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sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Navegações de cabotagem – As confecções de tricô de Monte Sião e o duplo caminho da moda: desejo incessante e identidade

Olá!


Quem disse que eu não viajo de excursão? Dependendo das circunstâncias...

Foi o seguinte: minha mãe tinha uma longa história de amizade com a irmã Margarete, freira franciscana que, dentre tantas atividades, dirige uma instituição de convivência de idosos chamada Casa de Clara. Eu conhecia bem a obra, dos tempos em que ainda restava em mim um pouco de Cristianismo. Era e é um trabalho muito bonito, baseado na constatação muito simples de que o maior sofrimento dos velhos é a solidão, pura e simplesmente. O trabalho consiste nisso, arrumar ocupações coletivas para o grupo, sendo que uma delas são excursões que acontecem de tempos em tempos. Não estava no horizonte, mas surgiram duas vagas de um casal que teve um imprevisto na véspera. Como já estava tudo pago, e sabendo do quanto moramos perto do ponto de partida, a irmã ligou para a patroa oferecendo essas vagas, para relembrarmos os velhos tempos nem tão distantes assim. Como não? Vamos lá.

Normalmente, essas excursões não podem ser muito longas, dadas as restrições de horário. São típicos destinos de bate-e-volta, consistindo, no mais das vezes, em um sítio ou parque. Desta vez, no entanto, a irmã mudou a proposta, botando as velhinhas para andar para cima e para baixo, em dois destinos: Serra Negra e Monte Sião. Eu já conheço ambos, inclusive fazendo-os constar da série Cartas Náuticas para Marinheiros de Terra Firme. Mas sobre o segundo, uma novidade. Quando lá fui, não me interessei muito pelo atrativo mais célebre da cidade, amedrontado com o bolso já a meia-bandeira, e optei por me concentrar no Santuário da Medalha Milagrosa e na fábrica de cerâmica, como pode ser lido neste post aqui. Desta vez, no entanto, o objetivo era justamente trafegar pelas inúmeras lojas de malhas e tricôs que tão bem caracterizam a urbe. Por isso, achei por bem fazer um novo texto, no contexto das Navegações de Cabotagem, onde pela primeira vez eu repito uma cidade, porque, no final das contas, é um exemplo de perfeito atendimento de critério. Vamos encarar essa 25 especializada e em miniatura.



Como eu já disse, Monte Sião se notabilizou pela confecção de peças em tricô. Esta é uma técnica que resume o entrelaçamento de fios por intermédio de agulhas, como costumamos pensar nas imagens das vovozinhas. É evidente que não é o caso, e o tal trabalho é feito através de máquinas. As peças entrelaçadas geram uma padronagem que produz desenhos em relevo.



Há uma história mitológica muito conhecida que envolve tricô. Há um herói muito conhecido chamado Ulisses, conhecido por sua força, esperteza e capacidade estratégica. Era casado com Penélope, com que teve Telêmaco, seu único filho. Obrigado a partir para a guerra, Ulisses deixou de dar notícias por mais de dez anos. Isso fez com que o pai de Penélope, imaginando-o morto, obrigasse a filha a se disponibilizar para um novo casamento. Ainda fiel ao marido, Penélope submeteu o ato a uma condição: que lhe fosse permitido tecer uma colcha para Laerte, seu sogro, e só após o término do trabalho receberia a corte de seus pretendentes. Havia um macete envolvido – tudo o que a moça tricotava de dia, desmanchava à noite, prolongando indefinidamente a tarefa. O final feliz eu deixo para vocês pesquisarem.



A comparação com a paulistana 25 de Março não se dá pela quantidade de gente, mas pelos preços, realmente baixos. Se levarmos em conta que fazia calor, tirando dessa forma um aperitivo, ainda assim é tentador encher as sacolas. Se a paciência e o tempo forem razoáveis, é possível rodopiar pelas galerias em geral, onde as vantagens são ainda maiores.



A cidade faz um reforço muito presente em sua temática. É bastante fácil se deparar por toda a parte com artigos que demonstram utilidades ou que produzem ornatos a partir de sua arte, como os agasalhos para árvores...



... ou forração de bancos e capas de poltronas, onde são exibidas também as variedades de pontos de tricô, além dos usos de crochê e macramê, outras técnicas de tecelagem originalmente manuais.



No centro da praça principal, um ônibus faz as vezes de receptivo turístico. Ele é completamente forrado por peças tricotadas e coladas em sua carroceria. Sua “vestimenta” é trocada a cada nova estação, buscando uma temática diferente.



É curioso, mas o receptivo veio suprir uma necessidade que Monte Sião ainda tinha, que é a centralização de um atendimento ao turista. Anteriormente, a pessoa que visitava a cidade meio que se virava, na base do trânsito verbal. Hoje, é possível receber uma série de informações de referência no local.



Por este motivo, todo o ônibus é povoado de objetos que refletem os usos e as técnicas de seus artesãos. O volante, por exemplo, é recoberto de fuxicos, que reaproveita retalhos de tecidos que sobram das costuras. Ao se arrematar uma dessas pequenas peças, puxa-se a linha do alinhave, de forma a fazer um arranjo circular. São unidos também em costura, e podem virar colchas, toalhas de mesa e até roupas de vestir. São trabalhos que levam muito tempo para serem feitos, e é daí que nasce o termo “fuxicar”, dado o costume de tratar de temáticas críticas à conduta alheia quando da reunião de várias costureiras para fazer seu trabalho.



O receptivo turístico também contém outros produtos típicos da cidade e da região, o que procura dar mais algum impulso econômico para além do comércio de peças de vestuário. Lembrem-se que estamos no sul de Minas, região farta em comes e bebes.



Lá nós podemos ver as linhas, matéria-prima básica do trabalho de tecelagem, e também as porcelanas azuis tão costumeiras na casa, os vinhos (uma novidade da região), os condimentos e os doces.



Também há muitos trabalhos artesanais, muitos deles baseados na especialidade, formando um vínculo entre criatividade dos usos alternativos e a memória regional. É exemplo este galheteiro forrado com fios tricotados...



... ou este cesto de roupas, originalmente feito de vime.



Para além da visão geral, começo lentamente a filosofar. Devo confessar que, por mais interessante que possa ser a região das lojas, tenho um limite meio baixo com relação aos ambientes de compras (enquanto a patroa se delicia). Passo a observar, então, com atenção crescente, não mais às etiquetas, mas à estrutura que está no pano de fundo das diferentes vitrines: há uma diferença que traspassa o próprio material com o qual são confeccionadas as peças. Parece existir um certo confronto entre tendências e inovações.



Por um lado, parece que há uma certa carga de uniformidade, que delimita formas e cores; por outro, parece que há a procura justamente pelo oposto, estando na linha de vanguarda de novas tonalidades, formatos, adereços. É uma tensão permanente que dá dois vieses ao mesmo fenômeno: a Moda. Vamos filosofar sobre isso.



Mais de uma vez já contei histórias da minha defunta mãe, costureira autônoma de épocas em que ainda era comum mandar fazer calças, sua grande especialidade. Normalmente, a freguesia poderia ser classificada através do critério intencional: o que esperavam de sua peça pronta? A grande maioria queria a reprodução de uma peça preexistente, com leves variações de cores e detalhes. Na minha infância, estava em voga as calças com pregas para homens, e das calças-balão para as mulheres. Para realizar o trabalho, minha mãe pedia o modelo e o reproduzia, o que facilitava as questões de medida. Outra boa parte trazia um referencial da moda, sem, no entanto, possuir um modelo para copiar. Neste caso, em geral era trazida uma revista ou jornal com o tipo de peça a ser preparado. Isso implicava em mais trabalho: era preciso tirar todas as medidas do contribuinte, além de comprar uma revista de moldes (nem sei se existem mais), caso o formato fosse inédito para a genitora. E o terceiro caso era mais raro, mas bem mais trabalhoso e arriscado: uma roupa inédita, sem modelo. Uma criação, em suma. Esses casos dificilmente se aplicavam a uso quotidiano. Eram vestidos para formaturas, madrinhas de casamento, essas bossas. A matriarca, esperta, pedia um álbum de fotos da moça (essa demanda nunca era masculina) para tirar o máximo de conclusões possíveis sobre o modo de vida da postulante a manequim. E costumava propor coisas de acordo com o gosto geral da manceba: discrição para as discretas, festividade para as festivas, ousadia para as ousadas. Sabia do risco de confiar unicamente nos sabores disponibilizados pela mãe, que projetavam para as filhas unicamente o que gostariam para si mesmas. E era isso.

Em que momento o trabalho da minha mãe era criativo e em que momento era técnico? Em que momento era arte ou era ofício? Essa parece ser a fronteira que coloca a Moda, com “m” maiúsculo, em diferença com a moda de “m” minúsculo: a partir do momento em que ela é uma atividade de criação, e não de mera reprodução. Mas a Moda, neste sentido, é como a Culinária: uma arte de sentido estendido, eminentemente prático, que se caracteriza pela utilidade, e não só por si mesma (como já discorri aqui). Talvez seja por isso que os estilistas desejaram se destacar dos costureiros, saindo do campo do artesanato, com sua vontade em um nível acima à de seu cliente. Eu lembro que o principal nome da moda no Brasil, Clodovil Hernandez, se apresentava como costureiro. Isso indicava que ele não só criava suas roupas, mas também as fazia, dando uma noção maior de completude ao artista que domina arte e técnica. Mas o termo não dava, de fato, um relevo especial à criação. Clodovil era tão costureiro quanto minha pobre mãe. Por isso, o interesse em criar a casta, que surgiu já no século XIX, mas cuja consolidação é até hoje contestável.

No entanto, mesmo que reconheçamos a moda como arte, ainda assim ela carrega consigo uma aura de futilidade. Ainda que pensadores como Daniel Miller, de quem falei recentemente, busquem um novo estatuto para a indumentária como demarcadora da individualidade, não há como escapar a considerações de ordem social e de tentar perceber se há uma naturalidade nesse entender frívolo ou se há mais por trás disso tudo.

Comecemos pelo próprio termo em si. Em Estatística, moda é o termo que mais vezes aparece em uma sequência de dados. Para exemplificar, tomemos a sequência {1, 3, 3, 3, 4, 5, 5, 8, 10}. Qual é a sua moda? É o número 3, que aparece por três vezes, simples assim. É diferente da média, que soma os valores dos termos e divide pela sua quantidade (no caso, 4,66...), e da mediana, que busca o valor mais ao centro da sequência (4). Então a conclusão é simples: moda é aquilo que aparece mais vezes. É o modo (lat. Modus) como uma comunidade se apresenta, e meio que significa "costume". Olho para meu redor e percebo muito jeans, tênis e camisetas. Se estivesse em meu ambiente de trabalho, seriam ternos, vestidos e sapatos. Mas essa é apenas uma observação geral, porque há tendências: os ternos podem ser de estilo inglês, italiano ou americano; os vestidos serão curtos, longos, pregueados ou retos; os sapatos, bico fino ou largo, sandálias e tamancos de salto alto ou plataforma. É de se notar que somente alguns estarão em alta em determinadas temporadas, caindo os demais ao temível démodé, ou fora de moda, sinônimo de desatualizado, antigo, ultrapassado.

Mas essas coisas não brotam dos pés de repolho. Alguém determina o que será moda a partir de um determinado momento. Em tempos pretéritos, a indumentária era sinal de distinção social, com os membros da aristocracia se vestindo de forma muito específica, enquanto a plebe rude o fazia com o que era possível. Os tempos mudaram e a hierarquia mudou de mãos: já não eram os nobres que estabeleciam as normas estéticas, mas os burgueses. A partir deste momento, não temos mais uma origem genética que explique a distinção, mas uma capacidade de estabelecer uma primazia das mercadorias pelo seu valor de troca, que pode superar em muito seu valor de uso. Essa elite se caracteriza pelo consumo conspícuo, como bem notou Thorstein Veblen (leiam aqui), e que estabelecem: isso é o que há de melhor; tudo o que vem abaixo são escalas para essa meta. E, com isso, ditam os padrões de consumo.

Ainda assim, as elites financeiras manjam muito de ganhar dinheiro e de gastá-lo, mas há alguma coisa para determinar a eles mesmos o que poderá distingui-los ainda mais, entre si próprios. Será aí que entram os estilistas? Em parte, sim; em parte, não. É certo que as madames podem encomendar suas roupas com profissionais habilitados nesta área de atuação, mas pensemos em um desfile de moda de um desses grandes nomes da moda: Versolatto, Armani, sei lá. São obras de arte extremamente conceituais, que dificilmente veremos sendo trajadas nas ruas. É muito mais fácil de acontecer a magia quando um outro vetor, mais próximo do popular, encampe uma determinada tendência. É aqui que vemos lindas atrizes usando jeans rasgados, e com isso o seu uso fica validado. O que era brega, fica chique de um minuto para o outro. Atores, atrizes, músicos populares e jogadores de futebol estão mais próximos das grandes massas que os magnatas, e são a ponte que liga os ignaros ao mundo fantástico das celebridades. Em geral, está-se cagando para o que usa a filha do dono do Banco X, mas o que veste a Paolla Oliveira todo mundo quer saber. É a partir desse endosso que a novidade em termos de moda deixa de ser uma extravagância para virar uma tendência.

Pois é... Já daí percebemos a importância da publicidade para fazer a roda da moda girar adequadamente. Ela aponta para um ideal de vanguarda, mas também de conformidade. Transformar uma peça de alta-costura em prét-a-portér é, antes de mais nada, um exercício de oportunidade comercial. É por aí que se projeta uma espécie de prazer idealizado baseado na novidade. Com uma subjacência malvada: o novo tem prazo de validade. E aí entramos na velha lógica capitalista de que é preciso vender, justamente através do estímulo do consumo. Você tem uma roupa, ela é boa, mas está fora de moda. Você deixa sua boa roupa guardada no armário em nome da novidade. Mas é ainda uma questão de voga, que pode ser maximizada ainda mais com uma boa dose de psicologismo. Uma boa maneira de fazer isso é dar um desalinhamento entre o objeto pensado e o objeto concreto. Temos a sanha do consumo, compramos e vemos que aquilo não correspondia bem ao que sonhávamos – nem todas as meninas tem o corpo da manequim. A mecânica do desejo se mobiliza: a representação da vontade não corresponde com a realidade, e uma nova vontade surge metafisicamente, e mais uma vez, e outra, e outra... É a perfeita realização da lógica schopenhaueriana (vide).

Mas há um lado de lá. Nem só de imposições vive a sociedade, e há certas modas e tendências que nascem de maneira espontânea. Como as roupas estão dentro do campo simbólico que ajudam a representar a identidade de um indivíduo, é preciso lembrar que há outros elementos que ultrapassam um pouco a questão do mero consumo a ligar grupos. Passeie pela Mooca. Pago dois cannoli do seo Antonio da Javari para quem ver menos de dez pessoas com a camisa do Juventus e uns trinta adesivos nos carros. Não há publicidade generalizada de material do Juventus, trata-se de um pequeno clube, com estádio minúsculo, mas que fecha bem com a identidade do mooquense, que nasceu de forma espontânea. Não consegui até hoje fechar um veredito sobre o bairrismo do pessoal da Mooca, sendo eu, inclusive, nascido lá. Mas é claro que há uma apropriação desse sentimento pelo comércio local. Há lojas inteiras de produtos dedicados ao Juventus, coisa que faliria em cinco dias em qualquer outro bairro onde se ostentassem as lindas camisas grenás. O mooquense gosta de ser da Mooca e de mostrar isso para todo mundo, e o maior distintivo disso é seu time. Poderia ser sua bandeira, seu hino, qualquer outra coisa, mas é uma entidade própria, que é moda lá e somente lá. Esse exemplo de moda espontânea mostra a diferença que há entre o consumo como um meio e como um fim. Quando vamos ao shopping, nossa finalidade é comprar alguma coisa, nem sabemos bem o que no mais das vezes; quando compramos a camisa do Juventus, o consumo é um meio de se identificar. Já estive em São Luiz do Paraitinga com o manto carmesim e alguém me interpelou: “Ô da Mooca!!!”. É ou não é um identificador?

Ufa!!! Voltamos no começo da noite, com uma bela sacola de gorros e blusinhas, todos para serem usados quando voltar a fazer frio. Ah, e também com um belo pulôver para o Homem-Cueca, porque isso também é moda. Bons ventos a todos!!!

Recomendações:

Usei o livro abaixo para obter base teórica no desenvolvimento deste texto. É repleto de referências a outros trabalhos, o que pode ajudar, e muito, a quem se interessar pelo assunto. Seu autor é sueco.

SVENDSEN, Lars; Moda: Uma Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

Para quem gosta de roupas de inverno, Monte Sião é o destino ideal. Há lojas abertas todos os dias, com preços realmente convidativos. E dá para bater-e-voltar. Boa viagem.

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