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segunda-feira, 23 de maio de 2022

O café filosófico do quotidiano – senso comum e japoneses que não são japoneses

(O senso comum opera em nossas vidas com uma constância inacreditável, mesmo no mais inocente dos cafezinhos)

Olá!

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Nos últimos tempos surgiu uma modinha no mundo dos cafés: a cafeteira vietnamita. Não é de se admirar que tenha surgido um método de extração próprio deste país. Ele desponta nos últimos tempos como um dos maiores produtores mundiais da rubiácea e, embora seu foco seja primordialmente a exportação, é óbvio que sempre sobra um tanto para abastecer o mercado interno. Procurei um bocado por algum nome técnico que o método possua, mas não achei nenhum. O admirável é o preço, muito barato. Gostamos de métodos e de preços; portanto, não achamos ruim comprar uma delas. Chegou em casa há uns dias atrás.


Ela tem uma cara de xícara que já evidencia sua simplicidade. Seu fundo é pleno de pequenos furinhos, por onde a água passa, e onde o pó fica ensanduichado entre a peneira e o disco da prensa. É bem chatinho de achar o ponto de moagem, porque se for muito grosso, a água passa de passagem, produzindo uma desanimada água de batata. Se for muito fino, por seu turno, o café fica com aquele aspecto de laminha, e não coa nunca, gelando a bebida. Portanto, é ponto médio na cabeça, sem perdão.

Acertando a espessura do pó, não haverá problemas. O fundo deve ser recoberto com um café de boa qualidade e compactado com o artefato perfurado próprio para tanto.


Daí para frente, é colocar a água e tampar. É importante que a temperatura esteja próxima do ponto de ebulição, porque o resultado final tende a ser mais frio que em outros métodos, mesmo com a moagem perfeita.


O equipamento encaixa perfeitamente naquelas xícaras esmaltadas, que recolhem com maestria os 150 ml que são produzidos a cada vez. Como sua limpeza é bastante simples, é ideal para fazer o ideal: uma dose por vez.



Nome do utensílio: cafeteira vietnamita

Tipo de técnica: percolação com filtragem por elemento metálico

Dificuldade: baixa

Espessura do pó: média

Dinâmica: deposita-se café moído em ponto médio no fundo do recipiente, de modo a preencher toda a cavidade perfurada. Prensa-se levemente o pó com um elemento de compactação, que deve ser mantido sobre o pó. Despeja-se a água até completo preenchimento do recipiente e tampa-se o mesmo até a completa filtragem.

Resíduos: quantidade razoável

Temperatura de saída: baixa

Nível de ritual: médio

Eu, como já disse, fiz umas pesquisas na internet para descobrir mais detalhes sobre essa simpática cafeteira. Eu achava que essa história de Vietnã era como o pão francês e o porquinho da índia, que de França e Índia só tem o nome. Mas não. De fato, é típico deste país da Indochina, onde o café é preparado para ser coado diretamente no leite condensado. Fica bem gostoso, reconheço, mas é preciso distinguir bem. Café como obra de arte é puro. As misturas são fenômenos de feira, como aqueles artistas que usam facas como malabares (puro exagero da minha parte, cada um toma seu café como bem entender).

E eu fico pensando naqueles japonesinhos que ficam apreciando seu café com leite, em seus quimonos e getas. Será que gostam de um peixinho para acompanhar? Ou um pão de farinha de arroz com feijão dentro?

Tudo errado. Vietnamitas comungam com os japoneses muito menos do que nosso vulgo pode supor, que fica mais nos olhos rasgados do que qualquer outra característica. Sua culinária é muito mais baseada na carne de porco do que nos peixes tão caros aos japoneses e, embora também os inclua, não podem ser colocados como ingrediente principal da cultura.

Mas o fato é que há algo que nos faz colocar várias coisas em uma mesma vala comum. Por mais que eu diga que vietnamitas não são japoneses, assim como chineses, coreanos, filipinos, indonésios e outras etnias, o fato é que chamamos todos eles de japoneses. Isso não está certo, mas não veio do nada. O Brasil é um país que tem uma de suas principais características em ser terra de imigrantes, que vieram praticamente do mundo inteiro. Em um dado momento, há mais de cem anos atrás, foi a vez dos colonos japoneses chegarem aqui, e irem direto para a lavoura. Em um tempo onde não havia tv, nem internet, sabia-se da sua existência por relatos, ou no máximo fotografias, o que não era a mesma coisa de se ver alguém oriental pessoalmente. Portanto, os primeiros japoneses, com seus olhos estreitos e cor amarelada, eram quase que uma atração turística para os curiosos. Em Terra Brasilis, eles foram por muuuuuuuuito tempo a principal massa imigratória de orientais. Hoje em dia, são pouquíssimos os japoneses que se mudam para o Brasil, sendo muito mais comum o movimento contrário, mas há vários chineses e coreanos ainda rumando para cá. Diante dos poucos elementos que temos para distingui-los, chamamo-los da etnia mais comum que conhecemos, o que não é um fenômeno restrito a eles. Aqui, qualquer loiro é alemão, qualquer narigudo é turco, como se não houvesse loiros/narigudos no restante do mundo. Isso para não falar dos nordestinos, que são baianos para qualquer circunstância, o que é um engano e tanto.

Mas por que agimos assim? O nome disso é senso comum, conceito importantíssimo quando queremos distinguir nosso pensamento do quotidiano daquele mais filosófico, centrado no raciocínio. Eu deveria ter abordado este tema há mais tempo, porque é um dos fundamentos mais basilares da Filosofia, mas há sempre um tempo para tudo, já dizia Qohelet.

É evidente que não ficamos exercitando nossa razão cem por cento do tempo. Isso equivaleria a estarmos sempre fazendo ginástica: não é nem ao menos saudável. Imagine que todas as vezes em que fôssemos cozinhar uma batata ficássemos nos questionando o que é o alimento, porque há resistências culturais em utilizá-lo de maneira distinta da convencional, porque damos tanta importância ao ato de manter a vida e assim por diante. Ou ficar questionando porque a batata, tão rica em carboidratos, e não uma cenoura, mais carregada de fibras, o que favorecerá o funcionamento do meu aparelho gastrointestinal. Eu simplesmente pego a panela, coloco a água que sei ser suficiente e deixo pelo tempo que faz a magia acontecer, e pronto. Eu SEI fazer batata, independentemente do quando me aprofunde em questões metafísicas e científicas. Os devaneios filosóficos e científicos são acontecimentos eventuais, como ocorre com essa série de cafés filosóficos. Eu não penso em filosofia todas as vezes que faço café, mas quando o faço (e for interessante) registro aqui para vocês. 

Mas vamos depurar um pouco. Senso comum é um termo duplo, e deve ser visto em cada uma de suas partes. Senso significa a capacidade humana de fazer juízos. Isso significa que somos capazes de nos defrontar com situações e articular mentalmente para chegar a conclusões, fazer escolhas, apreciar valores. Fazemos isso o tempo todo, a cada estímulo que recebemos.

Entretanto, o senso não é uma coisa única, que se pratica sempre da mesma forma. Ele tem um diferencial qualitativo que vai variar de acordo com o grau de automatismo que aplicamos a ele. E ele é comum quando é partilhado com aquela porção humana que depende menos de atitudes filosóficas ou científicas, que inclusive filósofos e cientistas têm.

O senso comum existe porque não são todas as apreciações que fazemos da realidade que precisam passar pelo crivo da criticidade. Ser crítico, aqui, não significa ser chato ou reclamão, mas colocar critérios para adotar uma posição como reflexo de verdade (ou aproximação a ela). Quando uma situação depende de ponderação, fazemos uma análise que a quebra em pedaços e tenta buscar um resultado mais definitivo para a questão que é levantada. Isso resulta em dispêndio de tempo e de energia, porque o juízo crítico frequentemente demanda conhecimento que não se tem, e que, por consequência, precisa ser buscado.

Nada disso é necessário no senso comum. Este é o tipo de conhecimento que criamos naturalmente para dar conta de demandas imediatas. Normalmente não se prende a metodologias, baseando-se mais em experiências próprias e nas observações de repetições.

Outra coisa a respeito do senso comum, que é o que melhor lhe caracteriza. Como os homens não são seres isolados, existe a necessidade de que construam laços sociais, que garantam um mínimo de convivência estruturada. Para isso, formam consensos coletivos que acabam por ser interiorizados pelos membros individuais daquela sociedade, na forma de conjuntos de valores. Essas convenções deliberadas vão habitar nas mentes do grupo como se ficassem lá gravadas, e vão pautar a reação das pessoas diante do giro das engrenagens sociais. É como se o convívio formasse um gabarito por onde todos os comportamentos individuais devessem passar, de modo a constituir uma certa padronização comunitária. Ocorre que o automatismo do senso comum possui balizas tão fortes que todos aqueles que saem do roteiro são prejulgados pela sua conformidade, o que leva a toda sorte de exclusão.

Vou dar um exemplo prático de como é possível diferenciar senso comum de senso crítico. Sabem aquelas famosas piadas que usam estereótipos? Tem as piadas de português, de loiras, de turcos, e todas elas funcionam através de um padrão comportamental atribuído a cada um dos protagonistas. Em qualquer boteco, aprendemos que portugueses e loiras são burros, que turcos e judeus são mãos de vaca e assim também com outros personagens. É possível discorrer mentalmente porque há a fundação desses estereótipos. Os portugueses, apesar de compartilhar um grande elemento de cultura conosco, que é a língua, não vivem a mesma realidade social, de modo ser estranho a eles certas condutas e fraseologia, tão típicas de cada lugar. Portanto, se você falar a um luso que está "matando cachorro a grito", ele não compreenderá que você passa por situação periclitante, pensando ser impossível que o pobre cão sucumba a garganta tão poderosa. O mesmo aconteceria entre panamenhos e argentinos, sul-africanos e australianos, tunisianos e haitianos e tantos outros povos cujo único ponto em comum é a língua. Com as loiras, a remissão é às meninas que abandonam a escola para seguir carreira de modelo, porque a aparência jovem é requisito imperioso pelo que busca o mercado publicitário. Por isso, diz-se que priorizam a beleza em detrimento da formação intelectual. Já o pessoal do Levante é de uma região milenarmente conhecida pela atividade comercial. Quem trabalha com negócios sabe muito bem que seu rendimento é feito a custas de seu próprio gerenciamento, o que os leva a serem duros nos valores praticados. Mais ainda: há meses em que as vendas vão bem, há meses em que não. Dependendo de si mesmos para sobreviver, é preciso resguardo com os abusos.

Todas essas deduções eu fiz sem consultar nenhuma fonte. Dei tratos à bola e tirei conclusões que podem ou não estar completamente corretas, mas não as fiz por ouvir falar. Usei meu senso crítico, mesmo não tendo à mão elementos mais consistentes. Por outro lado, o senso comum diz a mim que os defeitos encontrados nestas pessoas são inerentes a elas, e com isso me indica características e comportamentos que ele, o senso crítico, me impede de aceitar passivamente.

Mas o senso comum é pura tristeza? É sempre inválido, em qualquer circunstância? A resposta é não.

O senso comum se baseia em aparências, parte da apreensão imediata do mundo, não se preocupa com comparações de ideias, não é reflexivo consigo mesmo e fundeiam-se mais na individualidade do que no patrimônio intelectual coletivo, de modo a juntar um monte de evidências anedóticas para compor seu corpus. Como eu falei até agora, é um juízo não sistematizado e acrítico, mas isso não significa que seja incorreto. Um belo dia, algum índio percebeu que chupar maracujá fazia com que ele dormisse melhor. Talvez sua atitude tivesse algum grau de cientificidade, mas sua comunidade, a de seus descendentes e das demais populações que tiveram contato com esse saber não terão esse mesmo espírito. Apenas saberão que maracujá dá sono, e esse conhecimento é correto, passado a posteriori pelo filtro científico que descobriu a substância exata que causa esse efeito, a passiflorina.

Desta forma, podemos deduzir que o senso comum é um conjunto de conhecimentos acríticos da humanidade, absorvidos por terem utilidade prática. Até aqui, portanto, nada demais. O problema acontece quando a falta de critério se espalha para todo e qualquer fato colocado à nossa frente, mas aí o problema essencial não é do senso comum, e sim de quem o assume como verdade absoluta. Aqui, temos uma espécie de metassenso: é preciso ter ciência de que o senso comum precisa ser visto com o olhar do senso crítico, mas deve cumprir sua função, de ser uma primeira impressão sobre o mundo. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Filósofo e sociólogo argentino imperdível, de vida muito interessante e infelizmente desconhecido no Brasil, ajudou muito a elaborar este texto.

ANDER-EGG, Ezequiel. Introducción a las Técnicas de Investigación Social. Buenos Aires: Humanitas, 1978.

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