(A procura pelo elemento primordial que constitui todas as coisas foi o primeiro motivador do pensamento filosófico. Hoje vamos falar sobre um dos mais originais)
Olá!
Estou em Curitiba mais uma vez. Não a passeio, nem a visita, mas a trabalho. E um trabalho pouco convencional, ao menos para um escriba informata, como é meu caso. Estou fazendo as vezes de pintor, carregador, faxineiro e até içador de móveis, dado que camas-boxes tem pouca flexibilidade e dimensões pouco amigáveis com escadas estreitas. Sim, estou fazendo uma mudança, mas não é para mim; também não é serviço pago, é para o meu filho mais velho, que está saindo de um apartamento para uma casa, uma velha intenção que o garoto nutria, saudoso dos tempos de criança no célebre Jardim Elba, no arrabalde paulistano. Eu não sei recusar as coisas quando estão ao meu alcance, então enforquei dois dias para ajudá-lo a cumprir as cláusulas contratuais: paredes pintadas, chão limpo, essas coisas necessárias à entrega do imóvel. No final das contas, entregamos o apartamento melhor do que foi pego. Isso porque certos escorridos e determinadas manchas que foram consignados ao filho-inquilino foram devidamente corrigidos nessa nova versão que repassamos à imobiliária. São coisas da herança materna: minha mãe reviraria na cova caso visse um serviço porco. Em tempo: ela tinha baixíssima tolerância a imperfeições, e parecia falar no meu ouvido a cada risquinho que eu deixava passar batido.
No final das contas, ficou o dito pelo não dito. Foi uma
trabalheira imensa, incluindo tudo aquilo que consta do checklist de uma
entrega: pintar paredes, teto, portas e detalhes, inúmeros detalhes. Fiquei
longas horas sentado de indiozinho, cuidando da junção dos rodapés, ou de ponta-cabeça
fazendo sancas e luminárias, tudo com pinceizinhos de ponta finíssima, lutando
contra minha falta de coordenação motora, enquanto a patroa mandava brasa nas
partes grandes. Nos momentos em que ficava sozinho, sem plano de dados nem
wi-fi disponível, restava a mim filosofar, observando como dos grandes rolos de
lã às pequenas cerdas de cerdas eu espalhava a mesma substância, em menor ou
maior quantidade, conforme a conveniência da tarefa. E lá vou eu para a Grécia
antiga.
Conforme eu já falei um monte de vezes neste espaço, os
filósofos pré-socráticos se dividiam essencialmente em duas correntes: os
discípulos de Heráclito, que viam no dinamismo das transformações a própria essência
das coisas, um eterno devir que faz passar de um estado para o seu contrário; e
os eleatas, seguidores de Parmênides, que viam o universo como um todo
imutável, cujas transformações são meras ilusões das opiniões e desvios dos
sentidos.
As teses de Heráclito tinham a seu favor a intuição, já que,
de fato, vemos o mundo em impermanência. “Não se toma banho duas vezes no mesmo
rio”, dizia o sábio que entendia ser tanto o homem quanto o rio seres em
constante transformação, e é isso que o universo tem de permanente: a mudança. A
favor de Parmênides, pesa o olhar profundo da ontologia, que vê o Ser para além
dos sentidos e da apreensão imediata. Era uma tese com uma lógica tão bem
construída que foi a partir dela que começaram a brotar as regras fundamentais
do pensamento bem construído, especialmente o princípio da não-contradição
(para saber mais, leiam este
texto). Mas tudo o que havia de intuitivo em Heráclito ia ao seu oposto em
Parmênides. Imutabilidade e imobilismo, as principais característica do Ser,
contrapunham completamente a nossa apreensão direta da realidade. Era muito
difícil explicar a fixidez para olhos que só viam a alternância de estados
universais: dia e noite, calor e frio, vida e morte. Era como o antagonismo
entre as teses acadêmicas e o senso comum, onde somente um pequeno grupo de
iniciados se põe em confronto com a percepção popular - embora o pensamento de
Heráclito em nada estava no âmbito do acriticismo. Por isso, era essencial
obter explicações para as mudanças e o devir.
Aliado a tudo isso, havia uma questão ainda mais antiga: a arché.
Essa ideia, que já mencionei muitas vezes por aqui e já fiz uma espécie de texto
consolidado, foi a primeira temática verdadeiramente filosófica, e buscava
saber o que está no substrato da realidade sem o auxílio de divindades e
atividades demiúrgicas. Os filósofos posteriores a Parmênides e Heráclito
começaram a vincular este elemento primordial com a questão do Ser, buscando
elucidar ambas as problemáticas de um só turno.
Várias foram as tentativas, cada uma mais engenhosa do que a
outra. Uma das que mais fez sucesso foi a de Empédocles de Agrigento, a quem
apresentei aqui.
Em apertadíssima síntese, sua tese falava das rizomatas, as raízes
compostas pelos quatro elementos, que, misturados nas devidas proporções, davam
origem a todas as coisas.
Embora possuísse sua lógica, o pensamento de Empédocles não
alcançou unanimidade, como se pode supor. Um dos que achava essa explicação
insuficiente era Anaxágoras de Clazômenas, cidade grega que hoje pertence à
Turquia, cuja principal crítica estava na ampla variedade de elementos
existentes no universo, que dificultavam a visão de que somente a mistura de
terra, fogo, água e ar eram o bastante para constituir todo e qualquer
elemento. Para ele, deveria existir uma substância que antecede os quatro
elementos e os compõe. Já vamos chegar nisso.
Mesmo que com contraposições, o princípio geral estava dado.
Se não era na visão macro que conseguiríamos perceber a imutabilidade das
essências, de algum outro modo seria possível explicar a aparente
transitoriedade e a permanência eterna do Ser. As tentativas mais simples, como
a água de Tales ou o ar de Anaxímenes eram ainda mais difíceis de aceitar que a
rizomata de Empédocles. A antiga visão do ápeiron
de Anaximandro era insuficiente, porque o todo imaginado, sempre preenchido
pela substância etérea, não dava espaço para o não-Ser. Anaxágoras pensa então
na redução da possibilidade do Ser a tamanhos infinitesimais. A coisa tem mais
ou menos o seguinte sentido: nascer e morrer são ilusórios, já que ambos
pressupõem que algo exista a partir do nada ou que deixe de existir - o não-Ser,
o que é impossível. Estes termos devem, em um sentido mais estrito, ser
substituídos por “compor” e “decompor”, na medida em que o agrupar e desagrupar
não representam o surgimento e a extinção de uma determinada existência, mas um
mero rearranjo de algo que já existe.
E o que seria essa coisa que já existe?
Segundo Anaxágoras, os elementos constituintes da realidade
podem ser reduzidos a tamanhos minúsculos, porque esse formato explica tanto o
universo em seu menor tamanho imaginável, quanto em seu tamanho macro, pela
agregação das pequenas partículas. Esses componentes mínimos de todas as coisas
tem o nome de spermata, que podemos traduzir como “sementes”.
E como seriam essas sementes? Bem, vamos com calma nessa
hora. Anaxágoras utiliza esse nome por uma alegoria ao se observar como
funciona a semeadura em um campo. A cada pequenina semente que for, brotará uma
planta completa, que poderá ser um pequeno musgo ou um gigantesco baobá. Nesta
semente está contida toda a informação necessária para o desenvolvimento da
planta, e daí vemos neste campo como cada semente específica desenvolve uma
planta igualmente específica, sem que cada uma vá para um canto. Assim é com o
fogo, cuja labareda é composta por inúmeras sementes de fogo, ou com a terra,
ou com qualquer elemento. Ou seja, cada substância existente no universo deriva
de uma semente específica, que lhe caracteriza e já carrega consigo não somente
seu estado atual, mas o todo que virá a constituir. Não se trata de misturas de
elementos agregados através de uma espécie de "sentimento", como
diria Empédocles, mas por qualidades infinitas de sementes: para cada
substância localizada no cosmos, há uma semente determinada que a compõe. Por
mais que o mundo seja grande e a diversidade de elementos seria finita, o fato
é que todo o cosmos, na visão de Anaxágoras, é infinito. Sendo assim, as
sementes como originadoras de substâncias também são infinitas. A mesma coisa
se aplica à quantidade de sementes. Não basta que suas qualidades sejam
infinitas, é preciso que infinita também seja sua quantidade, partindo da
premissa fundamental de que o universo todo é composto por elas.
A spermata de Anaxágoras ajusta-se bem ao eleatismo porque
ele aposta em outra categoria que lhe seria particular. As sementes não são
apenas infinitas e eternas, mas também são imutáveis. Se é fato que o mundo se
notabiliza pela imobilidade travestida de devir pelas ilusões dos sentidos e
pela ignorância de como tudo funciona, só há sentido nas sementes se elas forem
eternamente iguais.
Mas como isso seria possível se basta que cortemos uma
árvore para que ela passe a ser um sarrafo de madeira? Aqui nós vamos ver como
Anaxágoras prefigurou a moderna biologia. Ele entende que a divisão
quantitativa de qualquer substância não lhe tira a identidade qualitativa. Ou
seja, por menor que seja o pedaço da árvore, ele conterá em si a árvore inteira.
Essa assertiva pode parecer estranha, mas as atuais descobertas no ramo da
genética demonstram que muito do que está em nosso organismo como um todo fica
descrito em cada uma das partes. Ou seja, Anaxágoras dizia que tudo o que
existe é constituído por partes qualitativamente iguais, o que mais tarde foi
nominado como homeomeria.
A grande sacada da homeomeria está no seguinte fato,
novamente exemplificando com a vida real: todo o capim que está em um pasto
nasceu de um tipo específico de spermata. Esse capim serve para que os bois e
as vacas se alimentem, e é dele que se constituem seus corpos, seu crescimento
e desenvolvimento. Não há, na semente do capim, nenhum osso, nenhuma carne,
nenhum pelo, nenhum chifre. Entretanto, sem o capim nada disso subsiste no
bovino. Mais ainda: o que o gado expele no campo durante sua vida (ou com seu
próprio corpo após a morte) vai alimentar o mesmo capim que o alimenta. Anaxágoras
conclui, portanto, que embora cada semente seja de um determinado modelo, em
qualquer uma delas há informações sobre tudo o que existe no universo, e dessa
forma o mundo se transforma, como quereria Heráclito, mas sem que deixe de ser
uma única substância, como concordaria Parmênides. Tudo está em tudo, e tudo
contém tudo. Esse é o grande fundamento da homeomeria.
Resta entender, por fim, qual seria o mecanismo que faria
com que as homeomerias se organizam no espaço para dar origem a tudo o que
existe, especialmente no que diz respeito ao “saber” se moldar a cada
realidade.
A coisa é mais ou menos assim. Quando deitamos os olhos no
mundo que nos circunda, vemos que, embora haja um quê de incerteza para
confundir as coisas, existem certas regularidades que conduzem a
previsibilidades. Mantendo a alegoria da semente, sabemos que, se colocamos uma
na terra, ela encontrará nutrientes e brotará, aflorando no solo e crescendo
cada vez mais, até frutificar certa quantidade de vezes e espalhar novas
sementes pelo mundo, até declinar e morrer. Isso se repete por inúmeros outros
fenômenos, como o surgir e o pôr do sol, as estações do ano e até mesmo as
relações humanas. Como seria fácil intuir, esses scripts não parecem frutos do
mero acaso, mas de uma certa forma de organizar o universo que parte de uma
inteligência, porque tudo está no lugar certo e na hora certa, colocado como
deve para funcionar da devida forma universal, mesmo que no varejo pareça por
certas vezes não dar certo: uma semente pode não brotar, mas ainda servirá como
composto orgânico. Anaxágoras se refere a este princípio como nous,
palavra de difícil tradução para o português. Seria uma espécie de princípio
universal ordenador que age pela pura racionalidade, algo como um espírito
universal não necessariamente vinculado a uma divindade, mas ainda metafísico,
na medida em que é puramente racional e prescinde da matéria, a quem tem a
capacidade de ordenar. Para ter um exemplo levemente aproximado, seria como
aqueles momentos em que nos concentramos em uma linha de pensamentos e que nos
desvinculamos da realidade circunstante, como se desligássemos o botãozinho que
nos conecta ao mundo exterior. Sendo que tudo isso tem como substrato material
as homeomerias, é ele, o nous, que faz com que tudo seja do jeito que é.
Mas se o nous é um princípio ordenador do universo, ele
também está nas coisas criadas? Sim, conforme pensa Anaxágoras. A cada vez que
algo se materializa, uma parte do princípio inteligente se mantém agregada a
ele, e essa " quantidade" de nous que permanece em um ente determina
sua capacidade de percepção cósmica. O ser humano é o que de máximo existe em
termos de nous "acumulado", por isso dizemos que somos animais
racionais. Esse teor vai se reduzindo na medida em que se percebe o
embrutecimento da matéria, mas mesmo assim ainda há a presença da inteligência
universal mesmo nos minúsculos fragmentos de areia.
Por tudo isso, é possível notar como o pluralismo de
Anaxágoras já aponta para algo muito próximo ao que vieram predizer Lêucipo e
Demócrito de Abdera, com a diferença que estes últimos eram um pouco mais
rígidos com a plasticidade do átomo em relação à homeomeria e não colocavam
nenhuma instância metafísica na forma como as substâncias se agregavam e
desuniam, de maneira muito mais materialista, no que veio desembocar, séculos
depois, na moderna química que impera até os dias atuais.
Toda essa sofisticação de pensamento foi refletir muito
séculos depois na monadologia
de Leibniz, que, grosso modo, retoma uma grande parte dos princípios das
homeomerias e do nous para explicar as semelhanças de características entre
elementos muito distintos entre si. Isso é prova de que a ideia em si é
bastante poderosa e contém elementos que enriquecem a intelectualidade.
Sendo assim, despeço-me cordialmente da antiga morada do piá
mais velho e também de vocês, convidando-os a seguir acompanhando este pequeno
espaço. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Vai em italiano. Uma boa coletânea dos fragmentos que
chegaram até nós da obra de natura de Anaxágoras.
D’IPPOLITO, Armando (Org.). Anassagora, Il Miscuglio
Originario. Milão: Albo Versorio, 2015.
Todas as vezes que leio algo sobre os pré-socráticos é irresistível não pensar naquela piada velha: "Esses pensadores seriam ainda mais influentes e compreensíveis se não escrevessem só em fragmentos...". Mas falando sério agora. Há de fato bastante sofisticação no pensamento de Anaxágoras e, como você também apontou, similaridade com Demócrito. Mesmo com todo o atual conhecimento científico a nos rodear, não deixa de ser fascinante observar as diligências desses caras, dois mil e trocentos anos atrás, na busca de explicações da realidade e do mundo físico.
ResponderExcluirMais uma vez, ótimo texto. Um abraço.
Muito obrigado... Abraços para você também!
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