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sexta-feira, 3 de julho de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 13º tomo - A falsa dicotomia

Olá!


Bom ou mau. Esquerda ou direita. Destro ou canhoto. Coxinha ou petralha. Vivo ou morto. Real ou imaginário. Verdadeiro ou falso. Bonito ou feio. Covarde ou corajoso. Comportado ou arreliento. Comum ou raro. Focado ou disperso. Macho ou bicha. Homem ou mulher. Emotivo ou razoável. Rápido ou lento. Forasteiro ou conterrâneo. Novo ou velho. Agudo ou grave. Anjo ou demônio. Gentil ou hostil. Doce ou salgado. Elegante ou cafona. Junto ou separado. Amor ou ódio. Presença ou ausência. Bruto ou lapidado. Grande ou pequeno. Calmo ou feroz. Ativo ou passivo. Preto ou branco. Branco ou preto.


Pensando em branco e preto...

... ou em preto e branco.

Uma das coisas mais importantes que aprendemos nas matérias voltadas à didática na faculdade é o quanto é importante analisar as coisas em seus mais amplos aspectos. Basta que se veja o quanto os diferentes temas vão variando através do tempo. Pegue-se, por exemplo, o caso da concepção do homem. Já fomos seres duais (corpo-alma), já fomos um animal como outro qualquer, já fomos a joia da criação, já fomos nós mesmos parte do divino, já fomos materialistas, já fomos existencialistas e muitas coisas mais, sem que nenhuma dessas variantes tenha sido plenamente invalidada.

Questões nascem para serem colocadas dialeticamente, ou seja, em sucessões de teses e antíteses. E a cada degrau que se sobe, novos aspectos até então impensados vem à tona. Por mais que se queira lutar contra, nunca existe resposta única (sobre a dialética hegeliana, ler este texto).

Com isso temos que, conforme diz o bom senso, devemos sempre observar os dois lados de uma questão. Isso obviamente está certo, concordam?

Não, errado.

Esse é um dos grandes problemas do senso comum. Uma questão não pode ser vista unilateralmente, mas também não pode ser colocada como uma dicotomia sempre. Uma questão pode ter um terceiro, quarto, quinto, milésimo, infinitos lados. E quem insiste em reduzir todas as questões entre bons e maus, claros e escuros, nós e eles, é chamado de maniqueísta. E de onde vem este termo?

Vem de Maniqueísmo, uma religião que surgiu no Império Sassânida (antiga Pérsia, atual Irã), pelas mãos do filósofo Mani, também chamado de Manes ou Maniqueu, por volta do século III d. C. Sua filosofia de fundo é um forte dualismo: há um princípio do bem, genericamente chamado de Luz, e um do mal, denominado Trevas, que se espraiam para todos os aspectos da existência universal e humana. Daí que somos colocados diante de tudo com uma perspectiva de divisão entre o bem e o mal. Sendo tudo impregnado por um ou por outro, cada coisa e ato são bons ou ruins. A matéria vem das Trevas, portanto é ruim; o espírito vem da luz, portanto é bom. Cada ação que busca aperfeiçoamento é originada da Luz, portanto é boa; cada uma que denigre vem das trevas, portanto é má. Sempre será necessário, nesta lógica, atribuir um valor positivo ou negativo a cada um dos elementos existentes no universo.

Esta religião e filosofia foram perpassadas por muitas influências. Reúne elementos do Zoroastrismo, religião predominante na Pérsia antiga, com uma série de características pertencentes ao Budismo, ao Hinduísmo e ao Cristianismo. As divindades de cada uma destas religiões eram levadas em conta como “pais da justiça”, que tinham sua síntese perfeita em Mani, agregador de todas as perfeições. Seus monges precisavam levar vida de extremo rigor, absorvidos na oração e na pobreza. Como coligia elementos derivados de uma heresia do Cristianismo chamada Gnosticismo, que propugna o conhecimento das verdades espirituais como meio de salvação, o Maniqueísmo foi bastante perseguido até a Idade Média, quando se deu sua extinção.

Por causa de todas essas características, a vida da linguagem levou a uma identificação entre o Maniqueísmo e o pensar dicotômico. Dizer que uma pessoa é maniqueísta é um reducionismo óbvio, aceitável apenas se levarmos pelo lado da metáfora. Mas o que explica que ainda utilizemos um termo de uma religião e filosofia que, forçando a barra, teve relevância apenas até a Idade Média?

Concorde-se ou não, a verdade é que o maniqueísmo possui uma resposta bem estruturada a algumas das questões que mais causam aflição à espécie humana. Uma delas é a questão da existência do mal, que tem explicação árdua em monoteísmos tradicionais, como o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo, já que é necessário que se elaborem longas teses sobre um Deus bom que permite catástrofes e discórdias alvejando suas criaturas. É a mesmíssima pergunta que se faz todas as vezes que temos um tsunami, ou terremoto, ou outra desgraça qualquer. Ou ainda quando uma criança morre assassinada pelos pais, ou cai uma pedra na cabeça dela, e assim sucessivamente: “Como Deus permite que tantos sofram?”.

O dualismo maniqueísta, ao imputar ao ser humano, ao mundo e ao universo uma composição onde ambos os princípios são necessariamente presentes, dá uma lógica muito mais confortável. Há um equilíbrio muito menos precário quando se diz que tudo está embutido pelo bem e pelo mal. Ou seja, as desgraças ocorrem quando os atos estão impregnados pelas Trevas. Pronto e ponto.

Bom... O Maniqueísmo cuida de todas as questões como dicotomias, ou seja, há sempre duas e somente duas respostas para todos os problemas que se propuserem: ou se origina da Luz, e é bom, ou se origina das Trevas, e é mau. São princípios opostos e coexistentes, que explicam tudo. Mas se estendermos esse método a todas as circunstâncias que plasmam nossa vida, teremos sérias dificuldades. A questão das quotas raciais é um belo exemplo. Como conseguimos designar quem é branco e quem é preto? Se admitimos as quotas, admitimos para quem? Uma gota de sangue negro é suficiente para tornar alguém negro? Uma gota de sangue branco é suficiente para tornar alguém branco? Negro é aquele que tem origem racial africana ou é aquele que sofre com o preconceito? Enfrentei este problema neste texto, inclusive com fotos. Parece a mim que a comissão de porteiros proposta pelo Elio Gaspari é muito mais efetiva do que qualquer legislação que tente dividir o país entre negros e brancos.

(Em tempo: esta comissão se constituiria no seguinte – uma comissão formada por um determinado número de porteiros de prédio apreciaria uma foto de cada um dos candidatos às quotas, com a seguinte pergunta: “Você deixaria esta pessoa adentrar em seu prédio sem reservas?”. Aqueles que tivessem seu acesso barrado seriam considerados negros).

Percebam a extrema dificuldade em dividir o mundo dicotomicamente. De cara, extinguimos os meios termos, o que torna as posições estanques. E isso distorce grandemente a visão que formamos de uma pessoa ou de uma situação. Podemos extrair mais um exemplo quando observamos o debate político. Tudo é direita ou esquerda. Se dissermos que uma pessoa é contra o aborto, automaticamente é considerado um conservador, independentemente de procurar saber suas posições sobre tudo o mais que diz respeito à vida social, ainda que este mesmo indivíduo seja a favor da intervenção estatal, da relativização do direito à propriedade, e tantas outras vontades típicas daquilo que se considera “esquerda”. O mesmo se aplica a uma pessoa que, mesmo favorável à livre iniciativa, à obtenção de lucros e à redução do tamanho do Estado, posiciona-se ao lado dos financiamentos estudantis. Já não é um cara da “direita”, um “libertário”, ou coisa semelhante. Por isso mesmo, as dicotomias tendem a formar rótulos, que tem o grande mal de induzir tendências nas pessoas individualmente por aquilo que um determinado grupo pensa.

A falsa dicotomia, que também pode ser chamada de "falso dilema" ou de "pensamento em preto e branco", é a utilização da linguagem de maneira a fazer crer que há apenas duas posições possíveis, mutuamente excludentes. Toda lógica é binária, o que é tão bom para os computadores, mas tão ruim para as relações humanas. Falta ao argumento dicotômico uma tolerância a posições intermediárias, e a inadmissibilidade de que ambas as alternativas propostas podem ser verdadeiras ou falsas.

Uma das melhores explicações para a frequente utilização desta falácia é a teoria da mente descontínua, que corresponde à dificuldade humana em conseguir perceber transformações, mas vou tratar deste tópico com mais cuidado em outro texto, por se tratar de assunto amplo e deveras interessante.

Mas as dicotomias podem ser não-falaciosas? Claro, e isso é muito frequente. Quando um determinado assunto tem de fato apenas duas posições, é óbvio que somente uma poderá ser adotada. Por exemplo: digo que uma cidadã está grávida. Pelo que me consta, não existe uma moça meio grávida – ou está, ou não está. Neste caso, a dicotomia é fato, sem posições intermediárias, e não há falácia. Podemos ainda lançar um dilema dúbio, mas, neste caso, tudo vai depender da posição de quem profere o argumento. Se digo que alguém está morto, a dicotomia será legítima, já que não existem pessoas metade vivas, metade mortas. Mas isso se eu não acreditar em vida após a morte, ou em vampiros, ou em zumbis. De qualquer forma, pode-se argumentar que espíritos, vampiros e zumbis precisaram morrer para existir, mantendo a proposição em forma de dicotomia, ou seja, essas espécies são mortas.

Então é isso. Não basta ver apenas um lado da questão, mas é preciso ir além. As questões podem ter muito mais de dois lados.

Recomendação de leitura:

O livro abaixo contém ótimas informações sobre o desenvolvimento e características do Maniqueísmo:

COSTA, Marcos Roberto Nunes. Maniqueísmo: História, Filosofia e Religião. Petrópolis: Vozes, 2003.

Agradeço à Natália por emprestar seu rosto e gengivas para a brincadeira do P/B incluída neste texto.

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