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terça-feira, 3 de maio de 2022

Sobre vestimentas e a autenticidade do eu

(Quanto que uma roupa diz sobre o que nós somos? Seria uma mera questão de moda ou um conflito da verdadeira identidade?)

Olá!

A pandemia ainda não acabou, e demanda cuidados, mas é fato que as coisas vão lentamente voltando ao seu eixo, muito por conta da eficiência das vacinas, aquelas que foram tão combatidas por certas trupes de malucos. Esse tão propalado "novo normal" carrega consigo uma boa parte de sustos e traumas. Como exemplo, cito as várias pessoas que trabalham comigo e persistem no uso da máscara (eu incluso), embora não seja mais obrigatória.

Para além disso, há novos costumes de natureza ainda mais pessoal. No meu caso específico, adotei uma política diferente de indumentária. Antes, recobria-me de infernais ternos e gravatas, mesmo para dias senegaleses. Agora, só o faço de acordo com a pauta: tem reunião com graúdo, tem paletó; do contrário, há camisetas e o bom e velho brim. Ah, mas tem reunião de emergência… emergências não são para desfiles de moda, e vamos com o que temos. Até agora, a chefia não reclamou, então vamos mantendo o hábito até a censura.

Para desgosto da minha defunta mãe, eu nunca primei pela elegância, mas pelo conforto. A coisa piorou significativamente quando passei a ostentar abdômen proeminente, que deixam a roupa com a alegre, porém desengonçada aparência de dono de circo. Embora tenha estudado Filosofia, trabalho com informática, que, infelizmente, paga melhor. E isso me coloca em uma condição estranha. Embora haja certa flexibilidade no vestuário dos desenvolvedores em geral, na área de requisitos temos inumeráveis reuniões, o que nos coloca com o duvidoso título de "representantes da instituição". E aí pega mal estar fora do padrão bem aceito, como se um pano amarrado no pescoço certificasse virtudes em seu portador.


Mas o que a maneira com a qual me visto diz de mim?

Pode-se dizer que é bem pouca coisa, mas há um conjunto de olhos sociais que buscam desesperadamente alguns tipos, digamos, de selo de certificação de que aquela pessoa assim vestida tem algum grau de fiabilidade, de conhecimento, de habilidade, de recursos ou de seja lá o que for. A roupa não diz o que temos por dentro, mas, para quem é de fora, interessa o que é de fora. No caso, exatamente a roupa, o tal selo. Pode parecer maluquice? Pode, mas é assim que se bate o tambor e não tenho muito o que fazer.

Há outros componentes que montam nosso visual. Meu perfil geral é o seguinte: cabelos amarrados em rabo de cavalo, barba sem bigode, roupas preferencialmente folgadas e tênis. Tem gente com cabelo pintado, cabelo raspado, cabelo moicano, cabelo branco e assim por diante, cada um moldando sua moldura de acordo com a dicotomia vontade-possibilidade. Dão a isso o nome de estilo, e, embora cada um diga que tem o seu, a verdade é que o nosso velho ambiente desenha tudo. Se eu fosse ter meu verdadeiro estilo, andaria pelado como um índio. Mas não se preocupem: sou obediente à lei e às normas, e somente serei o mais legítimo possível no seio de meu lar, prometo.

Mas essa questão de estilo. Dizem que a maneira como nos expomos fala muito sobre nós, mas o fato é que diz sobre como queremos ser vistos, e não como somos de verdade. Isso é mais perceptível quando vemos como os tais estilos são massificados, a tal da moda (para ler um pouco sobre isso, tenho estes textos – aqui e aqui). Evidentemente, não existem tantas pessoas iguais, como não existem ambientes iguais, mas temos uma tendência à uniformização, isso não chega a ser surpreendente. Percebam como as casas também são frutos de modas: temos sua aparência pública, e embora possam trazer algum tipo de ideia de época ou do tal do estilo, nada dizem do que ela é por dentro - uma casa rota pode ocultar uma vida harmoniosa, enquanto em casas eruditas podemos ter violência de todo tipo. O mesmo se passa com corpos. A aparência exterior diz pouco, diz aquilo que queremos transmitir, e a paz dos tons azuis pode esconder intensos conflitos. Mas o fato é esse: variamos de aspecto por conveniências, e não por dar reflexo ao que se passa por dentro de nós. Porque quando tentamos fazê-lo, a chance de dar errado é grande.

Eu já falei sobre os motivos pelos quais entendo que as pessoas têm multiplicidade de apresentações e até justifico isso, em um dos textos que entendo ser um dos melhores deste espaço. Mas quero aqui abordar a temática por outro ângulo, desta vez mais psicológico. Isso porque, embora sejamos um e muitos ao mesmo tempo, há aqueles que mais bem se adequam à nossa realidade mental, e outros que parecem ir ao exato contraponto. É algo como alguém que suporta engolir uma amarga cerveja que detesta para ter aceitação de um grupo que aprecia, adorador dessa mesma cerveja. Vou falar em primeira pessoa, mas usando profusamente Kierkegaard na análise.

Embora sejamos menos do que uma minúscula partícula de areia em um imenso universo, quando olhamos para nosso particular percebemos que, no final das contas, somos, para nós mesmos, mais importantes do que todo o restante deste mesmo universo. Pode parecer se tratar de ato de magno egoísmo, mas não é isso. Basta que pensemos o seguinte para compreender: o que seria do universo sem mentes que o absorvam? Ele poderia continuar a existir, mas a poeira e os gases que estão por toda parte não têm em si uma compreensão de sua existência. Ou seja, dar importância a alguma coisa é uma prerrogativa de seres viventes, o que, pelo que sabemos até agora, limita-se ao planetinha azul, essa esferinha cada vez mais judiada. E quem, dentre todos estes, é aquele que percebe o mundo e sabe que percebe? O ser humano. Essa percepção, ainda que possamos pensar em uma espécie de ação coletiva, é feita individualmente. Quem ganha o jogo é o time, é bem verdade, mas o goleiro que defende é um indivíduo, o zagueiro que entra no meio da canela é um indivíduo, o centroavante que goleia é um indivíduo. Nesse escrete chamado de humanidade, a história é escrita por todos, mas vivida individualmente. Cada um de nós adquire o universo para si através dos sentidos, de maneira única e irrepetível. Por essa razão, o indivíduo é, para si mesmo, o centro do universo.

Aí então eu pergunto: o que vale mais para uma pessoa? Seriam os sistemas que explicam no atacado e no varejo as verdades tidas como universais e necessárias, válidas a todo lugar e a todo momento, ou seria a busca individual, que reflita uma realidade que esteja em consonância com o que ela é? Sendo assim, é no detalhe que residem as questões mais importantes para cada um de nós - quem sou, por que sou como sou e quais são os fatores que me afastam de meu verdadeiro eu, a minha essência.

Mas, para além da consciência que temos do universo e de certas noções próprias, como a finitude e a intencionalidade, o que nos caracteriza como humanos? Qualquer que seja a essência de cada um, ela precisa ser materializada de alguma forma. Mesmo que consideremos que há almas, e que elas sejam igualmente intrínsecas ao homem como é o corpo, elas nada seriam sem estar concretas no mundo. Ou seja, nós existimos. E nessa existência está nossa materialidade, a realização de nossa essência, tida aqui como nosso modo autêntico de ser.

Nós existimos não porque respiramos ou enxergamos, mas porque exercemos arbítrios. Em outras palavras, nós fazemos escolhas. O fato de que eu esteja digitando este texto nesse exato momento é um critério meu: eu poderia estar cochilando, escutando a fofoca alheia, especulando sobre a rodada do Brasileirão ou fumando maconha um charuto, e cada uma dessas seria uma escolha, mas eu, dentro das possibilidades, optei por escrever. Se o fiz com liberdade, é uma manifestação da minha essência.

Ocorre que, se eu estou escrevendo, não posso estar cochilando, nem escutando fofoca alheia, nem nada mais. Por isso, a minha escolha implica na renúncia de todas as demais possibilidades. Existe na economia um termo chamado de custo de oportunidade, que é representado por todas as oportunidades que deixei de lado para investir na área de negócio que escolhi, e que representará um encargo eterno na minha mente: não teria sido melhor investir em ações do que ter aberto uma tabacaria? Há uma característica na escolha ampla – ela impossibilita paralelos. Eu não consigo ser careca e cabeludo ao mesmo tempo... que exemplo bobo... Vamos melhorar. Ao optar por não ter filhos, eu trago comigo tudo o que isso representa. Serei livre dos encargos da criação, terei mais dinheiro, minha responsabilidade se limitará a mim e poderei fazer coisas que um pai não faz. Por outro lado, todo o lado positivo de ser pai fará parte da escolha tida na forma de renúncia: a um descendente, a um sucessor, a alguém que cuide de mim na velhice, a alguém que possa receber minhas histórias, etc. Essas questões não são nada óbvias e viram um peso, especialmente nos momentos em que sentimos o barco adernar.

A liberdade de escolher entre a infinidade de possibilidades é uma geradora inesgotável de angústia. E é principalmente dolorosa para quando pensamos em retransformar quem somos para algo diferente. Parece coisa frívola, e pode ser mesmo, mas há duas implicâncias possíveis, tanto no sucesso quanto no fracasso. Pode ser que queiramos virar monstrões, com músculos capazes de esmagar pulgas. Faríamos isso para atender uma necessidade de destaque visual, sob a desculpa de estarmos cuidando da saúde. Se der certo, o cara gordinho, meio suarento e disponível a qualquer instante dará lugar ao marombado que será temido por homens e admirado por mulheres, que, entretanto, não será mais o cidadão boa praça de antes, sempre presente nas rodas de amigos. O novo eu pode se ressentir de tudo o que o antigo perdeu, mas a escolha já se deu e carrega todo o peso das perdas. Se fracassar, contudo, vem o desespero. Esse desespero não está no simples fato de que o gordinho continua ostentando a pança, mas porque ele quis se afastar de si mesmo e não conseguiu. O indivíduo já não suporta a si mesmo, mas não consegue deixar de sê-lo.   

É um beco sem saída, uma aporia? Sem dúvida. Vivemos em confronto com nossa realidade dupla - nosso temporal e nosso eterno, nossa liberdade e nossa necessidade. A cada instante o homem precisa decidir e exercer sua síntese - uma pessoa é um ser sintético. Somos livres para escolher, mas sempre dentro de um leque de possibilidades. Isso indica que a liberdade não é absoluta: temos o arbítrio, mas ele não pode nos levar a qualquer lugar. Menos do que impossibilidades óbvias, como voar ou viver sem ar, a angústia está na imprevisibilidade da possibilidade. Talvez eu resolvesse tingir meus poucos cabelos de rosa, para criar uma imagem de ousadia, mas o efeito seria de tolice. Mas a coisa ainda não seria grave, ainda. Bastaria raspar os cabelos. A questão vai muito mais para o quando temos de corda para nos afastar da âncora que nos prende à nossa própria personalidade. Renegá-la significa expressar uma insatisfação consigo mesmo, mas nós somos o que somos - sou destro e não adianta tentar ser canhoto, sou baixo e não adianta tentar ser alto, tudo o que terei são garranchos ou calos nos pés.

Quantas vezes não nos vemos desesperados? Não o desespero fático de nos vermos ameaçados pela morte, mas por nos vermos desiludidos, especialmente nos momentos em que algo dá errado com nossas escolhas? Ainda que não esteja em sua consciência, o homem luta em desespero para ser a si mesmo, porque toda construção que ele faça para si é um afastamento de si, da sua própria essência. Isso é contínuo e este presente todos os dias de nossa vida. É uma doença da própria vida.

A solução kierkegaardiana é uma aproximação com Deus - ele é cristão. Esse empuxo do espírito vai sempre em direção aos céus, pensa ele, e a angústia é uma decorrência do medo da morte, de quem o cristão, com sua expectativa pela vida eterna, está livre. Nietzsche, por outro lado, diria que a solução para a angústia está em beber a vida de um gole só, ainda que o gole lhe custe a vida*. Ou seja, as contingências da vida carregam a angústia no conjunto, e o negócio não é se paralisar, mas soltar-se na torrente do destino. Na minha humilde, talvez devamos ter um meio termo. Ser cristão e imaginar que a cura do desespero está na religião leva a uma ilusão, porque ninguém consegue assegurar qual seria o caminho certo para chegar a Deus (vejam o número infindável de correntes dentro do Cristianismo) e é mais um elemento de angústia, afinal pecados são julgados e nem sempre conseguimos mensurar o tamanho da gravidade de nossos atos. Por outro lado, o largar-se de Nietzsche é meio radical demais, e podemos quebrar a cara na primeira esquina. Sendo assim, um pouco de prudência, mesmo a nível psicológico, não faz mal, como o caldo de galinha dado ao doente, que não cura, mas alimenta. Isso serve para tudo, inclusive para roupas. Ternos são detestáveis e inexplicáveis, mas ir de sunga para o trabalho não diz quem eu sou, a não ser que limites não são uma noção muito clara para mim.

Portanto, a maneira com a qual me visto diz que sou um ser que experimenta possibilidades, que exerce escolhas, um eu-público que tenta demonstrar uma faceta que tem mais a ver com meu desejo do que com meu eu autêntico, porque muitas vezes estamos apenas forçando uma barra para ser o que não somos. Se conseguimos, maravilha, não importa se causa escândalo ou ironia; se não, estamos apenas continuando a ser humanos. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como em toda sua obra, Kierkegaard é um bocado difícil de ler, mas sempre precisamos tentar. Segue a indicação.

KIERKEGAARD, Søren. O Desespero Humano. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

*Na bela figura do trecho de Snegs de Biufrais, música da banda Som Nosso de Cada Dia.

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