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Vamos passar a régua e enfeixar as ideias. Vou ser menos filosófico desta vez, no sentido de que não procurarei referências externas. Também serei mais breve do que o habitual. São as minhas impressões finais da viagem da nau sem rumo, na verdade um carro um pouco mais do que popular tripulado por duas pessoas bastante curiosas (uma, em termos filosóficos; outra, com um viés mais comercial – digamos assim).
Antes de mais nada, e para quem estiver com paciência, indico os links dos textos, desde o primeiro, cronologicamente:
O que eu vi em comum em todas essas cidades?
Todas elas têm um potencial único para preservar uma
identidade – ser testemunha construída de um tempo que não existe mais, mas que
explica muita coisa do que somos. Se olharmos a cidade de São Paulo, veremos
que o resgate do passado é uma missão quase que arqueológica, mesmo sendo tão
jovem. Jovem? Sim, jovem. São Paulo tem 460 anos, o que é bem pouco, se a compararmos
com algumas cidades da Europa, da China, do Oriente Médio, do norte da África e
via discorrendo. Mas mesmo isso é
exagero, porque São Paulo só começou a existir para valer a partir do final do
século XVIII, quando passou a ter importância e crescer de verdade. Isso
significa que, para iniciar a explicar a história de São Paulo, temos que
recuar meros 150 anos. Nada que necessite de altas toneladas de carbono 14. Só
que nos deparamos com o problema: em São Paulo, nós procuramos por vestígios, e
encontramos uma casinha aqui, uma lojinha ali, uma plaquinha acolá, uma
pracinha aquém e uma vilinha além e, em cima disto, tentamos remontar a
memória. Aqui na capital, o progresso passou seu trator por cima do passado, e este
se desenha por dedução. Talvez por isso mesmo seja tão comum a existência de
livros de fotografias antigas (eu mesmo tenho dois, que vou indicar logo
abaixo, nas recomendações), mas nós os comparamos com as novas estruturas dos
locais aos quais retratam e não as reconhecemos em quase nada. A sanha pelo
progresso e a especulação imobiliária são impiedosos, e só eles podem explicar
(mas não justificar) a demolição de tantas construções belas e características
de uma época para o erguimento de prédios e mais prédios, frios e opacos, sem o
cuidado de uma renovação estética pelo menos interessante. São apenas prédios
funcionais.Ocorre que, por mais que tenhamos várias fontes de história
(até mesmo os nomes de suas ruas, como descrevi aqui), há sempre algo
que se perde. A preservação deve ser intencional; se não for, temos que contar
com a sorte, o que nem sempre acontece.
É neste ponto em que as cidades do Vale Histórico podem e
devem se valer. Se o “azar” das circunstâncias deteve seus progressos, por
outro lado preservou muito mais do que vestígios de uma história que não é só
delas, mas do Brasil inteiro (e, por extensão, de todo o mundo). Efetivamente,
seus centros urbanos e suas fazendas têm tatuados em suas peles uma série
imensa de fatos históricos não pouco importante. Por estas terras, como
descrevi nos textos anteriores, passou a proclamação da independência, a
revolução constitucionalista, a revolução liberal, a expansão cafeeira, as
rotas do ouro, as ligações com a Europa, o ofício dos tropeiros, a luta e a
acomodação do homem no meio ambiente. A história está em suas ruas, não em seus
álbuns de fotografia. Estas cidades tem um tesouro em suas mãos. Espero que
cada vez mais tenham sabedoria de utilizá-lo bem.Outra coisa em comum da região é o relevo acidentado e
disponibilidade de água, feliz combinação que gera um dos atrativos mais comuns
hoje em dia – o ecoturismo. É muito fácil encontrar trilhas, quedas d’águas,
rios, riachos, ribeirões, córregos, lagoas, mata virgem... Tudo isso em
desníveis impressionantes, uma variação de altitudes bastante expressiva para
uma área relativamente pequena. Só que tudo isso é muito oculto. De fato, há
pouca indicação da presença destas belezas naturais... Paro para pensar: isso
bom ou ruim? Não consigo definir com exatidão, mas quando me vejo deparado com
a pobreza das pessoas, percebo que algo poderia ser feito utilizando estes
recursos. É uma região de pessoas com muita cortesia, mas correndo risco. Fazer
uma ampliação da renda através do turismo ecológico é algo muito tentador,
desde que isso não signifique o habitual emporcalhamento e costumeira
destruição do meio. Portanto, tudo deve ser feito com critérios claros no uso destas
áreas. Não vou me estender muito nesse assunto, não é o tema deste texto. Mas é
nosso dever refletir sobre.
Outro lado: apesar de suas semelhanças, evidentemente cada
uma das cidades visitadas tem sua particularidade, o que é saudável para que
não as identifiquemos como uma massa uniforme, em que uma coisa é qualquer
coisa, e qualquer coisa é mais do mesmo. Desta forma, temos Queluz com suas
ladeiras e ruas calçadas de pedras, Silveiras e sua ligação com o tropeirismo,
Areias e a remontagem da passagem real e da presença dos nobres, Arapeí e as
dificuldades de crescimento dos novos municípios, Bananal e a arquitetura
neoclássica europeia e árabe, São José do Barreiro e o trekking e Lavrinhas com seus laços com o rio Paraíba do Sul. Sim,
todas essas cidades têm mais coisas em comum do que divergências,
principalmente a tentativa de se reencontrar no mundo, mas cada uma delas tem
algo como uma pinta, uma cor de cabelo, um andar manco, uma cicatriz na perna
ou uma voz metálica que as individualiza e que impede (felizmente) o visitante
de dizer: “Quem viu uma, viu todas”. Não, meu amigo, é preciso ir uma a uma.Mas o que eu tenho de mais importante a dizer neste breve
texto de conclusão vem agora. Por mais que tenhamos andado por ruas e ruelas;
por mais que tenhamos subido, descido e escorregado em ladeiras; por mais que
tenhamos segurado a respiração nas estradas estreitas e sinuosas; por mais que
tenhamos engordado em casas, restaurantes, quiosques e botecos; por mais que
tenhamos amassado barro e molhado pés e traseiros; por mais que tenhamos
ameaçado nos afogar em rios e cascatas, e por mais que tenhamos terminado
nossas noites ao redor de uma garrafa de cerveja e de um acepipe qualquer, com
mariposas e outros insetos na companhia, ainda que sem convite – em resumo,
embora procurando por toda a parte o que as cidades tinham a nos dizer, nada
supera a força que tem o depoimento. A palavra falada supera a formalidade que
tem a palavra escrita, e esse testemunho só atinge seu ápice quando você
percebe as nuances que seu interlocutor dá à sua fala, bem como todo seu jogo
gestual e suas alternâncias no semblante – o brilho nos olhos, como diria um
poeta. A palavra escrita, nesse sentido, só tem a vantagem da permanência. É
preciso falar e ouvir: essa foi a grande chave que tivemos para abrir as portas
da compreensão deste mundo, que, da cidade grande, temos dificuldade de
absorver.
Assim, agradecemos a todas as pessoas que devolveram sua
atenção à nossa curiosidade. Que nos receberam em suas casas, serviram seus
cafés e bolachinhas, deram um pouco do seu tempo para dois transeuntes que
ficavam fuçando e fotografando com avidez seu pequeno e belo mundo. Agradecemos
a todos os que nos ajudaram a compreender seu modo de vida, aquilo que os move
e os apaixona, e que com isso nos encantaram também. Agradecemos à paciência e
contentamento que nos mostraram que a alegria pode ser gratuita, que pode ser
ferramenta para a ampliação dos conhecimentos de quem aparentemente vem
unicamente em busca de lazer e descanso. E agradecemos mesmo aos rapazes que
não souberam nos dizer nada de Lavrinhas, pois acabaram por nos dizer alguma
coisa: se a comunidade em que vivem não lhes desperta interesse, isso não é
feito sem motivo, e também isso é objeto para a busca do entendimento.Por fim, para que eu termine essa série e esse texto que já
vai longe: tudo é melhor de fazer estando em boa companhia, mastigando toda a
nossa experiência ao fim de cada noite, evidentemente assessorados por uma mesa
farta e por nosso amor às novidades e a nós mesmos. Santé!
E assim se pratica a Filosofia: não é preciso grandes
sistemas universais nem incógnitas indecifráveis. Tudo o que é necessário é
olhar o mundo e perguntar os motivos pelos quais ele se apresenta a nós desta
forma, e não de outra.
Recomendações:
A primeira e mais importante: o Vale Histórico é uma ótima
opção de viagem, seja para quem quer paz e sossego, seja para quem goste de
história, seja para quem queira conhecer uma geografia um tanto diferente.
Procurem os atrativos turísticos, como os centros históricos e o meio natural,
mas também procurem pelas pessoas, perguntem muito. Percebi que os moradores
destes locais não têm medo de pessoas, muito pelo contrário. Eles são a
verdadeira riqueza destes locais. Abaixo, as suas principais rotas de acesso:
Queluz – 225 Km de São Paulo pela BR-116 (Via Dutra)
Silveiras – 220 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos
Tropeiros)
Areias – 225 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos
Tropeiros)
Arapeí – 244 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos
Tropeiros)
Bananal – 296 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos
Tropeiros)
São José do Barreiro – 262 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia
dos Tropeiros)
Lavrinhas – 215 Km de São Paulo pela BR-116 (Via Dutra)
Nesta viagem, aproveitei para comprar um livro que conta a história
de algumas destas cidades, com fotos e depoimentos de cidadãos ilustres. Não
esgota o assunto, mas traz algumas informações bastante interessantes.
LUZ, Rogério Ribeiro da. Cinco
cidades paulistas: uma pequena viagem. São Paulo: KMK, 2002.Já os livros de fotos que mencionei são os seguintes (ambos
excelentes):
IACOCCA, Angelo. Retratos da imigração italiana no Brasil. São Paulo: Editora Brasileira, 2012.
IACOCCA, Angelo. Retratos da imigração italiana no Brasil. São Paulo: Editora Brasileira, 2012.
PONTES, José Alfredo Vidigal. São Paulo de Piratininga: de
pouso de tropas a metrópole. Rio de Janeiro: Terceiro Nome, 2010.
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