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quinta-feira, 23 de junho de 2022

Sobre acreditar em alguma coisa e confrontos entre fé e razão

(Fé e razão são difíceis de conciliar. Mas por que tentar fazê-lo?)

Diante da incerteza da capacidade humana de refletir, ou eu caio no desespero, ou eu me apego a alguma coisa - Montaigne

Olá!

Náusea, engulhos, suor frio, queda de pressão, sensação de morte. Tudo isso são sintomas de que vem vindo por aí uma bela chamada de Juca, a famosa revolta estomacal. Eu me defendo até o último segundo de uma dessas, tamanho o ódio que eu tenho de vomitar. Mas, apesar de nojento, é um ato que representa uma bela metáfora: a de expulsar de dentro de si algo que lhe faz muito mal. E isso se aplica a qualquer atitude que tenha natureza confessória.

Do que estou falando? De sair do armário? Isso também, mas não só. Teve um filme dos anos 2000 chamado O Casamento de Romeu e Julieta, puro entretenimento, e dos bons. Ora (direis), tu, que afirmas deter-se silente em tua sala nas noites escuras para pura reflexão, se detém em comédias românticas popularescas de atores globais? Sim, meu chato interlocutor. São duas coisas: a primeira é que sou um humano como qualquer outro, e que se diverte com pastelões também, mesmo sem nenhuma profundidade intelectual. E a segunda é que a Filosofia é extraída do quotidiano mesmo. É dele que brotam os fenômenos, e destes que nos surgem as abstrações. No filme em epígrafe, há um momento tal em que o protagonista, corintiano dos quatro costados, explode de sua condição de existência falseada. Quem nunca viu, é uma boa pedida para dias que não demandem grandes imersões.

Todos nós temos esses momentos de expulsão do incômodo que é não se manifestar de modo autêntico. Ficamos retendo certas características de nós mesmos pela conveniência, pelo medo de sofrer, pela falta de capacidade de lidar com o preconceito e via discorrendo. Só que nem sempre dá para segurar. Por muitas vezes, a coisa sai na forma de erupção, notadamente quando se sofre uma indignação, outras vezes é falado com extremo cuidado, para que não se firam suscetibilidades. E outras vezes sai espontâneo, como foi meu caso.

Eu já contei para vocês como foi todo o meu processo de sair do ambiente religioso, mas não lhes disse como foi a primeira vez em que se deu essa assunção, porque uma coisa é se reconhecer descrente, e outra é divulgar essa condição. A imensa maioria das pessoas que me conheceu como religioso ainda pensa que eu sou assim, pelo simples fato de que não me incomodo muito com isso e não faço proselitismo reverso. Mas a primeira confissão foi extremamente prosaica, por uma afirmação quase tola, mas que acabou saindo sozinha. Eu estava validando uma lista de especificações com uma analista chamada Paula, referente a um daqueles projetos intermináveis, quando eu admoestei pelo milagre que seria seu término. "A gente sempre tem que acreditar em alguma coisa", disse ela, lançando mão da frase pronta. Minha resposta foi imediata: "não… não precisa não. Acreditar é sempre uma desculpa para o desespero". Ela encolheu os ombros como quem entende que não adianta discutir com um mamute. A menina Paula é muito good vibe, meio pendente para o esotérico, então não abriu questão com minha manifestação. Você que lê talvez nem ache que eu tenha feito uma confissão de não-fé, mas essa foi a primeira vez em que a descrença passou a fazer parte da minha imagem pública.

Mas a colocação da colega de trabalho é interessante em se pensar. Mesmo que eu já tenha ouvido essa afirmação outras vezes, isso não tira o seu sentido. Afinal de contas, a questão de não acreditar em divindades não nos leva a não crer em nada.

Não crer em nada é o significado de ceticismo, vindo do grego skeptikos, aquele que pergunta. Já falei sobre como esse termo se confunde com o ateísmo, e, principalmente, rendi um texto sobre a importante escola da filosofia helenista que se formou ao redor do conceito. É, de fato, muito desanimador chegar à conclusão que nada pode ser conhecido, e, por isso, depois de seu surgimento, essa linha de pensamento passou por duros testes, já começando logo de cara com os filósofos ecléticos, que trataram de afastar do seu patrimônio justamente seus princípios principais: há tantas variabilidades na maneira como um ser humano pode perceber o mundo que só nos resta a epoché, a suspensão do juízo que traria a paz de espírito para aquele que se sentia sequioso de saber.

O pior para a corrente ainda estaria por vir, contudo. Com o advento do teocentrismo da Idade Média, assumir que racionalmente não é possível se chegar a uma verdade colidia de frente com a ideia de um deus todo-poderoso que fornece dogmas com valor de verdade absoluta. Como não era muito saudável se contrapor ao pensamento oficial, os céticos se tornaram não só raros, mas até mesmo abafados.

Essa realidade seguiu até o período conhecido como Renascença. Com o ressurgir do Humanismo, os pensadores passaram a se sentir encorajados a refletir fora do eixo platônico-aristotélico, que foi mantido por todo esse tempo através da patrística agostiniana e pela escolástica tomista, respectivamente. Voltaram à cena as escolas éticas helenísticas, estoicismo e epicurismo à frente, mas também o desprendimento das certezas divinas permitiram o reflorescimento do ceticismo. É aqui que teremos como protagonista Michel de Montaigne.

A proposta deste filósofo francês era bastante semelhante à que eu tenho neste humilde espaço, sem nenhuma pretensão a comparação. Ele escrevia na forma de ensaios, um gênero literário que não se pretende desprendido da realidade, mas que não carrega todo o rigor filosófico e científico de um artigo, sendo mais um raciocínio inicial que estimule os leitores ao aprofundamento do que uma resposta sobre determinada questão. E a temática de Montaigne é exatamente a mesma que adoto: o quotidiano, as experiências do dia a dia com o que elas nos levam a pensar, por mais que derivassem de ações corriqueiras, triviais, comezinhas. Exatamente como quando se atribuem milagres a conclusões de projetos.

Isso não significa que destas impressões só brotem meras opiniões. Um ensaio produz aquilo que pode ser uma espécie de itinerário mental para uma obra mais aprofundada, mas que precisa ser registrada para render seus frutos. Aliás, a metáfora é excelente: só brota a semente que é plantada, e o ensaio é exatamente essa semente.

Mas a uma coisa esse estilo de escrita e de pensamento conduz: em Montaigne há mais perguntas do que respostas. E é aí que vem a retomada dos antigos céticos. A filosofia medieval, imediatamente anterior ao Renascimento do qual nosso caro francês faz parte, baseava-se quase por inteiro na pesquisa de Deus e sua interação com o homem e o universo. Mas o novo pensamento humanista devolve aquele espírito mais terreno e interpessoal, que se volta para questões sobre a ética e o conhecimento. E novamente não temos respostas unívocas. Montaigne faz sua pergunta fundamental: se o homem não se entende a si mesmo, como quererá interpretar coisas imensamente mais abstratas, como a natureza divina?

Os céticos do helenismo conduziam a questão de forma a suspender o juízo, e certamente o fariam na causa em tela. Nós já temos perturbações demais em nossa vida terrena. Aprofundar-se em temas insolúveis é só uma motivação a mais para insatisfazer o espírito, só que, neste caso, é evitável o espernear pela solução. Ocorre que Montaigne vai concordar com a impossibilidade do conhecimento, mas não com a epoché. Isso porque os céticos antigos viam o conhecimento das realidades universais, mas Montaigne enxerga a experiência particular como algo tão válido quanto. Quando se quer chegar à essência do humano, é àquela essência do pensador singular. Um homem tem para si a sua sabedoria e a observação da vivência de sua comunidade, e é sobre esses que poderá auferir o seu conhecimento. Como o próprio filósofo dizia, cada um é sábio para sua própria sabedoria.

Temos, portanto, que o sistema de ceticismo de Montaigne atinge as verdades universais, mas não no universo percebido individualmente. Claro que isso traz intercorrências. A pergunta que se dá, naquele momento de transição do medievo para a Idade Moderna, é como ficava a questão de Deus. Concordam comigo que nada mais universal e necessário que uma entidade de quem tudo parte e a quem tudo retorna? Se eu não me fio nem em conclusões terrenas, que fará com as coisas do mais alto misticismo? Montaigne seria, portanto, um agnóstico?

A resposta é: não. Montaigne reconhece os limites humanos para o conhecimento racional, mas entende que a percepção de deus vem de outra fonte: a fé. A primeira colocação é destronar o ser humano de sua própria arrogância. Quando se compara com um animal, o homem tende a se colocar em um lugar especial e privilegiado, por possuir as características de abstração e racionalidade. Todavia, é exatamente por raciocinar que o homem sofre. Um animal não teme, não se desespera, não se angustia, apenas vive e, em certa medida, é "feliz" por isso, já que sobrevive e, enquanto isso ocorrer, cumpre sua função no mundo. De nossa parte, sofremos com tudo isso, justamente por termos a capacidade da razão. “Porque pensa, o homem peca; porque pensa, o homem é indeciso; porque pensa, o homem se inquieta; porque pensa, o homem se desespera” é o leitmotiv desse raciocínio montaigneano. Desta forma, notem que há uma grande desconfiança com a razão, que por um lado é o grande distintivo da humanidade, e por outro é o principal motor da interpretação do universo, e por isso, a cada vez que colocamos a razão diante de um problema, acabaremos concluindo que sabemos muito pouco, e mesmo esse pouco com muitos limites.

Voltamos então à questão de deus. Para Montaigne, não se pode medir deus pela régua da razão. Tomás de Aquino já dizia que, onde uma causa defrontar razão e fé, esta última deverá prevalecer. Montaigne é mais radical nesse sentido, já que fé e razão não são relacionais entre si. Todas as vezes em que se tentar enxergar deus pela lupa da razão, encontrar-se-á a falha, porque deus conversa com os homens através de outra via, a via da fé. O nome dessa corrente é fideísmo, que pode ser definida pela separação entre a fé e a razão: podemos crer em coisas que não são redutíveis a raciocínios, porque o ser humano não se resume a pensamentos. Se o homem não tem a certeza dada pela racionalidade, ainda lhe resta olhar para a tradição e confiar naquilo que sua intuição diz.

E só então voltamos à inferência da coleguinha, que se coaduna tão bem com a epígrafe. Não há nada de errado em se crer em alguma coisa, seja lá qual for. É possível, inclusive, crer em alguma forma de transcendência que é independente de uma deidade, como já fazem os budistas da corrente theravada. Quando nos reconhecemos ateus, temos que ter em mente o mesmo cuidado ao se alinhar com uma posição política.  Existe uma tendência em se fechar um pacote pronto de ateísmo: a religião é um mal, religiosos são menos inteligentes, a razão é um primado indisputável, uma vergonha por um passado religioso, uma vida que se resume a si mesma e assim por diante. Nada disso.

A questão das crenças é personalíssima, e pode ser influenciada por tantos fatores que não dá para sintetizar nem em um tratado, quanto mais em poucas mal digitadas linhas, e apartá-la da racionalidade não é um erro de conceito. Talvez seja até mesmo uma tendência humana, como se fosse uma predisposição genética em se defender do desespero que Montaigne menciona. Eu hoje não vejo necessidade em crer, mas não consigo ter certeza disso. Talvez não haja um deus, mas outra coisa lá fora, mesmo uma vida após a morte, em um formato que não consigamos sequer imaginar, da mesma forma que não podemos cravar o que se passa em um buraco negro. Filosoficamente, é uma suposição tão honesta e válida quanto qualquer outra. Mesmo que eu não creia nela. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Montaigne escreveu sobre tudo, mas sua posição cética e seu confronto com o fideísmo pode ser bem compreendida pelo ensaio abaixo:

MONTAIGNE, Michel. Apologia de Raymond Sebond. In: Ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

E já que mencionei o filme, segue sua citação:

BARRETO, Bruno. O Casamento de Romeu e Julieta. Brasil: Disney Pictures, 2005. Cor. 93 min.

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