Bom ou mau. Esquerda ou direita. Destro ou canhoto. Coxinha
ou petralha. Vivo ou morto. Real ou imaginário. Verdadeiro ou falso. Bonito ou
feio. Covarde ou corajoso. Comportado ou arreliento. Comum ou raro. Focado ou
disperso. Macho ou bicha. Homem ou mulher. Emotivo ou razoável. Rápido ou
lento. Forasteiro ou conterrâneo. Novo ou velho. Agudo ou grave. Anjo ou
demônio. Gentil ou hostil. Doce ou salgado. Elegante ou cafona. Junto ou
separado. Amor ou ódio. Presença ou ausência. Bruto ou lapidado. Grande ou
pequeno. Calmo ou feroz. Ativo ou passivo. Preto ou branco. Branco ou preto.
Pensando em branco e preto... |
... ou em preto e branco. |
Uma das coisas mais importantes que aprendemos nas matérias
voltadas à didática na faculdade é o quanto é importante analisar as coisas em
seus mais amplos aspectos. Basta que se veja o quanto os diferentes temas vão
variando através do tempo. Pegue-se, por exemplo, o caso da concepção do homem.
Já fomos seres duais (corpo-alma), já fomos um animal como outro qualquer, já
fomos a joia da criação, já fomos nós mesmos parte do divino, já fomos
materialistas, já fomos existencialistas e muitas coisas mais, sem que nenhuma
dessas variantes tenha sido plenamente invalidada.
Questões nascem para serem colocadas dialeticamente, ou
seja, em sucessões de teses e antíteses. E a cada degrau que se sobe, novos
aspectos até então impensados vem à tona. Por mais que se queira lutar contra,
nunca existe resposta única (sobre a dialética hegeliana, ler este texto).
Com isso temos que, conforme diz o bom senso, devemos sempre
observar os dois lados de uma questão. Isso obviamente está certo, concordam?
Não, errado.
Esse é um dos grandes problemas do senso comum. Uma questão
não pode ser vista unilateralmente, mas também não pode ser colocada como uma
dicotomia sempre. Uma questão pode ter um terceiro, quarto, quinto, milésimo,
infinitos lados. E quem insiste em reduzir todas as questões entre bons e maus,
claros e escuros, nós e eles, é chamado de maniqueísta.
E de onde vem este termo?
Vem de Maniqueísmo, uma religião que surgiu no Império
Sassânida (antiga Pérsia, atual Irã), pelas mãos do filósofo Mani, também
chamado de Manes ou Maniqueu, por volta do século III d. C. Sua filosofia de
fundo é um forte dualismo: há um princípio do bem, genericamente chamado de
Luz, e um do mal, denominado Trevas, que se espraiam para todos os aspectos da
existência universal e humana. Daí que somos colocados diante de tudo com uma
perspectiva de divisão entre o bem e o mal. Sendo tudo impregnado por um ou por
outro, cada coisa e ato são bons ou ruins. A matéria vem das Trevas, portanto é
ruim; o espírito vem da luz, portanto é bom. Cada ação que busca
aperfeiçoamento é originada da Luz, portanto é boa; cada uma que denigre vem
das trevas, portanto é má. Sempre será necessário, nesta lógica, atribuir um
valor positivo ou negativo a cada um dos elementos existentes no universo.
Esta religião e filosofia foram perpassadas por muitas
influências. Reúne elementos do Zoroastrismo, religião predominante na Pérsia
antiga, com uma série de características pertencentes ao Budismo, ao Hinduísmo
e ao Cristianismo. As divindades de cada uma destas religiões eram levadas em
conta como “pais da justiça”, que tinham sua síntese perfeita em Mani,
agregador de todas as perfeições. Seus monges precisavam levar vida de extremo
rigor, absorvidos na oração e na pobreza. Como coligia elementos derivados de
uma heresia do Cristianismo chamada Gnosticismo, que propugna o conhecimento
das verdades espirituais como meio de salvação, o Maniqueísmo foi bastante
perseguido até a Idade Média, quando se deu sua extinção.
Por causa de todas essas características, a vida da
linguagem levou a uma identificação entre o Maniqueísmo e o pensar dicotômico. Dizer
que uma pessoa é maniqueísta é um reducionismo óbvio, aceitável apenas se
levarmos pelo lado da metáfora. Mas o que explica que ainda utilizemos um termo
de uma religião e filosofia que, forçando a barra, teve relevância apenas até a
Idade Média?
Concorde-se ou não, a verdade é que o maniqueísmo possui uma
resposta bem estruturada a algumas das questões que mais causam aflição à
espécie humana. Uma delas é a questão da existência do mal, que tem explicação
árdua em monoteísmos tradicionais, como o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo,
já que é necessário que se elaborem longas teses sobre um Deus bom que permite
catástrofes e discórdias alvejando suas criaturas. É a mesmíssima pergunta que
se faz todas as vezes que temos um tsunami, ou terremoto, ou outra desgraça
qualquer. Ou ainda quando uma criança morre assassinada pelos pais, ou cai uma
pedra na cabeça dela, e assim sucessivamente: “Como Deus permite que tantos
sofram?”.
O dualismo maniqueísta, ao imputar ao ser humano, ao mundo e
ao universo uma composição onde ambos os princípios são necessariamente
presentes, dá uma lógica muito mais confortável. Há um equilíbrio muito menos
precário quando se diz que tudo está embutido pelo bem e pelo mal. Ou seja, as
desgraças ocorrem quando os atos estão impregnados pelas Trevas. Pronto e
ponto.
Bom... O Maniqueísmo cuida de todas as questões como
dicotomias, ou seja, há sempre duas e somente duas respostas para todos os
problemas que se propuserem: ou se origina da Luz, e é bom, ou se origina das
Trevas, e é mau. São princípios opostos e coexistentes, que explicam tudo. Mas
se estendermos esse método a todas as circunstâncias que plasmam nossa vida,
teremos sérias dificuldades. A questão das quotas raciais é um belo exemplo.
Como conseguimos designar quem é branco e quem é preto? Se admitimos as quotas,
admitimos para quem? Uma gota de sangue negro é suficiente para tornar alguém
negro? Uma gota de sangue branco é suficiente para tornar alguém branco? Negro
é aquele que tem origem racial africana ou é aquele que sofre com o
preconceito? Enfrentei este problema neste texto, inclusive com fotos.
Parece a mim que a comissão de porteiros proposta pelo Elio Gaspari é muito
mais efetiva do que qualquer legislação que tente dividir o país entre negros e
brancos.
(Em tempo: esta comissão se constituiria no seguinte – uma comissão
formada por um determinado número de porteiros de prédio apreciaria uma foto de
cada um dos candidatos às quotas, com a seguinte pergunta: “Você deixaria esta
pessoa adentrar em seu prédio sem reservas?”. Aqueles que tivessem seu acesso
barrado seriam considerados negros).
Percebam a extrema dificuldade em dividir o mundo
dicotomicamente. De cara, extinguimos os meios termos, o que torna as posições
estanques. E isso distorce grandemente a visão que formamos de uma pessoa ou de
uma situação. Podemos extrair mais um exemplo quando observamos o debate
político. Tudo é direita ou esquerda. Se dissermos que uma pessoa é contra o
aborto, automaticamente é considerado um conservador, independentemente de procurar
saber suas posições sobre tudo o mais que diz respeito à vida social, ainda que
este mesmo indivíduo seja a favor da intervenção estatal, da relativização do
direito à propriedade, e tantas outras vontades típicas daquilo que se
considera “esquerda”. O mesmo se aplica a uma pessoa que, mesmo favorável à
livre iniciativa, à obtenção de lucros e à redução do tamanho do Estado,
posiciona-se ao lado dos financiamentos estudantis. Já não é um cara da “direita”,
um “libertário”, ou coisa semelhante. Por isso mesmo, as dicotomias tendem a
formar rótulos, que tem o grande mal de induzir tendências nas pessoas
individualmente por aquilo que um determinado grupo pensa.
A falsa dicotomia, que também pode ser chamada de "falso
dilema" ou de "pensamento em preto e branco", é a utilização da linguagem de
maneira a fazer crer que há apenas duas posições possíveis, mutuamente
excludentes. Toda lógica é binária, o que é tão bom para os computadores, mas
tão ruim para as relações humanas. Falta ao argumento dicotômico uma tolerância
a posições intermediárias, e a inadmissibilidade de que ambas as alternativas propostas
podem ser verdadeiras ou falsas.
Uma das melhores explicações para a frequente utilização
desta falácia é a teoria da mente descontínua, que corresponde à dificuldade
humana em conseguir perceber transformações, mas vou tratar deste tópico com
mais cuidado em outro texto, por se tratar de assunto amplo e deveras
interessante.
Mas as dicotomias podem ser não-falaciosas? Claro, e isso é
muito frequente. Quando um determinado assunto tem de fato apenas duas
posições, é óbvio que somente uma poderá ser adotada. Por exemplo: digo que uma
cidadã está grávida. Pelo que me consta, não existe uma moça meio grávida – ou está,
ou não está. Neste caso, a dicotomia é fato, sem posições intermediárias, e não
há falácia. Podemos ainda lançar um dilema dúbio, mas, neste caso, tudo vai
depender da posição de quem profere o argumento. Se digo que alguém está morto,
a dicotomia será legítima, já que não existem pessoas metade vivas, metade
mortas. Mas isso se eu não acreditar em vida após a morte, ou em vampiros, ou
em zumbis. De qualquer forma, pode-se argumentar que espíritos, vampiros e
zumbis precisaram morrer para existir, mantendo a proposição em forma de dicotomia,
ou seja, essas espécies são mortas.
Então é isso. Não basta ver apenas um lado da questão, mas é
preciso ir além. As questões podem ter muito mais de dois lados.
Recomendação de leitura:
O livro abaixo contém ótimas informações sobre o
desenvolvimento e características do Maniqueísmo:
Agradeço à Natália por emprestar seu rosto e gengivas para a brincadeira do P/B incluída neste texto.
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