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segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Os verdes mares de onde não há mar – 8ª parada: Inconfidentes e a confissão como ferramenta filosófica

(Confessar não é só um ato de fundo pessoal, mas parte de um método filosófico)

Olá!

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Desde já, preciso fazer uma confissão. Quando fui a Inconfidentes, cidade que fica no circuito têxtil mineiro, para ver seus crochês, esqueci meu celular no hotel. Por esse motivo, fiquei sem fotos. Fiquei em um dilema existencial: faço meu texto sem fotos ou simplesmente deixo essa passagem de lado e pulo para a próxima? Eu, filho de Dona Irene e neto de seo Salvador, perfeccionistas modelares, tenho dificuldades em me conformar com algumas coisas. Embora saiba que ficou longe da perfeição, resolvi o problema passando novamente na cidade na volta de Bueno Brandão, o que ocorreu à noite. Por esse motivo, peço desculpas aos meus leitores e à cidade de Inconfidentes pela má qualidade fotográfica, mas o que importa mesmo é o teor filosófico do texto, e é o que deu para fazer sem excluí-los da série, algo que ficaria me revirando a consciência permanentemente, embora a única imagem decente é a que vai logo abaixo. Acho que valeu a pena.


Inconfidentes é uma cidade típica do interior sul-mineiro. Cercada pelas montanhas da Serra da Mantiqueira, possui um centro urbano que concentra a maior parte de sua população e extensa área rural. A mancha urbana orbita em torno de sua matriz, a paróquia de são Geraldo Magela.

Diante de seu adro, fica o marco inicial do Caminho de Graças e Prosas, que visa estabelecer vínculos entre as culturas locais e dar guia aos peregrinos.


Para além da religiosidade, Inconfidentes é marcada pela educação universitária, porque lá está instalado um dos campi do Instituto Federal do Sul de Minas, entidade do governo federal especializada nas engenharias do campo, além de várias licenciaturas e algumas tecnologias.

A verdadeira especialidade da cidade está mesmo na área têxtil, da mesma forma que suas vizinhas Jacutinga, Borda da Mata e Monte Sião. Há as mais variadas lojas espalhadas pela região.


Em boa parte, verifica-se a existência de lojas de malhas, com tudo o que lhe é comum, como camisetas e pijamas.

A cidade orgulha-se, no entanto, de sua produção de crochê, o que a diferencia um pouco do tricô monte-sionense e da malha borda-matense.

Um dos distintivos são as árvores que são recobertas pelas tramas de fios, como se fossem monumentos da arte de crochetar. Alguns são tecidos com outras artimanhas da costura, como a combinação com fuxicos.

Outras demonstram a complexidade que se pode obter com a habilidade nestas artes e ofícios, com desenhos que podem ser autênticas tatuagens.

O nome da cidade seria, para um estrangeiro, um tanto curioso. Traidores, como assim?! Mas para nós, brasileiros, tão versados em nossa própria história, é fácil de saber que tudo tem a ver com o movimento que ficou conhecido como Inconfidência Mineira, cuja principal figura histórica é Tiradentes. Chega de ironia e vamos dar uma espanada nos alfarrábios.

A Inconfidência Mineira foi um movimento que nasceu da reação às coletas de impostos pela coroa portuguesa, ainda no século XVIII. Foi um movimento multiforme e heterogêneo, que englobou especialmente camadas de elite da Província das Minas Gerais, mas que não se limitou a elas.

A questão toda gira em torno da tão conhecida sanha por riquezas da relação colônia-metrópole entre Brasil e Portugal. Fazer as viagens exploratórias na época das grandes navegações não era nada barato, e a melhor maneira de custeá-las era obter recursos nas terras descobertas. Se pudesse ser em ouro, melhor ainda.

Entradas e bandeiras foram criadas para buscar todo tipo de produto que pudesse representar divisas para a metrópole. Nessas buscas, encontraram minérios valiosos no território em que hoje se encontra Minas Gerais, o que, inclusive, lhe batizou. O busílis está na relação entre abuso da coroa e febre d’argent que povoa o imaginário desde sempre. O reino de Portugal exigia que um quinto de todo ouro encontrado fosse encaminhado para lá. Para tanto, todas as descobertas deveriam ser levadas às casas de fundição, onde o minério bruto era transformado em lingotes com a marca real e a arrecadação do quinto já era feita na fonte. Largar 20% de tudo o que você coletou não era algo aceito confortavelmente por todas as pessoas, em especial quando não é revertido em nada que lhe seja aproveitado. Por conta disso, muito ouro era extraviado pelos caminhos adjacentes à via principal de circulação, a Estrada Real (de quem já fiz um belíssimo texto, aqui). Se a guarda capturasse essas cargas, babau. Se não, o contrabando se concretizava e o danadinho se locupletava.

Mas a controvérsia nem era essa. O caldo entornava com a derrama, uma coleta de impostos suplementar que a coroa portuguesa realizava sempre que sua meta arrecadatória não era atingida. Para arrecadar os recursos da derrama, pouco importava o que viria pela frente, desde que a quota fosse complementada, incluindo o confisco de bens e objetos de ouro. Dizia-se que a derrama não servia unicamente para fins arrecadatórios, mas também para punir os desvios de metal, que continuavam a ocorrer, a despeito da instituição das casas de fundição. A ausência de critério nessa coleta era objeto de imensa revolta, e foi na iminência de uma delas que surgiu o movimento da Inconfidência Mineira.

Esse movimento tinha seus objetivos pouco claros, porque cada um queria uma coisa, mas, grosso modo, era uma conjuração separatista, que pretendia inaugurar em Minas Gerais um novo Estado, e aproveitariam o descontentamento popular com o decreto de uma nova derrama. Entretanto, a alcaguetagem rolou solta e o movimento foi desfeito, cujo principal evento histórico foi a execução de Tiradentes, uma espécie de bode expiatório com a discutível cara de Jesus. A formação de um panteão heroico para a república brasileira fez com que essa história, que havia ficado mais ou menos engavetada, voltasse à tona, e, sendo um acontecimento mineiro, há muitas e muitas referências espalhadas por todo o estado, incluindo o nome da cidade em tela.

O nome dessa conjuração, do qual derivou a denominação de Inconfidentes, tem o ponto de vista do reinado português. Afinal de contas, inconfidente é aquele que é infiel, desleal, que não confessa seus próprios propósitos. Portanto, quem deu o nome que ficou mais conhecido ao movimento foi o ângulo de visão do lado de lá. Fosse o contrário, seria conjuração, aqueles que juram causa juntos, e se fosse neutro, seria revolta ou coisa semelhante. Seja como for, a palavra remete à confissão, à admissão de algo que não se dá abertamente, e esse é o mote do presente texto. Evidentemente, do ponto de vista filosófico.

Hajime Tanabe é o único filósofo japonês que eu conheço, pelo menos até hoje. Nem é tanta vantagem assim, porque ele tem grandes influências ocidentais no seu pensamento, mas, mesmo assim, é muito interessante de conhecer, porque ele acaba fazendo uma transição entre o pensamento mais material da Europa com uma certa espiritualização comum em terras orientais. Ele dizia que toda a arte de filosofar parte de uma confissão. Mas o que é confessado quando se filosofa? Essencialmente, a própria ignorância. É preciso reconhecer que nada se sabe para buscar compreender o mundo.

Ora (direis), foi preciso esperar até o século XX para se chegar a essa conclusão? O "só sei que nada sei" socrático era uma mera ilusão de ótica? Não vamos ter uma versão nipônica da maiêutica dos gregos? Não, meu rigoroso interlocutor. Eu também tive essa sensação nos primeiros contatos que tive com o professor japonês, mas a questão fundamental está no ângulo que se enxerga, o da Fenomenologia.

Tanabe esteve na Europa bem no momento em que Husserl desenvolvia seu método de investigação filosófica. A Fenomenologia procura ter a noção de que há sempre uma consciência que tem contato com os fenômenos (tudo o que existe e acontece no universo), e que essa consciência nunca é pura, sempre recoberta por várias camadas de cultura, o que faz com que qualquer coisa que seja observada seja feita de maneira absolutamente particular. Se cada um de nós vê o universo pelo prisma de sua própria consciência, então são mais de oito bilhões de universos diferentes sendo vistos. Por isso, a Fenomenologia preconiza que a primeira parte de qualquer análise deve considerar a remoção de todos esses vernizes que recobrem nosso conhecimento.

Isso é feito, pela clássica imagem de Husserl, colocando o conhecimento entre parênteses, ou seja, deixando tudo o que imaginamos conhecer quietinho num canto enquanto vamos fazer o contato com o objeto de estudo despidos de valores prévios ou de conceitos concebidos anteriormente. Quando observamos qualquer coisa no mundo, existe uma atitude natural e intuitiva, que é justamente colocar essa coisa dentro de um contexto conhecido por nós. Isso nós fazemos sempre e não há nada de errado nisso, até por uma questão de sobrevivência. Mas quando o assunto é reconhecer o que há de essencial nesse fenômeno que observamos, é preciso deixar de lado o conhecimento prévio. Eu não vou descartá-lo, mas vou suspendê-lo. Esse colocar o conhecimento entre parênteses é o que ficou conhecido como epoché.

Eis aqui que Tanabe encontra a premissa socrática da ignorância. Tudo o que eu sei sobre qualquer coisa está banhado da minha própria consciência, e essa é moldada pelo modo como absorvi tudo o que eu pretensamente conheço. Ou seja, ao aplicar a epoché fenomenológica, só me resta reconhecer que nada conheço.

Mas não parece uma premissa radical demais? Se pensarmos em nosso mundo acelerado, onde as informações precisam ser entregues como produtos de consumo, veremos que aquilo que conhecemos como “verdade” ganhou um estatuto novo, mais vinculado a uma criação mental de um desejo do que a uma correspondência entre um fenômeno e o que se diz dele. Pensem no que se diz sobre direita e esquerda, sobre nazismos e comunismos, sobre Terra plana e Terra no centro do universo para se ter ideia da dificuldade de se alcançar uma verdade indubitável. Isso é tão evidente que se cunhou o termo pós-verdade, onde a posição de quem propaga a informação é mais importante do que os fatos despidos da opinião de quem olha para eles. Uma abordagem fenomenológica tornou-se imprescindível para quem quer manter um mínimo de coerência entre o que se se vê e o que se relata, e o único meio de se obter isso é admitir que seu conhecimento prévio é pobre e caduco.

Embora adira ao pensamento fenomenológico, Tanabe não deixa de deitar as raízes do seu pensamento em um sabor oriental. Como diz o Budismo e seus filósofos (vide este texto), a busca pela iluminação passa essencialmente por um esvaziamento do próprio eu. Esse esvaziamento, quando refletimos na assertiva fenomenológica da consciência, é o próprio processo pessoal de retirada sucessiva de todos os conhecimentos prévios que podemos ter sobre qualquer coisa. A vacuidade budista tem, portanto, a mesma natureza da epoché husserliana. A busca do eu (a consciência) é uma remoção sucessiva de tudo o que é não-eu. Só a consciência despida tem a capacidade de atingir uma essência, e, nesse sentido, o primeiro passo está no reconhecimento da ignorância: uma confissão feita para si mesmo.

Comecei este texto falando sobre a necessidade de fazer uma confissão, e, no final das contas, acabo por mostrar como ela vai muito além de um mero ato íntimo ou de uma obrigação religiosa, chegando até mesmo a ser uma prescrição obrigatória na Filosofia. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

O português é pobre em material de Tanabe, restringindo-se a uns poucos artigos. Recomendo essa obra em italiano para conhecê-lo melhor.

TANABE, Hajime. Filosofia come Metanoetica. Milão: Mimesis, 2011.

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