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segunda-feira, 26 de maio de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – Epílogo

Olá!

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Vamos passar a régua e enfeixar as ideias. Vou ser menos filosófico desta vez, no sentido de que não procurarei referências externas. Também serei mais breve do que o habitual. São as minhas impressões finais da viagem da nau sem rumo, na verdade um carro um pouco mais do que popular tripulado por duas pessoas bastante curiosas (uma, em termos filosóficos; outra, com um viés mais comercial – digamos assim).

Antes de mais nada, e para quem estiver com paciência, indico os links dos textos, desde o primeiro, cronologicamente:

O que eu vi em comum em todas essas cidades?
Todas elas têm um potencial único para preservar uma identidade – ser testemunha construída de um tempo que não existe mais, mas que explica muita coisa do que somos. Se olharmos a cidade de São Paulo, veremos que o resgate do passado é uma missão quase que arqueológica, mesmo sendo tão jovem. Jovem? Sim, jovem. São Paulo tem 460 anos, o que é bem pouco, se a compararmos com algumas cidades da Europa, da China, do Oriente Médio, do norte da África e via discorrendo. Mas mesmo isso é exagero, porque São Paulo só começou a existir para valer a partir do final do século XVIII, quando passou a ter importância e crescer de verdade. Isso significa que, para iniciar a explicar a história de São Paulo, temos que recuar meros 150 anos. Nada que necessite de altas toneladas de carbono 14. Só que nos deparamos com o problema: em São Paulo, nós procuramos por vestígios, e encontramos uma casinha aqui, uma lojinha ali, uma plaquinha acolá, uma pracinha aquém e uma vilinha além e, em cima disto, tentamos remontar a memória. Aqui na capital, o progresso passou seu trator por cima do passado, e este se desenha por dedução. Talvez por isso mesmo seja tão comum a existência de livros de fotografias antigas (eu mesmo tenho dois, que vou indicar logo abaixo, nas recomendações), mas nós os comparamos com as novas estruturas dos locais aos quais retratam e não as reconhecemos em quase nada. A sanha pelo progresso e a especulação imobiliária são impiedosos, e só eles podem explicar (mas não justificar) a demolição de tantas construções belas e características de uma época para o erguimento de prédios e mais prédios, frios e opacos, sem o cuidado de uma renovação estética pelo menos interessante. São apenas prédios funcionais.

Ocorre que, por mais que tenhamos várias fontes de história (até mesmo os nomes de suas ruas, como descrevi aqui), há sempre algo que se perde. A preservação deve ser intencional; se não for, temos que contar com a sorte, o que nem sempre acontece.
É neste ponto em que as cidades do Vale Histórico podem e devem se valer. Se o “azar” das circunstâncias deteve seus progressos, por outro lado preservou muito mais do que vestígios de uma história que não é só delas, mas do Brasil inteiro (e, por extensão, de todo o mundo). Efetivamente, seus centros urbanos e suas fazendas têm tatuados em suas peles uma série imensa de fatos históricos não pouco importante. Por estas terras, como descrevi nos textos anteriores, passou a proclamação da independência, a revolução constitucionalista, a revolução liberal, a expansão cafeeira, as rotas do ouro, as ligações com a Europa, o ofício dos tropeiros, a luta e a acomodação do homem no meio ambiente. A história está em suas ruas, não em seus álbuns de fotografia. Estas cidades tem um tesouro em suas mãos. Espero que cada vez mais tenham sabedoria de utilizá-lo bem.

Outra coisa em comum da região é o relevo acidentado e disponibilidade de água, feliz combinação que gera um dos atrativos mais comuns hoje em dia – o ecoturismo. É muito fácil encontrar trilhas, quedas d’águas, rios, riachos, ribeirões, córregos, lagoas, mata virgem... Tudo isso em desníveis impressionantes, uma variação de altitudes bastante expressiva para uma área relativamente pequena. Só que tudo isso é muito oculto. De fato, há pouca indicação da presença destas belezas naturais... Paro para pensar: isso bom ou ruim? Não consigo definir com exatidão, mas quando me vejo deparado com a pobreza das pessoas, percebo que algo poderia ser feito utilizando estes recursos. É uma região de pessoas com muita cortesia, mas correndo risco. Fazer uma ampliação da renda através do turismo ecológico é algo muito tentador, desde que isso não signifique o habitual emporcalhamento e costumeira destruição do meio. Portanto, tudo deve ser feito com critérios claros no uso destas áreas. Não vou me estender muito nesse assunto, não é o tema deste texto. Mas é nosso dever refletir sobre.
Outro lado: apesar de suas semelhanças, evidentemente cada uma das cidades visitadas tem sua particularidade, o que é saudável para que não as identifiquemos como uma massa uniforme, em que uma coisa é qualquer coisa, e qualquer coisa é mais do mesmo. Desta forma, temos Queluz com suas ladeiras e ruas calçadas de pedras, Silveiras e sua ligação com o tropeirismo, Areias e a remontagem da passagem real e da presença dos nobres, Arapeí e as dificuldades de crescimento dos novos municípios, Bananal e a arquitetura neoclássica europeia e árabe, São José do Barreiro e o trekking e Lavrinhas com seus laços com o rio Paraíba do Sul. Sim, todas essas cidades têm mais coisas em comum do que divergências, principalmente a tentativa de se reencontrar no mundo, mas cada uma delas tem algo como uma pinta, uma cor de cabelo, um andar manco, uma cicatriz na perna ou uma voz metálica que as individualiza e que impede (felizmente) o visitante de dizer: “Quem viu uma, viu todas”. Não, meu amigo, é preciso ir uma a uma.

Mas o que eu tenho de mais importante a dizer neste breve texto de conclusão vem agora. Por mais que tenhamos andado por ruas e ruelas; por mais que tenhamos subido, descido e escorregado em ladeiras; por mais que tenhamos segurado a respiração nas estradas estreitas e sinuosas; por mais que tenhamos engordado em casas, restaurantes, quiosques e botecos; por mais que tenhamos amassado barro e molhado pés e traseiros; por mais que tenhamos ameaçado nos afogar em rios e cascatas, e por mais que tenhamos terminado nossas noites ao redor de uma garrafa de cerveja e de um acepipe qualquer, com mariposas e outros insetos na companhia, ainda que sem convite – em resumo, embora procurando por toda a parte o que as cidades tinham a nos dizer, nada supera a força que tem o depoimento. A palavra falada supera a formalidade que tem a palavra escrita, e esse testemunho só atinge seu ápice quando você percebe as nuances que seu interlocutor dá à sua fala, bem como todo seu jogo gestual e suas alternâncias no semblante – o brilho nos olhos, como diria um poeta. A palavra escrita, nesse sentido, só tem a vantagem da permanência. É preciso falar e ouvir: essa foi a grande chave que tivemos para abrir as portas da compreensão deste mundo, que, da cidade grande, temos dificuldade de absorver.
Assim, agradecemos a todas as pessoas que devolveram sua atenção à nossa curiosidade. Que nos receberam em suas casas, serviram seus cafés e bolachinhas, deram um pouco do seu tempo para dois transeuntes que ficavam fuçando e fotografando com avidez seu pequeno e belo mundo. Agradecemos a todos os que nos ajudaram a compreender seu modo de vida, aquilo que os move e os apaixona, e que com isso nos encantaram também. Agradecemos à paciência e contentamento que nos mostraram que a alegria pode ser gratuita, que pode ser ferramenta para a ampliação dos conhecimentos de quem aparentemente vem unicamente em busca de lazer e descanso. E agradecemos mesmo aos rapazes que não souberam nos dizer nada de Lavrinhas, pois acabaram por nos dizer alguma coisa: se a comunidade em que vivem não lhes desperta interesse, isso não é feito sem motivo, e também isso é objeto para a busca do entendimento.

Por fim, para que eu termine essa série e esse texto que já vai longe: tudo é melhor de fazer estando em boa companhia, mastigando toda a nossa experiência ao fim de cada noite, evidentemente assessorados por uma mesa farta e por nosso amor às novidades e a nós mesmos. Santé!
E assim se pratica a Filosofia: não é preciso grandes sistemas universais nem incógnitas indecifráveis. Tudo o que é necessário é olhar o mundo e perguntar os motivos pelos quais ele se apresenta a nós desta forma, e não de outra.
Recomendações:
A primeira e mais importante: o Vale Histórico é uma ótima opção de viagem, seja para quem quer paz e sossego, seja para quem goste de história, seja para quem queira conhecer uma geografia um tanto diferente. Procurem os atrativos turísticos, como os centros históricos e o meio natural, mas também procurem pelas pessoas, perguntem muito. Percebi que os moradores destes locais não têm medo de pessoas, muito pelo contrário. Eles são a verdadeira riqueza destes locais. Abaixo, as suas principais rotas de acesso:
Queluz – 225 Km de São Paulo pela BR-116 (Via Dutra)
Silveiras – 220 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos Tropeiros)
Areias – 225 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos Tropeiros)
Arapeí – 244 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos Tropeiros)
Bananal – 296 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos Tropeiros)
São José do Barreiro – 262 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos Tropeiros)
Lavrinhas – 215 Km de São Paulo pela BR-116 (Via Dutra)

Nesta viagem, aproveitei para comprar um livro que conta a história de algumas destas cidades, com fotos e depoimentos de cidadãos ilustres. Não esgota o assunto, mas traz algumas informações bastante interessantes.
LUZ, Rogério Ribeiro da. Cinco cidades paulistas: uma pequena viagem. São Paulo: KMK, 2002.

Já os livros de fotos que mencionei são os seguintes (ambos excelentes):

IACOCCA, Angelo. Retratos da imigração italiana no Brasil. São Paulo: Editora Brasileira, 2012.

PONTES, José Alfredo Vidigal. São Paulo de Piratininga: de pouso de tropas a metrópole. Rio de Janeiro: Terceiro Nome, 2010.

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