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segunda-feira, 17 de julho de 2017

Navegar é preciso viver - Epílogo

Olá!


Malas feitas, vamos pedir a conta. Este é o quarto conjunto de relatos de viagens que faço no meu blog, e espero que todos tenham gostado. Só para rememorar, a minha proposta é acrescentar viagens filosóficas em minhas viagens turísticas. Essa é a minha cabeça, fazer o quê? Lembro muito bem do meu compadre Plínio. Quando criança, ele não se preocupava em ganhar brinquedos para brincar, mas para entender como eles funcionavam por dentro. E isso fazia com que os carrinhos e robozinhos fossem desmontados todos em menos de uma semana de uso. Terminou seus dias como mecânico e eletrônico, como que a confirmar sua vocação. Acho que algo semelhante acontece comigo. Olho para uma construção e não me admiro simplesmente com sua beleza. Fico me perguntando por que foi feita daquele jeito, e não de outro, ou o que significa a busca pela beleza. Vejo uma paisagem e me dedico a pensar quais são as possibilidades de interação desta com seu maior predador, o homem. Enfim, não desmonto brinquedos. Desmonto causalidades.

Estes epílogos servem, em tese, para costurar a boca do saco das viagens que realizo e dar uma certa unicidade e noção de conjunto aos que elas têm em comum. No diário de bordo de uma nau sem rumo, por exemplo, comentei sobre a força dos relatos e do diálogo que podemos construir com as pessoas; nas cartas náuticas para marinheiros de terra firme, falei sobre a crise hídrica generalizada, pela pouca água que encontrei em locais onde ela deveria ser abundante. Menos mal que a chuva tem sido pouco miguelenta nos anos posteriores, mas uma estiagem igual pode acontecer a qualquer momento. E no cesto da gávea de onde observo o mundo... Bem, desse eu sei que ainda devo o epílogo, mas com motivos que estão explicados no último texto da série: primeiro vou visitar o Núcleo Santa Virgínia, depois eu fecho aquele pacote.

E com relação a esta última viagem? Em tese, eu correria dois riscos: o de desenhar panegíricos que falam muito pouco sobre as localidades que busquei retratar, e o de falar mais do mesmo. Mas tenho dois assuntos relevantes a abordar, distintos mas correlatos, que aguçaram minha percepção no decorrer da viagem, além de me arriscar a ser vítima. Trata-se das imprudências dos motoristas nas estradas e do binômio bebida-direção. Aliás, o assunto não é um só porque agressividade no volante e motoristas bêbados não possuem correlação necessária, embora comum.

As estradas do estado de São Paulo, como um todo, são boas no quesito revestimento, e as rodovias principais possuem infraestrutura suficiente para realizar viagens tranquilas, como telefones a cada quilômetro, acostamentos, baias de emergência, iluminação em áreas críticas, encostas contidas, veículos de atendimento e outras benesses. É bem verdade que os pedágios têm espaçamento abaixo da crítica e preços proibitivos, mas fazemos parte do Brasil e estamos acostumados a tomar no lombo em silêncio. Mas entre estradas baratas e perigosas ou caras e seguras, é melhor ficar com a segunda opção.

No entanto, a maior parte da malha é constituída de estradas secundárias, daquelas que acompanham os contornos naturais do terreno sobre o qual avança. Evidentemente, o nível de investimento aqui é outro.


Nas regiões serranas, o problema é agravado pelo fato de que as trilhas naturais que deram origem às estradas vicinais são compostas por elevações que se alternam com vales. Mamãe natureza as fez assim, e isso torna as estradas que as serpenteiam bastante sinuosas, além de detentoras de desníveis significativos, gerando abismos perigosos. Como mirante, é bonito; mas como via de transporte, é inspiradora de cuidados.


A intensidade do fluxo, por vezes, justifica o alto investimento para construir rodovias que rompem as barreiras naturais, como acontece com a Floriano Rodrigues Pinheiro e, principalmente, com a via Imigrantes, que leva e traz da Baixada Santista. Para quem não a conhece, foi construída na parte mais escarpada da Serra do Mar, de modo a emular uma daquelas modorrentas estradas de planície: reta e com vistas ao infinito. Lembro-me de como, quando criança, meus familiares enchiam até a tampa a Kombi do meu tio para descermos a tal serra pela estrada velha de Santos, que hoje só se percorre a pé e de bicicleta. Sem cinto, sem faróis e com crianças no chiqueirinho do porta-malas, dançando pelas curvas fechadas, com muito movimento e nenhum juízo. Eram outros tempos, de muitos acidentes. A falta de estatísticas não permite a comparação, dificultada também pelo aumento inacreditável da quantidade de veículos no Brasil (lembro que, em 1978 ou 1979, o governo militar arrotava a vitória que representava a construção de 1.000.000 de carros. Hoje, esse número é semestral), mas o fato é que, decepando morros, furando montanhas com túneis, plantando pilastras copadas com viadutos e emergindo pontes do mangue, a via Imigrantes, um colosso da engenharia e da tecnologia, tornou o Caminho de Santos um verdadeiro troglodita, e, com certeza, poupou muitas vidas.

Só que não dá para fazer isso com qualquer estradinha que ligue São José de Baixo a São José de Cima. São vias necessárias à vida local, mas que têm fluxos de dez, doze, quinze carros por hora. Por isso mesmo, muitas vezes essas estradas nem mesmo são asfaltadas, já que não pagam a pena do investimento. A boa terra batida é relativamente tranquila para andar em tempo seco.


Óbvio que, em termos de proteção, as estradas de chão são ainda mais desprotegidas que aquelas asfaltadas. Em geral, é a rua e o precipício, raras vezes guarnecidos por uma cerca de arame farpado que não tem o intuito de segurar nenhum carro, apenas demarcar territórios.


O problema maior é nos tempos de chuva. Tenho um carro com DNA asfáltico, um sedã de quatro portas com motor pouco potente, pneus estreitos, propulsão e tração dianteira, com as rodas traseiras servindo de mero apoio à carroceria. Um carro de cidade, em suma, pago em infindas prestações. Ainda assim, com muito cuidado e contando com um bom protetor de cárter, atrevo-me em inúmeras estradinhas de terra, munido de atenção e paciência. É claro que não me atreveria a me enfiar na terra em plena chuva; o guaio é quando você já está enfiado quando começa a precipitação. Nesses casos, as “boas maneiras” mandam achar um lugar seguro e lá permanecer, mas é evidente que nem sempre isso é possível, e o cuidado redobra: evitar os baixios e atoleiros, procurar as faixas de pedregulhos, não travar as rodas, essas coisas.


Dadas todas essas condições, seria verdadeiramente desejável que todos os motoristas que trafegam por vias secundárias se confederassem em uma espécie de irmandade pela segurança de todos. Mas não.

As rodovias de alto fluxo possuem limites de velocidade que variam de 100 a 120 Km/h. Nas estradas de serra aqui na Mantiqueira esse limite é bem abaixo: 50 Km/h em média. Só que muitos motoristas parecem não perceber a diferença, e querem aplicar velocidades de autobahn em picadas com mania de grandeza.

Cinquenta por hora é pouco? Para mim, sim; e até admito que burlei esse limite muitas e muitas vezes. O problema é quando você, já acima dessa velocidade, percebe que há um contribuinte colado em seu porta-malas, com farol alto ligado e tenteando de um lado e de outro. E, o que é pior, muitas vezes seguidos por uma fila, comprovando que a prática é comum. Se eu posso, coloco-me na faixa do acostamento e espero toda a manada passar, retomando o ritmo tranquilo de minha viagem. Mas isso pressupõe a existência do acostamento, o que nem sempre é real.


Neste caso, escolho o melhor lugar possível, longe de curvas cegas, e diminuo ainda mais minha velocidade, permitindo ao afoito diabinho fazer sua bobagem da maneira menos arriscada possível. Houve até mesmo momentos em que optei por adentrar o acesso de um sítio qualquer para aplacar a ira de algum motorista especialmente feroz. Acham-se autênticos Villeneuves; pesquisem no YouTube para ver como Villeneuve acabou.

Não há garantia de que os carros estejam em perfeitas condições. Quem verifica a calibragem dos pneus, alinhamento dos faróis, espessura das pastilhas todas as vezes que vai para a estrada? A coisa se torna especialmente dramática em condições adversas: noite, neblina, chuva.


Há sempre algum engraçadinho para dizer e tentar provar que é tão habilidoso em qualquer tipo de piso. Não é. As estradas não são sempre iguais, os veículos não são sempre iguais, as pessoas não são sempre iguais. Há imprevistos: óleo na pista, pneu que fura, deslizamento de encostas. A velocidade máxima de uma rodovia é pensada justamente para haver uma margem de reação dos motoristas a estas situações imponderáveis. Transpor essa barreira não é só temerário, é irracional. E, se somos animais ditos racionais, por que fazemos isso?

Vejamos os vários fatores. O mais simples faz supor uma pressa. Eu, em minhas viagens, estou passeando. Se eu chegar dez minutos antes ou dez minutos depois ao meu destino não fará diferença alguma. Isso não é verdade para todo mundo; há gente que precisa marcar ponto, comparecer a reuniões, n motivos. O problema continua não sendo meu, mas passo eu também a correr riscos. As pessoas justificam seus atrasos com intrincadíssimos enredos, mas o fato é que a questão é só de falta de responsabilidade com horários. E tenta-se descontar a perda na estrada, o que não é bom.

Mas creio que essa justificativa é insuficiente. Há alguns casos em que temos uma questão de autoafirmação, ou, como diria meu amigo Bubu, “síndrome do pinto pequeno”. Ele dizia que todas as vezes que você ouvir algum filho da puta feliz proprietário com aquelas bazucas sonoras instaladas em seus carros (e que nunca tocam Beethoven), pode abrir a braguilha que lá estará a lastimável minhoca. E o excesso na ostentação seria uma espécie de substituição afetiva à exiguidade dimensional do membro. Quem tem pinto grande mostra o pinto grande e se dá por satisfeito. Não sei como o Bubu obteve dados para corroborar suas teses, e mesmo sabendo que não é o tamanho, mas a dureza que faz a diferença para o prazer do parceiro, aceitá-las-ei como razoáveis. Bubu explica.

Tudo isso para dizer que é extremamente raro ver abusados do volante no seu carro a fazer merda sozinhos. É gozado. Entendo que isso seria mais comum em jovens, mas não é muito difícil de ver barbados e carecas no meu retrovisor. O que é difícil é não ver alguma companhia, especialmente feminina.

Mas o mistério ainda se mantém quando vemos gente que normalmente é ponderada tomando esse tipo de atitude. Gente tranquila, sem atraso, bem resolvida com suas limitações e tamanho do pênis (ou da vagina – mulheres também são aptas a fazer merda) apronta das suas às vezes. O que tira dessas pessoas a noção de linha que não deve ser saltada? A resposta vem de um aditivo químico extremamente comum: o álcool.


Sim, meus caros. A lei seca, apesar de um bom começo, tornou-se um retumbante fracasso. Não só aqui, mas especialmente nestas terras altas, a galera gosta de dar um tapa no beiço, notadamente os turistas, pelos mais variados motivos. Há o romantismo dos vinhos que acompanham os fondues. Há a imensa variedade de cervejas artesanais produzidas em quase todas essas cidades. Há o fato de estarmos pegados ao sul de Minas e termos tradição em cachaças. Há um frio à espera de um bom conhaque. E há doces que só um licor bem forte consegue dar guarida.


Esses exemplos que dei acima, presenciei todos. E em todos, absolutamente todos, havia gente que enchia a lata para, logo em seguida, tomar o comando de seus automóveis e brincar de ser piloto. Gente que, como eu disse, não ofereceria nenhum tipo de risco estando sóbria, e que, mesmo bêbada, não causaria problema fora da estrada.

Não sou um purista. Eu gosto de tomar minhas biritas, como já falei tantas vezes neste espaço (aqui temos um exemplo), e também às vezes passo do ponto, mas, como já comentei neste texto, seja por medo da lei, seja por uma disposição ética, após a lei seca não mais dirigi, por mais que me sinta em condições de fazê-lo. Nunca dá para saber quando aquela fina linha é saltada. 

Todo mundo que dirige bêbado se acha em condições de consegui-lo. E a lei não tem condições de avaliar qual é o ponto em que uma pessoa começará a ter os sentidos obnubilados. Por isso, ela está certa em não permitir tolerância. Mas as pessoas tendem, cada vez mais, a perceber seu relaxamento e a burlá-la.

Soluções são difíceis. O ideal seria o salto ético, mas os exemplos que vêm de cima, aqueles que realmente são candidatos a se transformar em paradigma, são ruins. Enquanto isso, que se aperte novamente a fiscalização. Se beber, não dirija, ou aguarde a metabolização do álcool pelo seu organismo. São cidades lindas, que tem muitos atrativos que podem ser visitados a pé. Uma cervejinha na hora do almoço não atrapalhará seu retorno ao cair da tarde.

Por fim, dois arremates rápidos. O fenômeno do abuso na direção e do álcool não é exclusividade desta região. Quer ficar verdadeiramente horrorizado? Vá a São Roque.

E, como neste epílogo falei só de problemas, pode dar a impressão de que eles preponderaram na viagem. Não é verdade. São todas cidades bonitas e acolhedoras, com histórias interessantes contadas por pessoas interessantes, o que se torna ainda melhor quando você tem alguém interessante ao seu lado.


Não é verdade?

Recomendação de leitura:

Vou recomendar fortemente a leitura de uma lei: o Código de Trânsito Brasileiro. Nesses tempos de abrir o coração para os riscos enfrentados, é possível perceber que o brasileiro médio não o conhece muito bem. Antes de reclamar das multas, é bom saber o que pode ocasioná-las.

BRASIL. Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Edipro, 2004. Disponível em www.planalto.gov.br/ccvil_03/leis/L9503.htm. Acesso em 15.07.2017.

Recomendações de visita:
Recomendarei também, como de hábito, a visitação de cada uma das localidades por onde passei nesta jornada. As distâncias e rotas sempre dizem respeito à cidade de São Paulo.

Monteiro Lobato – 132 Km – Via Dutra até a saída 152 seguir até a Rodovia Monteiro Lobato

São Francisco Xavier (distrito de São José dos Campos) – 152 Km – Via Dutra até a saída 152 seguir até a Rodovia Monteiro Lobato. No centro de Monteiro Lobato, acessar a Estrada Vereador Pedro David.

São Bento do Sapucaí – 194 Km – Via Dutra até a saída da Rodovia Floriano Rodrigues Pinheiro (SP-123). Seguir até a SP-046 (Rodovia Osvaldo Barbosa Guisardi), em Santo Antonio do Pinhal. Entrar na SP-050 (Rodovia Vereador Júlio da Silva), atravessar a Divisa SP/MG em Sapucaí-Mirim e a Divisa MG/SP até São Bento do Sapucaí

Sapucaí-Mirim – 180 Km – Via Dutra até a saída da Rodovia Floriano Rodrigues Pinheiro (SP-123). Seguir até a SP-046 (Rodovia Osvaldo Barbosa Guisardi), em Santo Antonio do Pinhal. Entrar na SP-050 (Rodovia Vereador Júlio da Silva), atravessar a Divisa SP/MG

Campos do Jordão – 175 Km – Via Dutra até a saída da Rodovia Floriano Rodrigues Pinheiro (SP-123).

Santo Antonio do Pinhal – 173 Km – Via Dutra até a saída da Rodovia Floriano Rodrigues Pinheiro (SP-123). Seguir até a SP-046 (Rodovia Osvaldo Barbosa Guisardi), em Santo Antonio do Pinhal.

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