(Arrumar as coisas não é só uma atividade prosaica. Melisso de Samos mostra isso)
Olá!
A gota d’água foi um potinho de cal virgem, um humílimo e
quase desprezível recipiente onde é armazenado um pozinho fino e esbranquiçado,
meio puxado para o sujo. É aquele típico negócio que usamos para quase nada em
nosso meio urbano, mas quem cozinha sabe para o que ele serve: criar uma
casquinha nos pedaços de abóbora quando é feito aquele doce em pedaços. Duas
horas de molho em uma tigela que os recubra de água é o suficiente para a magia
da química ocorrer.
Mas por que gota d’água? É que para encontrar o malfazejo,
foi preciso baixar dois armários cheios, compostos por mixes de panelas,
batedeiras e comidas. Explico melhor. Os armários de casa são organizados na
base do caos. Compras novas entram onde há uma vaga, sem muito critério
divisivo. Isso faz, naturalmente, com que tudo o que é mais usado fique na
frente, enquanto as raridades vão se afundando em meio ao turbilhão. É o que em
Contabilidade se chama de LIFO - last in, first off. Em bom português, o
último a entrar é o primeiro a sair. É uma prática vetada pelos melhores
manuais e pela legislação, porque sobrevaloriza o estoque, mas estamos falando
em desordem mobiliária, e não em finanças e arrecadações. Claro que há um fator
de comodidade em se encaixar qualquer badulaque onde existir vaga, mas também um
efeito colateral considerável: vencimento dos produtos que vão parar na rabeira.
Tudo isso alimentado pelo desânimo de ficar procurando miudezas que foram parar
atrás de caçarolas.
O pior é que a cal nem estava lá, mas em um armarinho do
corredor de entrada, um daqueles acontecimentos que concluímos com um “ora
vejam só”. Mas é nesses momentos que misturam cansaço com ódio que a patroa
costuma encontrar forças. Ela baixou TODOS os armários da casa entre mesas,
camas e poltronas e resolveu inspecionar item a item, para lhes dar ordem
definitiva e proporcionar desânimo a este escriba. Botou-me para correr atrás
de caixas e instalar prateleiras, de modo a multiplicar o espaço disponível.
Deu lugar às coisas de fogão, aos alimentos e aos eletrodomésticos, de modo a
isolá-los por completo uns dos outros. Avaliou um por um dos objetos para lhes
dar armazenamento, destino ou livramento, jogando fora uma boa porção de coisas
vencidas. Colou etiquetas nos organizadores, criou corredores para visualização
dos artigos de fundo e ameaçou-me com greves de silêncio e outras coisas para convencer-me
a dar manutenção ao novo formato.
Devo admitir que ficou bom, e casos como o da cal estão, ao
menos temporariamente, resolvidos. Sua sanha organizatória não parou, sendo
estendida neste exato momento para o guarda-roupas e cômoda do quarto. Se ela
fica feliz assim, para mim está ótimo. Entretanto, essa narrativa toda chegou
até aqui por um motivo muito simples. Dentre pimentas mofadas e canecas
amassadas, surgiu um artefato que estava guardado sem uso, em estado de zero:
um porta-filtro Melitta, o mais clássico dos métodos de preparo de café,
somente superado pelos coadores de pano no quesito tradição.
Não há muito o que comentar, a não ser que os cuidados básicos e evidentes devem ser tomados: água de boa qualidade, escaldar o filtro, aquecer o conjunto. De resto, um bom café em moagem média fará seu percurso até o pequeno furo contido na base. Este método, que segundo o site da empresa foi criado pela dona de casa Melitta Bentz, foi o primeiro a adotar um processo de filtragem por papel, que reduz a quantidade de resíduos quase a zero, e os métodos semelhantes nada mais são do que aperfeiçoamentos da ideia desta senhora, como a percolação em giro, os furos mais pronunciados (que evitam o amargor da bebida) ou outras traquitanas mais ou menos inventivas.
Nome do utensílio: porta-filtro
Melitta
Tipo de técnica: percolação
com filtragem por elemento de papel
Dificuldade: baixa
Espessura do pó:
média
Dinâmica: introduz-se
um filtro de papel de tamanho apropriado no porta-filtro, com dobra cruzada nas
costuras, para depois realizar-se um escaldamento no mesmo. Deposita-se café
moído em ponto médio no filtro. Despeja-se água suficiente apenas para umedecer
todo o pó (blooming). Após cerca de trinta segundos, realizam-se ataques
de modo a não ultrapassar o limite do filtro ou do porta-filtro.
Resíduos: nenhum
Temperatura de saída:
média
Nível de ritual: baixo-médio
Tomar um cafezinho passado na Melitta fez-me refletir sobre
toda a arrumação que a patroa levou a cabo nos armários de casa, e como essa
atitude por vezes é necessária em tudo o que fazemos, incluindo em nossas
ideias. Como estou diante de um originador de diferentes métodos, passa-me pela
cabeça os mecanismos de aperfeiçoamento que cada uma das evoluções traz para
uma maneira de fazer as coisas, especialmente a noção de sistema e
sistematização.
Quando a patroa retirou tudo dos armários, classificando
cada um dos artigos de acordo com suas semelhanças e diferenças e alocando em
espaço determinado, ela organizou um arranjo caótico em um sistema, ou seja, articulou
um conjunto de regras onde antes elas não existiam. Praticamente em tudo é
possível embutir sistematizações, e por vezes elas são vitais, como no caso
caseiro ou na reunião de experiências que versam sobre um mesmo assunto, como
nas revisões
sistemáticas (ora vejam). Isso permite que as diversas correntes sejam
unificadas em uma só, e como o espírito científico visa a aproximação com a
verdade, podemos observar que uma visão limita e complementa as demais. Enfim,
uma sistematização nada mais é do que transformar os objetos de um campo em um
arranjo concertado, que é exatamente a definição de sistema.
Um exemplo do nosso dia-a-dia. Todas as vezes que você vai a
um banco, uma lotérica, um guichê qualquer ou um caixa e encontra filas além do
normal, temos o argumento clássico: o sistema está lento. Além de ser uma
desculpa universal, significa que algo fora do escopo normal está acontecendo -
excesso de usuários, condição imprevista, problemas de rede e etc. Um sistema
de informática nada mais é do que um arranjo de instruções construído para
processar determinadas informações. Estas informações soltas não tem
significado algum. O que significa um número 50 fora de um contexto? 50 reais?
50 pessoas? 50 minutos? Por esse motivo, as informações precisam estar
corretamente organizadas para produzir os efeitos desejados. Além das
instruções, um sistema pressupõe dados de entrada e de saída, um meio por onde
as informações transitarão e demais que-tais. Por esta razão, falhas em toda
essa sistematização farão com que as coisas deem errado. Apreendido o problema,
a correção será incorporada ao sistema e este será aperfeiçoado.
Sistematizações não são novidades. Elas sempre ocorreram no
campo filosófico, algumas vezes de maneira espontânea e não registrada, outras
vezes de maneira mais sistemática (rá, rá, rá). A melhor amostra que posso
pensar agora é a sistematização do pensamento eleático, levada a cabo por
Melisso de Samos, autor de mais um De Natura, tão constante entre os
intelectuais gregos.
Vamos começar explicando a bagunça. Já falei exaustivamente
sobre Parmênides nesta casa, tanto que nem vou relacionar aqui. Dentro do
movimento dos pré-socráticos, sua concepção de busca das essências foi
absolutamente original. Enquanto os seus contemporâneos procuravam a arché
em um elemento que se apartasse da sensibilidade, mas que ainda assim fizesse
parte da natureza cosmológica, o eleata a buscou em seu aspecto ontológico,
aprofundando muito mais o nível de abstração desta pesquisa. Ou seja, enquanto Tales
e sua turma tentavam deduzir o elemento que origina a natureza, Parmênides
questiona o que é a natureza em si mesma. É muito mais fácil compreender que as
coisas são feitas de água do que entender o que faz com que a água seja o que
ela é, não é mesmo?
Então Parmênides estabeleceu que essa essência presente no
cosmos é o Ser, como se a própria existência se identificasse com a essência.
Um dos seus fundamentos é sua oposição ao nada, ou ao não-Ser. Quando Parmênides
fala sobre esse não-Ser, está se referindo a um nada absoluto, que não pode ser
detectado pelos sentidos e nem mesmo pensado. É só fazer um exercício mental
para compreender: se tentarmos pensar no nada, não conseguiremos. Podemos
pensar em um grande espaço vazio, mas o espaço não é o nada. Podemos pensar em
um objeto que estava sobre uma mesa, mas agora não está mais lá; só que o
passado existe, então o passado não é o nada. Podemos pensar até mesmo em uma
completa ausência, mas ausência de que? Tudo o que pode ser pensado existe, até
mesmo os seres imaginários, que se constituem de bricolagens de outros seres,
da forma que ocorre com um dragão ou uma cuca. Mas existem nas mentes.
Conclusão: o não-Ser, ou o nada, não podem ser pensados.
Embora muito complexo, o pensamento de Parmênides
influenciou muita gente em seu tempo e à frente dele, com seu efeito mais
evidente em Platão. A tese do Mundo das Ideias platônico diz que existe um
lugar de onde parte o modelo de tudo o que existe. Desta forma, existe o coelho
ideal, a cadeira ideal, a rua ideal, o ser humano ideal, que plasmam todos os
seres do mundo sensível como cópias imperfeitas. O coelho, a cadeira, a rua e o
ser humano existentes sempre tem diferenças com relação aos ideais, de forma a
possuir imperfeições que não existem em seus originais. Agora, pense no
seguinte: se você for a uma dessas feiras de design, verá cadeiras projetadas
por arquitetos de interior como nunca foram vistas antes, verdadeiras
estranhezas que somente um conceito de cadeira preexistente pode nos fazer
reconhecê-las. Esse conceito já estabelecido é exatamente a cadeira perfeita
que reside no mundo das ideias, a cadeira essencial e imutável de Parmênides.
Como o pensamento platônico exerce influência até os dias de hoje, por tabela
podemos dizer que com Parmênides acontece o mesmo.
Entretanto, é inevitável, segundo o princípio da entropia*,
que a baderna aumente se não existir um princípio balizador. As ideias de Parmênides
já traziam um antecedente de Xenófanes
e levavam a derivações de Zenon
e outros pensadores, que, estando esparsos pela Magna Grécia, fazia com que
diferentes conclusões fossem possíveis. Sendo um conhecido estrategista
militar, Melisso viajou por todo aquele mundo intelectual e recolheu de toda
parte as evoluções da escola eleática. Além disso, acabou por produzir material
próprio, onde corrige alguns pontos que entendia estarem obscuros ou não
plenamente formulados.
Entretanto, onde Melisso concorda e onde corrige as doutrinas
eleáticas? Para saber, é preciso primeiramente listá-las. Vamos lá.
- O Ser é incriado. Se houvesse algum momento em que ele surgisse, deveria surgir do não-Ser, o que é incoerente;
- O Ser é incorruptível, porque, se o fosse, estaria destinado ao não-Ser, o que também é ilógico;
- O Ser não tem passado e nem futuro, por dedução do que foi afirmado anteriormente. De fato, se tivesse passado, referir-se-ia a um momento em que não era, e, se tivesse futuro, em oposição, teríamos um momento em que ele não será. Daí que ele é um todo no tempo, eterno;
- O Ser é imutável. Se não fosse, ele se mudaria para algo que ele não é, ou seja, se transformaria no não-Ser, o que não faz sentido. É também homogêneo. Se não fosse igualmente distribuído, haveria locais onde ele é “mais” Ser do que em outros, o que é absurdo;
- O Ser é imóvel. Se ele se movesse, rumaria para um ponto onde não está agora, e em seu lugar restaria o vazio, que é o não-Ser, que, como vimos até agora, não existe;
- O ser é completo e perfeito. Por ser completo, é preciso intuir que o Ser cabe dentro de seus próprios limites, e por ser perfeito, pensa-se que sua forma deve ser a que faculta sua melhor distribuição. Parmênides e seguidores entendem que a forma mais perfeita é a esfera, por ter todos os seus pontos aparentes equidistantes do centro, não apresentar arestas e não criar faces distintas;
- O não-Ser é ininteligível. Estando identificado com o nada, e este não podendo ser pensado, conclui-se que o não-Ser não existe, nem em instâncias abstratas;
- Qualquer sensação de mudança do Ser no não-Ser é uma ilusão dos sentidos. É uma questão de engano da opinião dada pelas aparências superficiais do que seria o verdadeiro Ser. Entretanto, é reconhecido o caminho das aparências plausíveis, porque é através delas que os fenômenos (as manifestações do Ser) podem ser expressos. Não é uma mera opinião, mas demonstração de como o cosmos nos aparece via sentidos.
No seu trabalho de sistematização, Melisso é bastante
concorde com a maioria desses princípios. Entretanto, ele possui um certo
espírito materialista que traz algumas discordâncias com alguns pontos. Ele se
contrapõe à noção de finitude esboçada por Parmênides e ratificada pelos demais
eleatas. De fato, a esfera pensada por esses intelectuais dava uma noção de
fronteira que era incongruente com a impossibilidade do não-Ser. Se este
“objeto” existisse, estaria forçosamente limitado com alguma coisa que não
seria o Ser, restando unicamente o nada para sê-lo. Desta forma, o nosso sâmio
reescreve os limites do Ser simplesmente derrubando-o: o Ser é infinito. Mais
ainda: a própria arché ganha um novo conceito a partir daí, porque, não tendo
limites, o Ser não pode ser múltiplo, porque ser mais de um significa ser, de
certa forma, uma contradição à ilimitação. A arché é o Uno, na concepção de
Melisso.
Como corolário, temos que o Ser não pode ser corpóreo (a
esfera, mesmo a pensada pelos eleatas, não deixava de ser um corpo), porque
ainda mais aí teríamos que ter a noção de limite. Um corpo, como bem mais tarde
pensaria Descartes, é res extensa, ou seja, coisa com tamanho. Se
Melisso nos diz que o Ser é ilimitado, não faz sentido em imaginá-lo com
extensão, característica indisputável dos corpos. Qualquer figura que o
represente, mesmo a esfera parmenidesiana, é inadequada.
A segunda contradição que Melisso encontra nas doutrinas
eleáticas diz respeito ao campo da opinião, afirmando ser a mesma sempre
inválida. De fato, uma opinião brota da percepção que temos dos sentidos. Se
estes fossem capazes de apreender a realidade, levando em consideração a
permanência e imobilidade do Ser, teríamos que, ao fitar um objeto qualquer,
essa primeira impressão deveria ser eternamente a mesma. Entretanto, é cediço
que percebemos alterações nas coisas. Hoje vemos uma planta, ela está florida.
Amanhã, já tem suas pétalas enrugadas, e depois já começam a cair. Portanto, a
percepção que temos das coisas vai na contramão daquilo que a razão reconhece
como Ser autêntico. E qual dos dois, razão ou percepção, é capaz de atingir o
Uno? Evidentemente a primeira. Mas as opiniões, mesmo as aparências plausíveis,
se formam por via dos sentidos, que enxergam o Ser como algo variável. Diante
do discurso racional, elas não têm validade alguma.
Notem como todo o pensamento dos eleatas é complexo, mas foi
a sistematização engendrada por Melisso de Samos que permitiu que ele tivesse
ao menos um encadeamento lógico sob parâmetros bem assentados. Se essa história
de Ser parece mera coisa de lunático, é uma questão de parecer individual, mas
não dá para dizer que as afirmações dos eleatas não podem ser baixadas a
fórmulas lógicas bem construídas, e é daí que veio toda a sua força. Se você
encaixar a definição de Ser em um deus, por exemplo, verificará que ela faz
sentido, porque muitos de seus predicados são utilizados igualmente nas
diferentes religiões.
Acho que não tenho mais nada para falar sobre
pré-socráticos, mas, se aparecer nova inspiração, não se preocupem, cá estarei
com minhas mal digitadas linhas. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
MELISSO. Sobre a Natureza ou Sobre o Ser in Os
pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
*É só uma zoeira com um termo distorcido pelo discurso criacionista. Leia mais aqui.
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