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segunda-feira, 16 de maio de 2022

Navegações de cabotagem – o Museu Egípcio de Curitiba e as fronteiras iniciais da Filosofia

(Sempre soubemos que a Filosofia ocidental se originou dos gregos. Mas será que não há princípios ainda mais antigos?)

Olá!

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Preparem-se porque vai ter muita coisa de Curitiba por aqui, assim como de Taubaté. Quem me segue há tempos, sabe que tenho dois filhos, e os dois saíram de São Paulo em busca de melhores oportunidades. A mais nova foi para o Vale do Paraíba, o mais velho para o Paraná. Por isso, fico trafegando para lá e para cá. E isso vai dar muitos textos.

Curitiba é uma cidade reconhecidamente funcional, e que possui muitos atrativos. Todas as vezes em que eu venho para cá, o moleque mais velho se encarrega de me mostrar um lugar novo, sendo que o da vez é o Museu Egípcio e Rosacruz, que fica no complexo pertencente à sociedade de mesmo nome.


Cumpre dar algumas palavras sobre a mantenedora deste espaço. A Rosacruz é uma daquelas sociedades sobre as quais se apontam olhares de mistério e lenda, grupamentos fechados cujos princípios somente seriam franqueados para iniciados, e cujos exemplos próximos seriam a Maçonaria e os quase fictícios Illuminati. Essa aura mistagógica surgiu porque suas reuniões se davam a portas fechadas e tratando de temas de fundo esotérico, coisa que, se por um lado não era bem vista pela cristandade oficial, por outro criava uma aura do desconhecido que é sedutora para muita gente. Formaram confrarias que fundiam o Hermetismo greco-egípcio com o Cristianismo.


Esta ordem está muito relacionada ao Corpus Hermeticum e outros textos atribuídos a Hermes Trismegisto, análogo ao deus egípcio Toth, a quem se confere a criação do alfabeto e o primado sobre a sabedoria. São obras que versam sobre uma visão holística do cosmos e que o colocam como permeado por uma divindade muito semelhante ao nous que é referido por Anaxágoras.

Isso explica duas coisas. A primeira é sua preferência por coisas do Egito antigo, local de onde se origina o pensamento que desembocará no Corpus.

A segunda é o aspecto de sociedade secreta da Rosacruz. Ela surge em um momento onde ainda era perigoso apresentar divergências com o cristianismo então reinante, e, por isso, não era saudável apresentar-se desabridamente como pertencente a campos de pensamento distintos.


Mesmo com origem incerta, os historiadores atribuem a fundação da ordem Rosacruz a Christian Rozenkreutz, que sistematizou alguns manifestos escritos por volta dos inícios do século XVII, e que acabou por emprestar seu nome ao grupo. Já a AMORC, que gere este espaço, foi fundada por Harvey Spencer Lewis e tem seus princípios gerais resumidos na frase abaixo:


O museu trabalha com aspectos históricos, artísticos e culturais advindos do Egito. Um dos itens de entrada é uma reprodução da célebre Pedra de Roseta, um fragmento de rocha que continha escrita hieroglífica. A grande sacada era que o mesmo texto estava também escrito em grego, uma língua conhecida. Sendo assim, foi possível, por comparação, deduzir os significados dos hieróglifos, o que pode ser aproveitado para muitos outros textos que permaneciam envoltos em mistério.


Este artefato foi descoberto nas invasões napoleônicas, que o fizeram chegar a Jean-François Champollion, o autor de sua tradução.


Há duas múmias lá dentro, não egípcias, e colocadas como exemplo do processo de mumificação. Respeitei o aviso de não as fotografar, limitando-me ao modelo situado do lado de fora da câmara onde estavam.


Além disso, inúmeros outros artigos de natureza egípcia estão espalhados pelas salas e nichos do museu, cada um com suas devidas descrições.


No pátio exterior, há o Complexo Luxor, onde fica a Alameda das Esfinges, reprodução do caminho que ligava os templos de Karnak e Luxor.


As esfinges eram seres míticos que combinavam seres humanos e leões, e simbolizavam a proteção inteligente, e por isso era comum vê-las ladeando os templos.


O Pátio do Obelisco contém uma homenagem ao faraó Tothmés III. Estes monumentos eram representações da eterna permanência. O fato de serem encimados por piramidhiuns que apontam para o sol fazia com que sempre resplandecessem durante o dia, reforçando a representação que pretendiam.


O Atrium Romano contém uma estátua do imperador Augusto César, que iniciou a Pax Romana, período em que o Império Romano, apesar do domínio político, procurou manter a cultura e a identidade dos povos conquistados, de forma a ser obtido um intercâmbio cultural sem precedentes na história.


Por fim, o Memorial Rosacruz é uma réplica do existente na Califórnia, e contém inúmeros elementos da cultura egípcia antiga. Em seu interior, há espaços meditativos e uma maquete de todo o complexo.


Fiquei devendo o Museu Tutankhamon, parte do complexo, dado o tempo que fiquei nos dois equipamentos mencionados, mas não faltarão oportunidades. Quando nos deparamos com uma cultura tão avançada e ainda mais antiga que a grega, perguntamo-nos porque os inícios da Filosofia Ocidental estão no Peloponeso, e não no norte da África. Mais ainda: há os povos orientais, tão antigos quanto, e que também possuem um conjunto intelectivo tão sofisticado quanto o grego. Desta forma, precisamos entender os critérios que os historiadores da Filosofia adotam para classificarem sua origem, e concordar com eles ou não. Vamos lá.

Quando observamos o surgimento do pensamento filosófico entre os antigos gregos, nós vamos perceber que o principal ponto estava em trazer uma nova tradução do cosmos. Por que nova? Porque já tínhamos uma interpretação, que vinha da mitologia. As religiões, tanto a pública quanto a mistagógica, faziam uma leitura dos fenômenos que, embora carregasse sentido, baseava-se muito no misticismo, onde uma grande parte era uma "explicação inexplicada". O que quero dizer com isso? Quando eu antropomorfizo um fenômeno natural, atribuindo-o a um deus, como os raios de Zeus, os oceanos de Netuno ou a sexualidade de Afrodite, estou dando uma explicação do porquê eles ocorrem no cosmos e na humanidade. Entretanto, toda a explicação dos originadores destes fenômenos está no campo poético da livre criação humana. Suas gêneses são histórias contadas entre as gerações, sem que possuam lastro no universo observável. Acreditar nessas histórias é matéria de fé, porque não conseguimos observá-las, nem as reproduzir.

Os primeiros filósofos não puseram o pensamento mítico simplesmente de lado, mas iniciaram nele uma transmutação progressiva. Não bastava unicamente as histórias contadas pelos antepassados, mas aquelas que estivessem vinculadas a uma amarração lógica. E nesse caso eles começaram pelo começo: se a explicação mítica é insuficiente para deslindar o princípio de tudo, onde poderemos buscar alternativas? Ora, no mesmo lugar onde está depositada a nossa capacidade de desconfiar das narrativas tradicionais: na razão e em sua ferramenta, a lógica. A água de Tales, que inaugurou esse modelo de pensamento filosófico, não é um mero chute. Ele a indicou porque fez observações e delas tirou deduções que fazem sentido. Se ainda atribuiu aos deuses seu surgimento e funcionamento, é porque nos encontrávamos em uma fase de transição, porque nada se modifica por decreto.

Seus sucedâneos aperfeiçoaram o pensamento, questionando a própria origem da água e propondo outros paradigmas de arché, mas sempre mantendo a nova característica: todo discurso tem agora a necessidade de um encadeamento de raciocínios. Se incluiremos divindades, elas deverão fazer parte da lógica, e não se enfiarem na conversa de modo ad hoc.

Percebam que, por trás das articulações lógicas e da observação do cosmos, há um substrato para a formação de teorias. Fazemos um uso coloquial desse termo confundindo-o com hipóteses, mas ele significa, literalmente, a explicação de um fenômeno concreto. As teorias que estes filósofos propunham vão no sentido de se formar a Ciência, em um tempo onde havia muito pouco instrumental além do cérebro para diferenciá-la da Filosofia. Filosofia e Ciência eram praticamente sinônimos, e a filosofia grega dos primeiros tempos tinha essa magnífica característica: ela já apontava para a Ciência.

Bom… e o que temos do pensamento oriental e norte-africano? Vai no mesmo sentido? Já aqui precisamos balizar que não temos a menor pretensão de classificar validades e hierarquizar importâncias dentre os diferentes paradigmas. Pensando nos povos orientais, não nos referimos a chineses, muito longínquos ainda, ou a japoneses e coreanos, de onde emanaram filosofias ricas, mas com as quais os gregos ainda não haviam estabelecido contato. Pensamos em babilônios, caldeus, hebreus, persas e, mais remotamente, hindus e bengalis. O corpo de sabedoria oriundo desses povos continha o mesmo alicerce sobre o qual os gregos iniciaram sua aventura intelectual: a mitologia religiosa. Entretanto, a guinada grega, como se pode perceber, deixou de levar em consideração um plano puramente espiritual, talvez pelo fato de que a cultura helênica não estivesse tão fortemente influenciada pela religião, ao contrário do que ocorria com as culturas orientais. Enquanto o grego tinha a religião como uma prática secundária, onde os principais encargos eram deixados nas mãos dos sacerdotes, esses outros povos não podiam, como faziam os gregos, relativizar as funções de suas divindades. Uma comparação meio besta: o grego era como os católicos de estatística, enquanto o oriental era como os crentes. Quem tem sua vida mais preenchida pela religião, tem mais dificuldade em escapar de seus ditames. Por isso, vemos uma imensa maioria de católicos que não estão em plena conformidade com o que determinam seus mandatários: camisinha, anticoncepcionais, carnaval e tantos outros. Já o evangélico é mais radical, e é difícil que fuja das predisposições de seus pastores, sob pena da punição eterna. O raciocínio entre as etnias helênicas e orientais é mais ou menos a mesma. Os gregos confortavelmente colocariam de lado Zeus em detrimento de uma boa explicação observável para os trovões, enquanto os hebreus jamais excluiriam Javé de qualquer fenômeno que ocorresse no mundo. Com isso, a filosofia oriental estava muito permeada da religiosidade para que fosse possível afastar a explicação mítica de seus mecanismos, e isso a afasta do paradigma aproximativo da Ciência e do uso puro e simples da razão.

Por outro lado, podemos perguntar sobre qual seria o objetivo grego com a Filosofia. É bem verdade que já mencionei o direcionamento rumo à Ciência que foi dado pelo conhecimento dos primeiros filósofos, mas o que se pretendia com isso? A princípio, o conhecimento por si só, o conhecimento pelo conhecimento. Sabe aquelas fofocas de rua, onde dona Corina quer saber porque a filha de dona Xepa anda chegando todo dia tarde em casa? Nada vai mudar nem na enjoativa vida de dona Corina, nem na desditosa vida de dona Xepa, nem na danada vida de sua filha, mas a gana de saber é quase irresistível. O mesmo acontece para objetivos mais elevados do que a mera futricação, com o ponto em comum de que não se busca uma utilidade que vá mudar o preço do dólar, mas um alimento intelectual, um saber por saber, que abra as portas de cognições cada vez mais aprofundadas.

É bem verdade que os egípcios constituíam um povo com uma elite intelectual muito bem desenvolvida para a época, exemplificados pelo Mouseion de Alexandria e sua célebre biblioteca, que eram mais do que depósitos de papiros, mas locais de intensa atividade intelectual e didática, sede de debates e de produção de conhecimento. Mas o conhecimento egípcio tinha uma especificidade em relação ao grego. Aqui, o teor prático do saber estava muito mais em evidência do que junto aos helenos.

Os egípcios e outros povos africanos tinham um conhecimento matemático notável. Desenvolveram noções de cálculo extremamente precisas, que usavam largamente em suas celebérrimas obras de engenharia, como as pirâmides, as esfinges e represas aproveitando a água do rio Nilo. Todo esse conhecimento, ao contrário do que ocorria com a vertente grega, tinha propósitos eminentemente práticos, que, se por um lado ajudavam a desvendar os fundamentos do cosmos, por outro dava menos importância àquilo que pode ser chamado essencialmente de filosófico. Eles priorização os "comos", e não os “porquês". Poderíamos dizer que os egípcios tinham bases ainda mais científicas que os gregos, mas sem subir aquele degrau do conhecimento pelo conhecimento, aquela coisa de ter todas as cadeias de causas e efeitos à sua frente. Os gregos chegam ao esplendor da matematização filosófica com a escola pitagórica, onde todo o funcionamento universal pode ser reduzidos a números, uma proposta à qual os egípcios não se interessaram a chegar.

Desta forma, podemos chegar a uma estrutura do pensamento grego que o diferencia das demais correntes cognitivas contemporâneas. Enquanto aos orientais a explicação mítico-religiosa era suficiente e até mesmo necessária para que se possa compreender o universo, e aos egípcios e outros povos africanos o objetivo prático era autossuficiente e bastante para justificar a atividade intelectual, para o grego era preciso ter o todo: a origem, o desenrolar e a conclusão.

Daí para frente, minhas caras pessoas, é definir o que é Filosofia e verificar se toda a discussão acima tem cabimento ou não. Pode ser que, ainda assim, possa-se debater se os outros elementos intelectuais sejam imprescindíveis para a formação do pensamento grego e ainda mais originais que eles, mas a formatação da Filosofia como vemos ainda hoje no ocidente segue o esqueleto inaugurado no momento em que se decidiu entender não só o que eram as coisas, mas o que estava por trás das coisas, com a mesma razão que usamos para medir nossos campos e situar nossas colheitas. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Mencionei o Corpus Hermeticum, então vou recomendá-lo. Eu utilizei um áudio livro, para aproveitar em momentos de trabalhos manuais, mas o ideal é sempre ter uma versão escrita. Como é difícil conseguir uma versão comentada imparcial, o ideal é pegar o texto seco e um livro de história. Localizei a edição abaixo, que me parece bastante boa.

Trismegisto, Hermes (atrib.). Corpus hermeticum. São Paulo: Polar, s.d.

O Museu Egípcio e o Complexo Luxor, embora não sejam daqueles mais mencionados quando se pensa em Curitiba, são de visita essencial. Segue seu endereço.

Museu Egípcio e Rosacruz

Rua Nicarágua, 2641 - Bacacheri

Curitiba/PR

Aproximadamente 400 km a partir do centro de São Paulo

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