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segunda-feira, 21 de abril de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 3º porto: Areias e a sensação estética diante da imensidão

Olá!

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No terceiro passo de nossa via Sacra, já tínhamos finalmente um escopo bem definido, só não estabelecemos uma ordem exata para fazê-lo. Tão logo saímos de Silveiras (meu relato), a próxima cidade era Areias, e resolvemos parar por ali, para alimentação e estadia. Pequena como as demais, montanhosa como as demais, com muitos registros interessantes por fazer.
Percebi que Areias conversa mais tranquilamente com sua história do que as duas cidades que visitei anteriormente. E, para não soar paradoxal, esclareço que, quando afirmei que Queluz é mais impregnada de história do que todas as outras (eis o texto), quis dizer que esta fica registrada em suas cicatrizes, com tudo de bom e de ruim que elas carregam, enquanto o passado de Areais está exposto nas joias da família. Areias manteve o que há de melhor, em seu álbum estão as fotos bonitas, enquanto em Queluz estão expostas todas as fotografias, para rir e para chorar.

O que eu quis dizer, no final das contas, com esse lero-lero todo? Que Areias tem um equipamento histórico muitíssimo bem conservado, e seus moradores tiveram a sabedoria de mantê-los em evidência. Vou dar alguns exemplos. Esta cidade estava na rota de Dom Pedro I quando ele e sua comitiva se encaminhavam do Rio de Janeiro para São Paulo, viagem essa que culminaria no grito da independência. Às margens de um ribeirão no centro da cidade, havia uma grande figueira, onde Dom Pedro e intrépida trupe deram uma parada e arriaram carga, para comer, descansar e despejar alívios outros. A árvore ainda está lá, devidamente identificada por uma placa contendo uma série de panegíricos, esta aí embaixo:


Também está em ótimo estado a casa de pouso em que nosso peralta primeiro imperador passou pernoite, hoje transformada em honestíssimo e confortável hotel, o Solar Imperial, onde pude, também eu, me hospedar.


A casa é muito típica da época, com a cozinha integrada ao refeitório e até mesmo uma capela dedicada a Santa Ana, padroeira do local, cômodo este deixado para lá, em nossos cada vez mais laicos dias.


Outro local interessante é a antiga sede da Procuradoria, belo prédio em que o escritor Monteiro Lobato foi designado para exercer suas funções de promotor pela primeira vez na carreira. Foi sabiamente transformada em memorial da cidade e em espaço cultural dedicado ao precitado literato.


O resultado da ação do poder público trouxe um efeito colateral excelente. Os investidores privados passaram a valorizar, também eles, a história da cidade, e, como tal, a restauração das casas em sua arquitetura original passou a ser atividade corriqueira. Mais do que nas outras cidades, o conjunto arquitetônico comum está bastante bem preservado.


Foi o que nos contou o Pérsio Moreno, proprietário de algumas das casas de Areias, e que pegou o espírito de conservação da memória original da localidade. Ele convidou-nos a conhecer a casa abaixo:


Ele nos contou que a casa estava em estado de miséria. O custo da reforma foi maior do que a própria aquisição do imóvel. Precisou refazer todo o madeiramento, incluindo o telhado, e boa parte do reboque, além da consequente pintura e substituição das sancas e guarnições.


O resultado ficou excelente, ainda mais levando em conta que a casa é de 1868.


Como não podia deixar de ser, a municipalidade cuida bem também de suas igrejas, sendo que visitei duas capelas (Boa Morte e Senhor Morto) e a matriz, a grandona, que estava em reforma – em uma de suas torres. Abaixo, o contexto geral da praça central:


Sim, também aqui o artesanato é vital para a economia da cidade. Do mesmo modo que em Silveiras, o principal suporte é a madeira, mas é possível perceber uma sutileza: aqui, como temos um pouco mais de pecuária, temos retratados muitos bois e vacas, além de inúmeras espécies de passarinhos, enquanto em Silveiras a utilização do artesanato é mais utilitária. Percebemos isso na Casa do Artesão...


... e no Atelier Maria Lua.


Mas há algo ainda mais admirável de contar, e está relacionado não à intervenção humana no município, mas à condição natural em que está inserido.
Quando se toma o rumo da rodovia dos Tropeiros partindo de Queluz, se o motorista entrar à direita, seguirá para Silveiras; se optar pela esquerda, seu rumo é Areias. Ao adotar esse caminho, uma das primeiras constatações é que, ao penetrar na Serra da Bocaina propriamente dita, a região é assustadoramente alta. Claro que, para alguém que já tenha perambulado pelos Andes ou pelos Alpes, os 2.000 metros dos picos mais altos da Bocaina são ínfima fichinha, mas para quem tranca esfíncteres para a Serra do Mar, a brincadeira é de gente grande.


Também no miolo da cidade é possível perceber essa característica. Na foto abaixo, temos uma visão quase aérea da área urbana, a partir do morro onde está situado o Cristo Redentor...


... que vem a ser, a título de curiosidade, este aqui:
Que sensação é esta, em que nos vemos tão pequeninos diante da natureza? Para Immanuel Kant, chama-se de sublime e é uma das possíveis experiências estéticas.
Kant dispensa apresentações. Elaborou um sistema filosófico completo, trazendo conclusões definitivas para a teoria do conhecimento, fazendo importantes incursões na Ética e até mesmo na Política. Como não poderia deixar de ser, também palpitou na área da Estética. Suas observações mais significativas dizem respeito à diferença entre as sensações produzidas pela obra de arte e pela natureza.

Quando analisamos uma manifestação artística, temos diante de nós um escopo bem definido: uma tela que dá suporte a uma pintura, ou a pedra que foi transformada em escultura, ou o espaço cênico em que se desenvolve uma peça, por exemplo. Nossa atenção tem um limite bem delineado, e com isso conseguimos apreciar o belo. A apreciação da obra de arte está ligada à sua qualidade. Ela é estética porque consegue disparar em nós sensações de prazer ou desprazer, mas como temos um controle sobre a obra de arte, o desprazer pode ser descartado facilmente, com um simples virar de costas ou fechar de olhos.
Agora, quando somos colocados diante da natureza, já não temos essa noção clara de limite. Somos colocados diante de uma infinidade de estrelas, de mar por todos os lados, diante da altura das montanhas, de onde observamos, diminutos, os seres que estão na profundeza dos vales. E mais: do que falei anteriormente, podemos depreender uma realidade estática. E se essa natureza se puser em movimento?

Que tal um cometa que rasga o céu da noite? Ou uma tempestade em alto mar? Ou uma avalanche que arraste tudo à sua frente até o fundo do vale? Que tipo de controle podemos ter sobre todos esses eventos? A sensação também é estética – manifesta-se aos nossos sentidos e afeta-nos os sentimentos. Mas aqui, diferentemente do que acontece com a obra de arte, não há limites, e sentimos toda a nossa pequenez, a nossa insignificância. A natureza já não é mais bela, porque não produz apenas o prazer ou sua antítese; a natureza é sublime.
A obra de arte é qualitativa, ou seja, ela é boa ou ruim. E, para ser boa ou ruim, é preciso interpretar a sua forma, é nela que se expressa a beleza ou sua ausência. Já a natureza é quantitativa: é desmesuradamente grande, ou desmesuradamente pequena. O sublime não é só belo. Ele pode ser terrível, principalmente por ser incontrolável. A natureza é angustiante, dá uma sensação de desorientação, de medo e de espanto. Ele está ligado especialmente à ausência de forma e de limite, e, neste sentido, é o exato oposto ao belo; não como qualidade, mas da possibilidade de percepção. A magia do sublime está justamente na impossibilidade de percebê-lo como um todo. E com isso foge do entendimento. Para tentar atingi-lo, recorremos à imaginação, mas mesmo esta é suplantada, porque não há uma forma correspondente para que possamos fazer uma analogia em nossa racionalidade. 

A única maneira de estabelecer um comparativo é através da violência: a razão e a imaginação são violentadas pela sensação do sublime, da mesma forma que a natureza violenta nossa segurança ao se pôr em movimento. Mesmo quando imóvel, a natureza é violenta em potencial: a rocha prestes a cair, a nuvem carregada para a tempestade, o leve tremor que antecede o terremoto, o gafanhoto que precede a praga. Kant dá, desta forma, duas dimensões da apreciação estética e permite que seja ampliado seu alcance, atribuindo ao prazer da análise um valor positivo (da apreciação desinteressada) e um valor negativo (do temor diante da ausência de controle).

Muito legal Areias por causa disso: a síntese entre o belo de sua arquitetura e o sublime de seu relevo.

Recomendação de leitura:
O sistema filosófico de Kant é vasto, intrincado e todo amarrado entre si. Para compreender algo sobre sua visão estética, recomendo o livro abaixo.


KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

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