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segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Interrompendo a viagem: o adeus a Pelé

(Tem coisas que nos caem mal de verdade)

Olá!

De repente, a realidade cai como uma pedra na nossa cabeça.


Eu estava realizando os relatos de minha última viagem, que podem ser vistos e acompanhados a partir deste endereço. Não tinha nenhuma intenção de interrompê-la, porque quebra o fluxo que há no substrato dos pensamentos, além de deixar os textos pulverizados pelo blog, o que se provou ruim em outros momentos, mas não tem como evitar de fazê-lo desta vez.

No meu último texto, eu falava sobre mitos, e citei Pelé. Mencionei como foi construído o mito ao redor do seu nome, e como é difícil confrontar os mitos. Eu escrevia em dois momentos marcantes: o rei já estava no leito de morte, desenganado de um câncer que lhe consumiu nos últimos tempos, e eu estava enfrentando minha segunda covid (sobre a primeira, leia mais aqui). Eu queria sair digitando, como fiz na morte de Maradona, mas a febre e a diligência da patroa me impediram de prosseguir com a tarefa. Mas agora estou melhor, e vou levar minhas rápidas observações a cabo: a dor pela perda do ídolo.

Da maneira que descrevi as distorções da esfera mítica, este texto será uma dialética com cara de contradição. E é mesmo, filosofia é exatamente isso.

A morte de Pelé foi mais uma que me caiu mal. Outras aconteceram, e eu vou falar um pouco sobre elas. A morte de Garrincha, em 1983, ocorreu quando eu tinha 13 anos, e estava em viagem na terra dos meus parentes de Maringá. Ele morreu derrotado pelo consumo excessivo de álcool, o que me trouxe uma série de lembranças de parentes que vinham para São Paulo, tratar-se inutilmente de cirrose, uma família de bêbados. Acho que foi meu primeiro gatilho, porque passei a viagem toda da volta meio calado, pensando nos limites do corpo e da vida.

Outra foi pouco tempo depois, quando eu já tenteava uma carreira musical, a do baixista do Thin Lizzy, o irlandês Phil Lynnot. Um baixista que cantava, como eu. Sua morte me deixou meio que desencantado com o show biz pela primeira vez, pelo quanto que os excessos nos trazem prejuízos.

Outra, mais recente e muito semelhante, foi de Lee Kerslake, que, mais uma vez como eu, era um baterista que cantava, e cantava muito. Já aqui me coube uma aflição por aqueles projetos que temos para a aposentadoria, mas que na maioria das vezes não dão em nada.

Não são só os famosos que me trouxeram mais do que a inspiração filosófica ou o gatilho psicológico, uma espécie de véu de tristeza difusa. No meu piccolo mondo, talvez a maior tragédia que acompanhei foi do filho de um colega de trabalho, com quem, inclusive, não tinha muito contato. Ele tinha um filho com a mesma idade do meu, por volta de quinze anos, quando veio a papeleta do RH pedindo doadores de plaquetas. O sobrenome denunciou a filiação, e fui me inteirar um pouco melhor. Ele tinha uma doença sanguínea muito parecida com leucemia, que destruía por completo suas plaquetas e lhe sujeitava a sintomas horríveis, que nem tenho ânimo de digitar aqui. Fui buscar informações sobre como poderia ajudar, mas diabéticos são inúteis para esse tipo de coisa. Algum tempo depois veio a notícia da morte, e eu fiquei bem mal. Queria dar um abraço de solidariedade no colega, mas não consegui reunir coragem, limitando-me a deixar um bilhete sobre sua mesa.

Agora eu estou aqui, tentando controlar a febre da covid (juro que continuo me cuidando) e concertar os pensamentos sobre a perda para o país, para os admiradores e para mim mesmo. Não canso de falar sobre a necessidade de racionalidade, mas há momentos em que ela não consegue superar as emoções. Principalmente neste espaço, onde eu tanto falo sobre futebol quando preciso formar um exemplo ou estudo de caso, não posso deixar de expressar rápidas palavras sobre o fato.

Eu já conheci Pelé dentro da esfera mítica. Quando ele parou de jogar, eu tinha 7 anos de idade, e era muito raro que suas atuações pelo Cosmos fossem transmitidas no Brasil. Pensando bem, é uma bela alegoria: Pelé viro mito pelo Santos, cuja etimologia já denuncia seu ser apartado dos demais, e terminou sua carreira no Cosmos, no universo inteiro, e de lá se eternizou. Mas eu já o recebi com o filtro de Rei do Futebol, uma condição de herói de um país que, como sempre, vivia tempos difíceis e com poucos elementos para se orgulhar. No entanto, como valorizo os depoimentos como saborizadores da vida, relembro do que contavam os velhos corintianos, meu pai, meus tios, meus avós, presos nos longos jejuns de títulos e de vitórias sobre o Peixe, que contavam o sentimento de aflição ao verem subir a campo aquele time alvinegro no Pacaembu, tendo à frente Dorval, Mengálvio, Coutinho e Pepe, ladeando ele, o Rei, o ataque mais temido de todos os tempos. Foram onze anos fracassando contra o time da Vila, assistindo atuações que não foram gravadas pelas câmeras de TV, mas a reverência superava o ódio, porque, segundo eles, era impossível não reconhecer a maestria, o futebol elevado à condição de arte, semelhante ao balé na execução e à arquitetura na construção. E, sim, à pintura na conclusão a gol.

O que faz com que uma pessoa se entregue para sofrer? Por que meus ascendentes se enfiavam nos ônibus lotados para ter uma garantia de que teriam de voltar desolados? Morávamos um bocado longe do Pacaembu, a casa mais habitual para os clássicos, e lá se iam os velhos perder o domingo, a quarta-feira. Mas o fato é que havia uma esperança e uma garantia: a de que o suplício acabaria e a de que se veria mais um espetáculo. Qualquer resultado seria enaltecedor, hoje eu compreendo.

Pois bem. Aquele tempo acabou, aquele time acabou e agora o homem que usava a coroa também acabou. Como é difícil ficar órfão, mesmo sabendo que o homem é finito, mas a obra não. Restarão as filmagens, as fotografias, os relatos, as reportagens, os troféus, as memórias, essas formas de nós manterem vivos pela eternidade. Mas não é possível negar um sentimento de impotência perante à morte.

Tantos e tantos filósofos falaram sobre ela, cada um de sua forma, mas nenhum com a resposta definitiva. Por mais que tentemos, não conseguimos naturalizá-la, seja pela incerteza do que vem depois, seja pela certeza de que não virá nada depois. Dessa forma, temos a eterna impressão de obra incompleta, de que poderíamos ter feito mais e melhor, e a morte do mito, aquele que se colocava diante de nós como uma resposta à eternidade, faz-nos nos reconhecer novamente como seres finitos, contingentes, acidentais, incompletos, completamente sem as rédeas do destino ou o timão do próprio tempo.

Isso explica boa parte do fenômeno religioso. O mito faz acreditar que há um lugar melhor, onde só a perfeição tem lugar, e que não é possível de existir em mundo tão cheio de defeitos. Ele não pode ser da própria vida, cheia de dores e desventuras, mas os heróis fazem pressentir uma dimensão onde isso tudo é possível. Eu chamo isso de talento, alguma mais palpável e realista, que nos faz sentir glorificados em nossa própria humanidade, que somos capazes de realizar por nós mesmos, como espécie.

O talento fica, e há uma montanha de gente que diz que quem morreu foi o homem, e não o herói, o mito, a lenda. Certo: a obra persiste ao artista, mas a obra não surgiria sem o artista. E é impossível não se sentir atingido como ser humano quando sabemos que, embora haja horas e horas de filmagens de seus feitos, toneladas de fotos, narrações e narrativas, não vamos mais ouvir da própria boca do homem o que é o feito do mito, como ele chegou à proeza, o que ele sentia quando fazia seu mister, e o consagrava como sendo o que é. A morte do Rei do Futebol já estava decantada e esperada, desde o momento em que foi tornada pública sua condição clínica. Mas a dissociação entre o homem e sua obra causa uma dor maior que a de um parto, porque inevitavelmente nos coloca diante da nossa fragilidade e finitude.

A morte do Pelé me pegou mal mais uma vez. Talvez a febre esteja me deixando um pouco menos criterioso, e a maldita rouquidão faz com que eu fale pouco, mas dessas dores nós nos livramos diariamente. O que me faz sentir fraco hoje não é o vírus chato que me afastou dos filhos na virada do ano, mas a consciência de que os mais poderosos símbolos da humanidade não são mais do que isso, símbolos. O que é coisa para caramba, mas que tem limite.

A morte do Pelé é morte da humanidade inteira.

Sem mais. Bons ventos a todos.

Recomendação de documentário:

Há vários materiais sobre o Rei espalhado por toda a parte, mas um dos mais bem produzidos é, sem dúvidas, aquele que recomendo abaixo:

MASSAINI NETO, Aníbal. Pelé Eterno. Filme. Brasil: United Artists, 2004. Cor e P&B. 120 min.

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