomias onde há multiplicidade. Sendo assim, se não há vida após a morte, só resta o desespero. Mas, se houver, não temos a justa medida do que nos fará ser agraciados pela vida eterna ou banidos ao fogo eterno. Ou seja, a angústia persiste. E se nada há, o que nos dá sentido? Desde Aristóteles acredita-se que a causa final do ser humano é a felicidade, mas como esta pode ser conciliada com a perspectiva da morte, com a ideia de que todo o castelo de cartas se desmancha com o vento? Sendo assim, só resta concluir que a vida é absurda.

Não é que o mundo e a natureza sejam absurdos em si, mas é a nossa necessidade de sentido que os tornam assim. Pelo contrário, as coisas se movem de acordo com a lei que lhes rege, e isso é para absolutamente tudo, menos para ela, a humanidade.

Por esta razão, a vida tem um aspecto trágico incontrolável. Por mais que se busque sentido na existência, ele não existe por si só. Agarramo-nos aos deuses por mais óbvia que seja a sua inexistência, criamos mundos futuros por não nos conformarmos com nossa finitude. O Calígula de Camus pede que se lhe traga a lua. Ele não a quer porque é louco, mas porque quer algo que não pertença a este mundo. Ele quer a lua, ou a felicidade, ou a imortalidade, qualquer coisa que se possa chamar de absurda, qualquer coisa de fora do mundo, justamente para justificar sua existência.

O absurdo é o aspecto trágico permanente e incontrolável da existência. O mundo desmente sozinho a religião, porque as respostas que elas dão são ainda mais absurdas que o próprio universo que se move por si mesmo. Kierkegaard lembra do exemplo de Abraão. Não é a execução de seu filho o absurdo, já que é uma exigência de deus para provar sua fidelidade canina, mas o fato de Abraão ter aceitado a incumbência, algo contraintuitivo até no universo dos animais ditos irracionais. Ela é uma prova tão inequívoca do absurdo que até mesmo é enviado um anjo para impedi-lo*.

A solução é mais simples, porém mais dolorosa a quem se prende somente à perspectiva da morte. Heidegger já dizia que a humanidade nasce para a morte, e esse era, de certa forma, o auge da sua existência. Tudo o que vai para frente é inatingível, exista ou não. Dessa forma, sendo irresoluta, a vida é absurda porque a consideramos assim. Camus, no mito de Sísifo, propõe algo que se assemelha aos que os antigos céticos já propunham: nunca chegarei ao conhecimento de nada, mas isso não significa que ficarei parado. Transmudado para a existência, esse pensamento se desloca para a tarefa infindável de Sísifo, sua pedra que sempre rolará morro abaixo. No que é diferente nossa vida? Ela é vivida no trânsito da montanha, para cima e para baixo, e é na revolta contra o destino inexorável que vivemos. Não adianta que os deuses tenham castigado Sísifo pela eternidade: ele reverte a vingança caso tenha achado um norte em seu próprio destino. De lá, na subida da montanha, sempre teremos uma vista bonita, uma paisagem curiosa, um céu que se alonga ao infinito e que nos traz perguntas mais edificantes do que o mero peso que se carrega. Imaginar Sísifo feliz corresponde a nos convencer de que a vida pode valer a pena, mesmo que não tenha desfecho, porque o seu propósito é dado diariamente, no momento e no lugar em que estamos, seja lá qual ponto da caminhada for.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como já mencionei o mito de Sísifo anteriormente, vou recomendar a peça Calígula, onde Camus também fala do absurdo da existência sob um ponto de vista desvinculado da religião. Curto e fascinante.

CAMUS, Albert. Calígula. In: Calígula seguido de O Equívoco. Porto: Livros do Brasil, 2002.

* Embora um deus onisciente deveria saber que seria obedecido, tornando dispensável todo o evento. Mas o absurdo se manifesta estruturalmente, e não só episodicamente.

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