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quarta-feira, 4 de junho de 2014

Entre tintas e desencantos - arte e juventude entrelaçadas

Olá!

Por estes dias, recebi um convite para visitar uma exposição de três jovens artistas, que, em comum, tem a causa vegana como filosofia de fundo, tanto para suas vidas, como para suas obras. Estive lá no último domingo. Vejam o anúncio:


Bom, comecemos situando o contexto ou contextualizando a situação. O Broto de Primavera é um restaurante cujo mote não se encerra no fornecimento de comida vegetariana estrita, mas em divulgar uma mensagem ambiental, que se estende ao amor às coisas da natureza, ao equilíbrio entre os elementos vivos do planeta e, no final das contas, a uma nova harmonia na relação universal. Demorei um pouco para entender as diferenças entre os vegans e outras classes de alimentandos engajados, mas pude perceber que, neles, há uma causa muito mais profunda a defender. O endereço do lugarejo está aí acima, e acho que vale a pena conhecer, até para compreender melhor estas diferenças.

Já vou falar sobre a mostra em si, mas, como de costume, conto um pouco dos meus percalços ocorridos no dia. O evento transcorreu em uma movimentadíssima e pouco estruturada rua do centro de São Paulo, como são quase todas as ruas do bairro da Liberdade. Para quem não conhece, trata-se do bairro tradicionalmente ocupado pelos imigrantes orientais, outrora japoneses, atualmente coreanos e chineses. As ruas tem todo um jogo de decoração e alegorias de forma a tornar essa presença bem marcada, como os postes de iluminação, os frontais dos comércios, a dupla grafia e outros que-tais. Estas ruas são quase todas bastante estreitas, mas como era um domingão meio que puxado para o frio, tomei uma decisão pouco ecológica, muito preguiçosa e nada feliz – fui de carro, mesmo morando a uns vinte minutos a pé do logradouro (com um voto de desagravo – eu já estava de carro voltando do mercado). Decisão nada feliz mesmo – não tinha um único canto para encostar meu veículo pouco mais que popular. Pior: havia um concurso público sendo realizado, uma reunião de grande porte em uma das sociedades nipônicas e o hospital do alto da rua São Joaquim estava pleno de gente aflita com suas incômodas gripes (sem contar os habituais frequentadores da feirinha da praça da Liberdade). O resultado só podia ser um – fiquei mais ou menos uma hora dando passo de tartaruga, sem lugar para parar nem mesmo um tico-tico (quem tem mais de 40 sabe do que eu estou falando). Fui parar bem longe dali, andei para caramba. Adiantou muito...
Passons. Em minha santa ingenuidade e na minha percepção turvada pela pressa, esperava algo como a culinária artística japonesa, com seus kyarabens e bentôs chiques e bem arrumados. Nada disso. Em um ambiente quase “underground”, regado a acepipes do estilo, a exposição em si é muito simples, como é de se esperar para três jovens artistas: Azul, Camila Hardt e Maurício Kanno. O que vale, de fato, é observar a sua produção e o que ela tem a nos dizer. E, nesse sentido, posso afirmar que se tratou de uma experiência cultural válida (para minha definição do que há de producente em uma experiência cultural, visite este tópico).

Não pedi explicações sobre o sentido das obras. Isso significa tirar pelo menos metade do seu encanto e de sua abertura. Se fosse assim, cada painel, cada mural, cada grafite, cada estátua, cada instalação e cada intervenção precisariam vir com um manual de instruções. Daí, busquei interpretar por mim mesmo. Se errei muito, peço perdão – exerci minha liberdade, e acho que isso já justifica tudo.
O substrato do que vi colocado nas paredes do restaurante pode ser resumido em uma só palavra: desilusão. E essa desilusão transpõe a própria causa, ou seja, não é restrita ao propósito vegano; ela é extensível a toda essa complicada fase denominada adolescência.

Basicamente, todo jovem carrega em si algo que se assemelha a um insight, um momento um tanto difuso em que se dá o verdadeiro desmame. Esse momento é particularmente doloroso, porque ele ocorre quando os olhos da ingenuidade, que legitimavam todo o universo construído ao seu redor, começam a ficar embotados. Já não é possível discernir claramente o que tem coerência com o aporte que nos foi entregue quando éramos crianças, e o resultado é um estranhamento que nos leva à angústia, uma angústia permeada de dúvidas. No final das contas, esse caminho é pavimentado pela perda: perda da inocência, que leva à perda das certezas, que leva à perda da confiança e, o que é mais grave, que leva à perda de nosso lugar no mundo. A perda é lenha que alimenta a fogueira da tristeza: em cada dia que se passa, há um luto. Chega a ser confortável quando ainda conseguimos identificar a causa deste luto, porque assim podemos arribar os muros da nossa consciência e nos defender. Pior quando a dor já não está na perda de um objeto, de um ser, de uma ilusão ou de uma convicção. É quando chega a melancolia, a perda de nós mesmos. Quem se perde, não apenas abaixa a cabeça; mesmo que a erga, não se reencontra, é mais do mesmo, é tédio, é depressão.
Como a juventude é o instante em que se dá essa sensação de “despertença”, de deslocamento, o equipamento psíquico busca uma saída, que em geral se dá em dois ramos: ou o jovem se aliena, se deixa levar pela correnteza do mundo que o venderam desde o berço – escapa se aprofundando ainda mais, ou seja, escapa negando o valor de suas próprias reflexões, e compra um pacote pronto de ideologia; ou tem uma reação quase que orgânica: é a revolta e o inconformismo. Quem cai nesta senda, em geral procura se exprimir de alguma forma, em uma necessidade quase corporal. Eu escrevi canções de protesto...

“Quem diria que esta terra um dia
Tão dura e crua iria se tornar
O sangue urbano corre nas veias
Nas avenidas, nas ruas, em todo lugar”

Centro da cidade, 1986

 ... de despedida...

“Beira do cais, suor e madeira
E nos corais, anos da vida inteira
Que na orla trazem a febre e o sorriso
E como a maré, vem e vai sem aviso”

Muito além do porto, 1989

... de desespero...

“É o suor das horas mortas de parir um filho morto
É o sangue de formas tortas que rega as flores do horto
É urgir, é rugir prá ter de volta o perdido
É fugir, é sumir sem nunca ter aparecido”

Levógiro, 1988

... e mesmo de rancor.

“Ao léu, o trem que nunca vem
Sem ele, nada me arrasta
E, se não me arrasta, não tenho porque crer no destino”

Largo da Misericórdia, 1989

Depois parei de compor. Voltei-me para a filosofia, prima-irmã da arte, que não tive a competência de levar à frente. Acho que o caminho estético é mais favorável. Com a filosofia, você tem um comprometimento que te prende, o que não acontece com a arte. Este é um campo de liberdade total, não há lugar melhor para expressar tanto a esperança quanto o desencanto. É o que havia nos ladrilhos do Broto. Um grito abafado na forma do Cristo black power pendurado no poste da modernidade. É quase uma pergunta, despida de religiosidade: não seria o Cristo também um rebelde, como todos os jovens que vieram antes e depois dele? Não seria também ele um fruto colhido para consumo rápido, como fazem com todos os Guevaras das camisetas vendidas a R$ 100,00? Não seria ele representado por cada um que carrega a cruz de seu deslocamento, de sua miséria, de desespero diante do mundo que se vê com as costas voltadas mutuamente?


O animal simbionte com o humano, o que representa? Uma perspectiva de comunhão natural, utópica, demasiadamente utópica; ou é o humano que se animaliza, o animal que se humaniza – desnaturamento ou busca de harmonia? De quem deve partir nós já sabemos, tanta gente já ensinou – Aldo Leopold, Arne Naess, Peter Singer, James Lovelock – mas onde começa nossa vontade de reconhecimento do homem como parte integrante do planeta?

 
A principal lição que nos traz um manifesto desse tipo é: Qual é o mundo que estamos colocando para os nossos jovens? Ele espelha nossos ideais ou nós deixamos escapar o fio da nossa história? Era isso o que queríamos quando pegávamos nossos violões para tocar no relento, nossas mochilas para conhecer o mundo, escrevíamos nossos versos para deixar nossas marcas? O que deu errado? Onde nos perdemos? Ou nada disso é real – temos o que plantamos, e plantamos o que queríamos? Era tudo um sonho, devíamos sabê-lo?

Quantas perguntas... Sou simpático à causa dos veganos, ainda que não pretenda aderir a ela. Acho o caminho de fazer da arte um vetor para a divulgação de suas idéias tremendamente mais válido do que um mero proselitismo que se venha a se assemelhar a uma religião. Isso porque existe a aposta na inteligência das pessoas (muito embora essa aposta seja, na maioria das vezes, frustrante). O proselitismo tem o risco de lançar mão de qualquer espécie de argumento para fazer-se valer. Quando ele cai em paradoxo, deixa de ser opção, e trai sua própria bandeira. A arte não. Ela é o espaço autêntico da liberdade, tanto na sua criação quanto na sua interpretação, e ela é sempre autobiográfica – há sempre um pedaço da minha história e do meu pensar em cada obra que crio. Parabéns aos meninos pela iniciativa. Sugirp que sejam persistentes - na causa, com a razão; na arte, com a intuição e talento.
Recomendações de visita:

Quem puder visitar essa pequena mostra não se decepcionará. É breve, é perto, fica no endereço do cartaz acima. Se você não puder ou não der tempo de conhecê-la, fique atento a esses três nomes: Azul Cantù, Camila Hardt e Maurício Kanno. Suas abordagens são interessantes, tem muito potencial. Não vale reclamar de que nossa juventude não produz nada de bom se não procuramos sabê-los.

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