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segunda-feira, 18 de abril de 2022

As sementes de todas as coisas e as tintas que as inspiram - uma viagem pelo mundo de Anaxágoras

(A procura pelo elemento primordial que constitui todas as coisas foi o primeiro motivador do pensamento filosófico. Hoje vamos falar sobre um dos mais originais)

Olá!

Estou em Curitiba mais uma vez. Não a passeio, nem a visita, mas a trabalho. E um trabalho pouco convencional, ao menos para um escriba informata, como é meu caso. Estou fazendo as vezes de pintor, carregador, faxineiro e até içador de móveis, dado que camas-boxes tem pouca flexibilidade e dimensões pouco amigáveis com escadas estreitas. Sim, estou fazendo uma mudança, mas não é para mim; também não é serviço pago, é para o meu filho mais velho, que está saindo de um apartamento para uma casa, uma velha intenção que o garoto nutria, saudoso dos tempos de criança no célebre Jardim Elba, no arrabalde paulistano. Eu não sei recusar as coisas quando estão ao meu alcance, então enforquei dois dias para ajudá-lo a cumprir as cláusulas contratuais: paredes pintadas, chão limpo, essas coisas necessárias à entrega do imóvel. No final das contas, entregamos o apartamento melhor do que foi pego. Isso porque certos escorridos e determinadas manchas que foram consignados ao filho-inquilino foram devidamente corrigidos nessa nova versão que repassamos à imobiliária. São coisas da herança materna: minha mãe reviraria na cova caso visse um serviço porco. Em tempo: ela tinha baixíssima tolerância a imperfeições, e parecia falar no meu ouvido a cada risquinho que eu deixava passar batido.


Mesmo com a dedicação empregada, a incorruptível iniciativa privada ainda achou defeitos imperceptíveis, como manchas de rolo invisíveis a olho nu, com a oferta de serviços parceiros a baixo custo. Sorte ser o primogênito formado em Direito, e imobiliárias não gostam de tirar farinha com advogados.

No final das contas, ficou o dito pelo não dito. Foi uma trabalheira imensa, incluindo tudo aquilo que consta do checklist de uma entrega: pintar paredes, teto, portas e detalhes, inúmeros detalhes. Fiquei longas horas sentado de indiozinho, cuidando da junção dos rodapés, ou de ponta-cabeça fazendo sancas e luminárias, tudo com pinceizinhos de ponta finíssima, lutando contra minha falta de coordenação motora, enquanto a patroa mandava brasa nas partes grandes. Nos momentos em que ficava sozinho, sem plano de dados nem wi-fi disponível, restava a mim filosofar, observando como dos grandes rolos de lã às pequenas cerdas de cerdas eu espalhava a mesma substância, em menor ou maior quantidade, conforme a conveniência da tarefa. E lá vou eu para a Grécia antiga. 

Conforme eu já falei um monte de vezes neste espaço, os filósofos pré-socráticos se dividiam essencialmente em duas correntes: os discípulos de Heráclito, que viam no dinamismo das transformações a própria essência das coisas, um eterno devir que faz passar de um estado para o seu contrário; e os eleatas, seguidores de Parmênides, que viam o universo como um todo imutável, cujas transformações são meras ilusões das opiniões e desvios dos sentidos. 

As teses de Heráclito tinham a seu favor a intuição, já que, de fato, vemos o mundo em impermanência. “Não se toma banho duas vezes no mesmo rio”, dizia o sábio que entendia ser tanto o homem quanto o rio seres em constante transformação, e é isso que o universo tem de permanente: a mudança. A favor de Parmênides, pesa o olhar profundo da ontologia, que vê o Ser para além dos sentidos e da apreensão imediata. Era uma tese com uma lógica tão bem construída que foi a partir dela que começaram a brotar as regras fundamentais do pensamento bem construído, especialmente o princípio da não-contradição (para saber mais, leiam este texto). Mas tudo o que havia de intuitivo em Heráclito ia ao seu oposto em Parmênides. Imutabilidade e imobilismo, as principais característica do Ser, contrapunham completamente a nossa apreensão direta da realidade. Era muito difícil explicar a fixidez para olhos que só viam a alternância de estados universais: dia e noite, calor e frio, vida e morte. Era como o antagonismo entre as teses acadêmicas e o senso comum, onde somente um pequeno grupo de iniciados se põe em confronto com a percepção popular - embora o pensamento de Heráclito em nada estava no âmbito do acriticismo. Por isso, era essencial obter explicações para as mudanças e o devir.

Aliado a tudo isso, havia uma questão ainda mais antiga: a arché. Essa ideia, que já mencionei muitas vezes por aqui e já fiz uma espécie de texto consolidado, foi a primeira temática verdadeiramente filosófica, e buscava saber o que está no substrato da realidade sem o auxílio de divindades e atividades demiúrgicas. Os filósofos posteriores a Parmênides e Heráclito começaram a vincular este elemento primordial com a questão do Ser, buscando elucidar ambas as problemáticas de um só turno.

Várias foram as tentativas, cada uma mais engenhosa do que a outra. Uma das que mais fez sucesso foi a de Empédocles de Agrigento, a quem apresentei aqui. Em apertadíssima síntese, sua tese falava das rizomatas, as raízes compostas pelos quatro elementos, que, misturados nas devidas proporções, davam origem a todas as coisas.

Embora possuísse sua lógica, o pensamento de Empédocles não alcançou unanimidade, como se pode supor. Um dos que achava essa explicação insuficiente era Anaxágoras de Clazômenas, cidade grega que hoje pertence à Turquia, cuja principal crítica estava na ampla variedade de elementos existentes no universo, que dificultavam a visão de que somente a mistura de terra, fogo, água e ar eram o bastante para constituir todo e qualquer elemento. Para ele, deveria existir uma substância que antecede os quatro elementos e os compõe. Já vamos chegar nisso.

Mesmo que com contraposições, o princípio geral estava dado. Se não era na visão macro que conseguiríamos perceber a imutabilidade das essências, de algum outro modo seria possível explicar a aparente transitoriedade e a permanência eterna do Ser. As tentativas mais simples, como a água de Tales ou o ar de Anaxímenes eram ainda mais difíceis de aceitar que a rizomata de Empédocles. A antiga visão do ápeiron de Anaximandro era insuficiente, porque o todo imaginado, sempre preenchido pela substância etérea, não dava espaço para o não-Ser. Anaxágoras pensa então na redução da possibilidade do Ser a tamanhos infinitesimais. A coisa tem mais ou menos o seguinte sentido: nascer e morrer são ilusórios, já que ambos pressupõem que algo exista a partir do nada ou que deixe de existir - o não-Ser, o que é impossível. Estes termos devem, em um sentido mais estrito, ser substituídos por “compor” e “decompor”, na medida em que o agrupar e desagrupar não representam o surgimento e a extinção de uma determinada existência, mas um mero rearranjo de algo que já existe.

E o que seria essa coisa que já existe?

Segundo Anaxágoras, os elementos constituintes da realidade podem ser reduzidos a tamanhos minúsculos, porque esse formato explica tanto o universo em seu menor tamanho imaginável, quanto em seu tamanho macro, pela agregação das pequenas partículas. Esses componentes mínimos de todas as coisas tem o nome de spermata, que podemos traduzir como “sementes”.

E como seriam essas sementes? Bem, vamos com calma nessa hora. Anaxágoras utiliza esse nome por uma alegoria ao se observar como funciona a semeadura em um campo. A cada pequenina semente que for, brotará uma planta completa, que poderá ser um pequeno musgo ou um gigantesco baobá. Nesta semente está contida toda a informação necessária para o desenvolvimento da planta, e daí vemos neste campo como cada semente específica desenvolve uma planta igualmente específica, sem que cada uma vá para um canto. Assim é com o fogo, cuja labareda é composta por inúmeras sementes de fogo, ou com a terra, ou com qualquer elemento. Ou seja, cada substância existente no universo deriva de uma semente específica, que lhe caracteriza e já carrega consigo não somente seu estado atual, mas o todo que virá a constituir. Não se trata de misturas de elementos agregados através de uma espécie de "sentimento", como diria Empédocles, mas por qualidades infinitas de sementes: para cada substância localizada no cosmos, há uma semente determinada que a compõe. Por mais que o mundo seja grande e a diversidade de elementos seria finita, o fato é que todo o cosmos, na visão de Anaxágoras, é infinito. Sendo assim, as sementes como originadoras de substâncias também são infinitas. A mesma coisa se aplica à quantidade de sementes. Não basta que suas qualidades sejam infinitas, é preciso que infinita também seja sua quantidade, partindo da premissa fundamental de que o universo todo é composto por elas.

A spermata de Anaxágoras ajusta-se bem ao eleatismo porque ele aposta em outra categoria que lhe seria particular. As sementes não são apenas infinitas e eternas, mas também são imutáveis. Se é fato que o mundo se notabiliza pela imobilidade travestida de devir pelas ilusões dos sentidos e pela ignorância de como tudo funciona, só há sentido nas sementes se elas forem eternamente iguais.

Mas como isso seria possível se basta que cortemos uma árvore para que ela passe a ser um sarrafo de madeira? Aqui nós vamos ver como Anaxágoras prefigurou a moderna biologia. Ele entende que a divisão quantitativa de qualquer substância não lhe tira a identidade qualitativa. Ou seja, por menor que seja o pedaço da árvore, ele conterá em si a árvore inteira. Essa assertiva pode parecer estranha, mas as atuais descobertas no ramo da genética demonstram que muito do que está em nosso organismo como um todo fica descrito em cada uma das partes. Ou seja, Anaxágoras dizia que tudo o que existe é constituído por partes qualitativamente iguais, o que mais tarde foi nominado como homeomeria.

A grande sacada da homeomeria está no seguinte fato, novamente exemplificando com a vida real: todo o capim que está em um pasto nasceu de um tipo específico de spermata. Esse capim serve para que os bois e as vacas se alimentem, e é dele que se constituem seus corpos, seu crescimento e desenvolvimento. Não há, na semente do capim, nenhum osso, nenhuma carne, nenhum pelo, nenhum chifre. Entretanto, sem o capim nada disso subsiste no bovino. Mais ainda: o que o gado expele no campo durante sua vida (ou com seu próprio corpo após a morte) vai alimentar o mesmo capim que o alimenta. Anaxágoras conclui, portanto, que embora cada semente seja de um determinado modelo, em qualquer uma delas há informações sobre tudo o que existe no universo, e dessa forma o mundo se transforma, como quereria Heráclito, mas sem que deixe de ser uma única substância, como concordaria Parmênides. Tudo está em tudo, e tudo contém tudo. Esse é o grande fundamento da homeomeria.

Resta entender, por fim, qual seria o mecanismo que faria com que as homeomerias se organizam no espaço para dar origem a tudo o que existe, especialmente no que diz respeito ao “saber” se moldar a cada realidade.

A coisa é mais ou menos assim. Quando deitamos os olhos no mundo que nos circunda, vemos que, embora haja um quê de incerteza para confundir as coisas, existem certas regularidades que conduzem a previsibilidades. Mantendo a alegoria da semente, sabemos que, se colocamos uma na terra, ela encontrará nutrientes e brotará, aflorando no solo e crescendo cada vez mais, até frutificar certa quantidade de vezes e espalhar novas sementes pelo mundo, até declinar e morrer. Isso se repete por inúmeros outros fenômenos, como o surgir e o pôr do sol, as estações do ano e até mesmo as relações humanas. Como seria fácil intuir, esses scripts não parecem frutos do mero acaso, mas de uma certa forma de organizar o universo que parte de uma inteligência, porque tudo está no lugar certo e na hora certa, colocado como deve para funcionar da devida forma universal, mesmo que no varejo pareça por certas vezes não dar certo: uma semente pode não brotar, mas ainda servirá como composto orgânico. Anaxágoras se refere a este princípio como nous, palavra de difícil tradução para o português. Seria uma espécie de princípio universal ordenador que age pela pura racionalidade, algo como um espírito universal não necessariamente vinculado a uma divindade, mas ainda metafísico, na medida em que é puramente racional e prescinde da matéria, a quem tem a capacidade de ordenar. Para ter um exemplo levemente aproximado, seria como aqueles momentos em que nos concentramos em uma linha de pensamentos e que nos desvinculamos da realidade circunstante, como se desligássemos o botãozinho que nos conecta ao mundo exterior. Sendo que tudo isso tem como substrato material as homeomerias, é ele, o nous, que faz com que tudo seja do jeito que é.

Mas se o nous é um princípio ordenador do universo, ele também está nas coisas criadas? Sim, conforme pensa Anaxágoras. A cada vez que algo se materializa, uma parte do princípio inteligente se mantém agregada a ele, e essa " quantidade" de nous que permanece em um ente determina sua capacidade de percepção cósmica. O ser humano é o que de máximo existe em termos de nous "acumulado", por isso dizemos que somos animais racionais. Esse teor vai se reduzindo na medida em que se percebe o embrutecimento da matéria, mas mesmo assim ainda há a presença da inteligência universal mesmo nos minúsculos fragmentos de areia.

Por tudo isso, é possível notar como o pluralismo de Anaxágoras já aponta para algo muito próximo ao que vieram predizer Lêucipo e Demócrito de Abdera, com a diferença que estes últimos eram um pouco mais rígidos com a plasticidade do átomo em relação à homeomeria e não colocavam nenhuma instância metafísica na forma como as substâncias se agregavam e desuniam, de maneira muito mais materialista, no que veio desembocar, séculos depois, na moderna química que impera até os dias atuais.

Toda essa sofisticação de pensamento foi refletir muito séculos depois na monadologia de Leibniz, que, grosso modo, retoma uma grande parte dos princípios das homeomerias e do nous para explicar as semelhanças de características entre elementos muito distintos entre si. Isso é prova de que a ideia em si é bastante poderosa e contém elementos que enriquecem a intelectualidade.

Sendo assim, despeço-me cordialmente da antiga morada do piá mais velho e também de vocês, convidando-os a seguir acompanhando este pequeno espaço. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Vai em italiano. Uma boa coletânea dos fragmentos que chegaram até nós da obra de natura de Anaxágoras.

D’IPPOLITO, Armando (Org.). Anassagora, Il Miscuglio Originario. Milão: Albo Versorio, 2015.

2 comentários:

  1. Todas as vezes que leio algo sobre os pré-socráticos é irresistível não pensar naquela piada velha: "Esses pensadores seriam ainda mais influentes e compreensíveis se não escrevessem só em fragmentos...". Mas falando sério agora. Há de fato bastante sofisticação no pensamento de Anaxágoras e, como você também apontou, similaridade com Demócrito. Mesmo com todo o atual conhecimento científico a nos rodear, não deixa de ser fascinante observar as diligências desses caras, dois mil e trocentos anos atrás, na busca de explicações da realidade e do mundo físico.

    Mais uma vez, ótimo texto. Um abraço.

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