Marcadores

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Os verdes mares de onde não há mar – 9ª parada: Conceição dos Ouros e o eterno problema do relato

(Confiar em relatos sempre é um problema. Que fará quando ele é base para o estudo científico)

Olá!

Clique aqui para acompanhar as outras paradas do trajeto

Quando vamos a um destino turístico, nossa intenção sempre é de encontrar alguma marca que distinga aquele local de todos os outros. É verdade que há muitas coisas em comum, pontos geográficos, espaços históricos, eventos culturais, construções religiosas e assim por diante. Mas é sempre interessante quando há algo que faça com que aquela localidade seja única, e de onde eu falarei agora, temos o curioso epíteto de Capital do Polvilho. Vou falar de Conceição dos Ouros, a quem visitei no prosseguimento desta viagem.

A prática da fabricação do polvilho veio da disponibilidade de mandioca, abundante na região. Todas as fábricas ficam na beira da estrada, e trazem um aroma ácido peculiar, proveniente da fermentação do amido. Consegui visitar uma das maiores, a Ourense, de propriedade do seo Romeu, que estava andando pela parte baixa da fazenda quando cheguei e me indicou o escritório para conhecer melhor a história do lugar.

A base para a fabricação do polvilho é a mandioca, raiz comum no Brasil que contém alta quantidade de amido em sua composição. Ela chega nessa fábrica em caminhões que são literalmente tombados para que o produto caia de suas caçambas.

A mandioca é lavada e descascada, para então ser levada a um processo de moagem, que é feito com um contínuo processo de hidratação.

Segue-se um processo de separação do amido e da massa de mandioca. O amido vai com a água para os tanques de decantação, enquanto a massa vai para a secagem, para virar ração para o gado.

Como disse antes, todo o processo consome boa quantidade de água, e a separação dela do amido é feita por decantação. Essa água, rica em ácido cianídrico, é conhecida como manipueira e precisa receber tratamento para não chegar in natura nos rios, porque vai fatalmente contaminá-los.

O que diferencia o polvilho doce do azedo é que esse último entra em um processo de fermentação, onde ficará por umas duas semanas. Depois disso começará um insólito procedimento de secagem, feito em tabuleiros ao ar livre, em um delicado equilíbrio com as intempéries da natureza.

Os meninos que nos atenderam nos contaram um fato único: a necessidade de sair correndo para recolher as esteiras de secagem todas as vezes em que o tempo ameaça mudar, mesmo que seja uma ventania. Isso porque, evidentemente, todo o trabalho fica perdido quando há espasmos violentos no clima.

Perguntei qual seria uma alternativa viável. Explicaram a mim que é possível fazer uma secagem artificial, que desnatura o produto, ou colocar o composto em estufas, mas imagine o tamanho da construção que seria necessária.

O resultado são produtos os mais variados: polvilho doce e azedo, tapioca, preparo para bolo, para biscoito e para pão de queijo.

Mas não fui lá somente para comprar polvilho. Passando para a parte mais administrativa da coisa, Conceição dos Ouros tem esse nome por uma conjunção de fatores. O nome inicial é por dedicação à padroeira do município, Nossa Senhora da Conceição, cuja imagem orna a pracinha central.

Já a segunda parte diz respeito ao Ribeirão dos Ouros, que tem esse nome porque, no passado, foi encontrada certa quantidade de ouro de aluvião por essa redondeza, o que levou à povoação mais intensa do local. O rio forma uma série de saltos e prainhas para a diversão da galera.

A fundação desta cidade foi responsabilidade do Major Félix da Motta Paes, que doou parte do terreno que hoje compõe a área urbana.

Esse território englobava, principalmente, a redondeza da confluência do Ribeirão dos Ouros com o Rio Sapucaí-Mirim, que incluía a antiga capela de Nossa Senhora da Conceição e seu adro, que hoje é a praça que guarda sua homenagem.

A matriz que leva seu nome hoje é uma igreja grande, e é logo lindeira à praça.

Hoje Conceição dos Ouros tem uma cara um pouco diferente do habitual nas cidades do interior, e, apesar do relevo típico da região, possui avenidas largas e ruas retas, com pouco acompanhamento aos contornos naturais.

Como eu disse, não fui a Conceição dos Ouros só para ver polvilho. A cidade tem no meio natural algumas atrações, e eu achei por bem ir atrás de uma trilha. Nesses tempos modernos, peguei a localização no Google, que, sendo Google, me mandou para o meio do nada. Lá estando, perguntei para um morador que passava sobre a tal trilha, e este me mandou para outro canto. Depois, uma criança me diz que eu estava indo para o lado oposto. Novo fracasso, nova pergunta e, de novo, cara de estranhamento e recomendação de outra trilha, até que desisti e fui admirar uma prainha.

Ninguém aqui quis mentir para ninguém. Nem os habitantes, que não entenderam alguém que vem de outro estado e pergunta por nomes oficiais, nem o Google, que simplesmente reproduz uma informação que foi imputada em seus bancos de dados. A questão toda está na fragilidade das informações não metódicas, que são assim mesmo: apontam para norte ou para sul ao sabor de quem as profere.

Isso é um tremendo problema naquela divisa entre as ciências exatas e as ciências humanas que tratei neste texto, ainda naquele espírito de esclarecer como as Ciências funcionam. Se queremos precisão nos dados, é justamente de um relato que não vamos obtê-la. Mas há momentos em que não temos outro caminho.

Pense, por exemplo, nas histórias familiares. Meus filhos conheceram extremamente pouco os bisavós. Da minha parte para com os avós da minha patroa, a relação era meio conturbada, porque eu era um largado, de tênis sujo e calça rasgada, que estava preocupado em correr para lá e para cá com uma banda cheia de maconheiros, e com o pouco confiável emprego de arquivista em uma grande rede de varejo para não garantir o futuro e blá-blá-blá, tudo isso no dizer deles. Nada mais natural que eu fosse muito pouco em suas casas, principalmente para evitar brigas. Quando tenho algo a contar sobre eles para meus filhos, é sob esse prisma que o faço. Já a consorte trata deles com muito mais carinho, dizendo que a avó dançava, o avô fazia paçoca e essas coisas que os avós fazem. Ela corria para lá quando sua mãe queria pegá-la com fio de ferro ou quando brigava na escola. Tinha colo e doce, e eu também adoraria um lugar assim. De um lado ou do outro, a verdade não vem, porque uma versão é rançosa e a outra é afetiva.

As Humanas sofrem com isso. Por isso, precisa lançar mão de recursos em substituição à precisão das observações das Exatas. Meu exemplinho bretão: no clássico da rua de cima contra a rua de baixo, todas as medidas matemáticas e físicas são pouco passíveis de dúvida – a medida do campinho é mensurável por trenas, a acidez do terreno por PHmetros, a inclinação por hipsômetros, o peso da bola por balanças, a espessura das linhas por réguas, a iluminação por luxímetros, a resistência das redes por dinamômetros e por aí afora. Já a qualidade do jogo, o talento dos atletas, a retidão do árbitro, a competência dos técnicos e a importância das torcidas não têm aparelhos para medir. Tudo depende de uma apreciação subjetiva, que só pode trazer resultados na base do consenso, o que não é fácil de se obter. O torcedor da vitoriosa rua de cima dirá que o jogo foi ótimo, enquanto o infeliz da rua de baixo clamará contra os céus e o goleiro peruzeiro, o gramado ruim, o centroavante caneludo, o juiz caseiro, o técnico burro e até contra os sapos enterrados no pé de suas traves. Partindo da premissa caeiriana de que o rio da minha aldeia é mais belo do que o Tejo por ser o rio da MINHA aldeia, é possível pensar que mesmo a mais isenta das opiniões é eivada de alguma parcialidade, pelos mais diversos motivos. Cada um terá um relato próprio, e é desse minestrone que um sociólogo ou antropólogo precisará tirar suas conclusões.

O exemplo banal do jogo de futebol hipotético podemos espalhar, grosso modo, para qualquer aspecto sociocultural que dependa de depoimentos para ser trazido a claro. E aqui já temos que nos defrontar com a questão axiológica das Ciências: uma área do conhecimento não pode e nem deve possuir valores, mas eles são praticados por pessoas, que inevitavelmente têm os tais. Conciliar essas duas características é um sufoco daqueles. Percebam que um fato é um fato, independentemente do juízo que façamos sobre ele, e ponto. Mas a própria visão que temos sobre o fato depende de muito do que tenhamos já interiorizado em nós.

As Ciências Humanas têm, então, que contornar o problema do relato. Ele é substancial quando tudo o que temos são depoimentos. Vejam que não são somente as Humanas que sofrem com isso: sintomas de indivíduos participando de um experimento com remédios carregam desse mesmo desafio. Uma dor de cabeça após a ingestão de certa pílula nem sempre é causada pelo tal medicamento, que pode ser motivada pela sugestionabilidade do participante. Por isso existem os grupos de controle (leia mais aqui), e também por isso pesquisas quantitativas precisam ser razoavelmente grandes. Um exemplo maravilhoso está acontecendo agora no Brasil (com atraso): o censo do IBGE, aquela pesquisa que acontece a cada dez anos e na qual os recenseadores vêm bater à nossa porta com formulários imensos, e que vale não somente para direcionar políticas públicas, mas que é canônico para qualquer cientista social obter informações. Para uma melhor aferição e direcionamento dos recursos públicos, é preciso que o entrevistado forneça dados os mais precisos possíveis. Tudo vai bem enquanto as perguntas versam sobre quantidades de moradores, parentesco, estado civil, religião. Já entorta um pouco em definições menos objetivas, como raça/cor, e para questões consideradas constrangedoras, como a definição da escolaridade. E, em um país violento, com tanta notícia de vazamento de dados pessoais, a informação sobre renda é, sem dúvida, a menos confiável de todas. Quem se sente confortável em dizer para um estranho o quanto ganha? Se é pouco, é vergonhoso; se é muito, é arriscado. É certo que outras fontes podem fornecer dados sobre o mesmo tema, mas aqui nós podemos perceber como o relato, mesmo em pesquisas quantitativas, pode distorcer a realidade. Fôssemos obrigados a apresentar um holerite, o problema estaria diminuído, porque haveria o confronto com um dado real e objetivo, sem passar pelo filtro das idiossincrasias, mas tornando ainda mais lenta a coleta do survey (para saber mais sobre metodologia de pesquisa social, leia este texto).

Mas para Sociologia, Antropologia, Psicologia, História, Economia e outros, às vezes não há números, somente histórias contadas. Quando a pesquisa depende mais exclusivamente do relato, a dificuldade aumenta muito. Há um fenômeno psicológico que leva um indivíduo a moldar diferentes versões de suas narrativas dependendo do público que vai recebê-lo. Infelizmente não consigo lembrar onde eu ouvi, mas tenho perfeitas lembranças (com toda chance de armadilha da memória assumida) de um caso muito interessante. Um grupo de crianças foi entrevistado por uma equipe de pesquisadores sobre diversos elementos da vida social da escola em que estudavam. Uma das abordagens foi sobre a imputação de apelidos entre os colegas e o nível de desconforto que isso ocasiona, especialmente quando tangenciada a questão racial. Nas reuniões em que o grupo fazia todo junto, o resultado era bem complacente: não havia problemas nos apelidos, que, no final das contas, melhorava a comunicação e personificava as pessoas. Entretanto, estando em entrevistas individualizadas e com sigilo assegurado, outra realidade se descortinava, com a demonstração de grande desconforto nesses apelidos, e sua tolerância se dava pela aceitação dos membros pelo grupo, e não uma verdadeira aceitação própria. É triste, e precisa ser considerado nas conclusões da pesquisa, mas demonstra a dificuldade encontrada – nem sempre conseguimos ter essas sacadas que esclarecem as coisas. Temos uma verdade pública e outra privada, temos perspectivas diferentes dependendo do ângulo que enxergamos um fenômeno, temos posições ativas e passivas em situações que fazem mudar nossa opinião, temos versões que são influenciadas pela carga cultural e pela história de vida que cada um de nós leva consigo, discriminamos as coisas de acordo com a capacidade e conteúdo cognitivo pessoal. Por isso, o relato é um problema tão grande na pesquisa.

Uma pesquisa científica procura uma generalização, e isso é obtido a partir de eventos singulares, que são coligidos até se obter uma linha de tendência, de modo a se obter uma relação causal que resulte em estabilidade e sequência. Desse conjunto, há uma explicação para os fenômenos. Quando o assunto em pauta tem caráter social ou antropológico, é preciso que o pesquisador tenha meios de qualificar o dado que recebe. Um único relato nunca é suficiente isoladamente. O Google, sozinho, manda-me para um morro perdido. O rapaz que por lá passava me mandou para um outro lado, e assim por diante. Se na minha pesquisa eu perguntasse a umas trinta pessoas, certamente haveria uma tendência para procurar em um local mais certo: se umas vinte dessas pessoas falassem para eu cruzar tal pontezinha e virar à esquerda, seria mais provável seu acerto do que o da menininha que me dissesse para voltar para trás e entrar no carreador depois do abacateiro.

E finalmente: perguntar porque a tal menininha me mandou para o outro lado do morro levanta tantas questões quanto a própria busca pela trilha que eu procurava, e daí a quantidade não faz diferença nenhuma, mas sim a sua vida e experiência pessoal, tão singular quanto a correria do pessoal da fábrica de polvilho a cada vez que uma nuvem marota prenuncia a mudança do tempo no fundo do horizonte. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Livro da velha guarda, mas que tem as premissas fundamentais da pesquisa.

CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. São Paulo: Cortez, 2000.

Nenhum comentário:

Postar um comentário