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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Sobre aproveitamento de tempo e o valor da invisibilidade em locais específicos

(O que você faz quando um ato solene é tomado como inutilidade? Eu vou para o banheiro)

“Da privada eu vou dar com a minha cara de panaca pintada no espelho, e lembrar, sorrindo, que o banheiro é a igreja de todos os bêbados"

Cazuza

Olá! 

Já tem um tempão que venho dialogando com vocês aqui neste humilde espaço, meus bissextos leitores, sempre sobre temas que não são exatamente líderes de audiência. Efetivamente, rende mais falar sobre futebol, novelas e conspirações do que epistemologia, metafísica e estética (a não ser que seja facial). É que versar sobre filosofia pressupõe muito estudo, horas de empenho e um estranho lazer com coisas que não parecem lazer, normalmente se assemelhando mais a excentricidades do que a diversão. Quem me lê, talvez tenha de mim aquela imagem do senhor sentado numa poltrona da sala, lendo seus livros espessos à luz de um abajur de pé alto. Ledo engano, triste ilusão, desditosa fantasia. Para mim. Eu estou sempre para lá e para cá, já descontados os dias de serviço, atrás de algum afazer doméstico ou aflição familiar.

Eu divido os cuidados de minha própria casa, versões Sampa e Taubaté, acompanho meus sogros idosos e tenho um filho em cada cidade. A patroa não dá conta de tudo, e é preciso que eu me mova em seu auxílio, muitas vezes. Não passo um dia sem que eu corra, às vezes como um coelho assustado, às vezes como um trem desgovernado, dando toda sorte de nó possível e imaginário em realidades que, como se vê, estão longe de ser tranquilas.

Mas é óbvio que não é só isso. Existem algumas ocupações que não são ocupações. Melhor dizendo, há ocupações que são consideradas puro lazer, e, com isso, são colocadas no fundo do segundo plano. Quando alguém se põe a ler, exceção feita ao ato de estudar para provas, vestibulares e concursos, está em uma atividade que dificilmente será considerada essencial, mesmo no âmbito doméstico, ou, pior ainda, nele. E então você ouve: “Já que você não tá fazendo nada, leva o lixo lá fora”. Pois é, ler é não fazer nada.

Já falei por aqui que a leitura é essencial não só para deleite dos espíritos, mas por questões práticas também. Já me disseram que eu redijo bem, e isso vai além deste blog, muito além. E as razões para isso passam obrigatoriamente por um bom nível de leitura, modéstia à parte, porque nada sai se não entrar primeiro. Para escrever bons contratos, boas petições, bons requisitos, bons artigos, boas aulas, é preciso estar em dia com a leitura, e isso não se faz no momento em que se está escrevendo contratos, petições, requisitos, artigos ou aulas, mas naquela poltroninha com abajur. Por isso, ainda que componha o lazer do contribuinte, uma boa leitura tem esse benéfico efeito colateral: aumentar o patrimônio intelectual.

É possível ler abobrinhas? Claro. O pior é que muitas delas são revestidas de uma capa de verdade que leitura nenhuma deveria ter, e de seriedade que nenhuma crítica pessoal deveria deixar passar imune. Mas aí entramos na regra geral de que o cuidado deve ser do comprador*, e esse traquejo só se pega com o tempo. E há também o saudável costume de se ler textos opostos: não adianta criticar Marx se você nunca leu Marx, para citar um exemplo recorrente, aplicável a qualquer autor. Se prender apenas a quem corrobora suas opiniões é um exercício ruim, de quem não usa a leitura como ferramenta de aprendizado, mas de reconforto interior e fortalecimento acrítico de opiniões. Isso vale para quem se lhe opõe.

Então ler nunca é um ato inocente: ou ele te evolui, ou te estraga, e isso comprova o tal cuidado do comprador que eu mencionei. É possível estabelecer critérios quando o conteúdo se dirigir a formação de opinião, que é esse aí de cima: pegar comentadores de um e de outro lado. Mas isso vai do leitor. Ele deve conseguir meios de ter um continuum para melhores absorções daquilo que quer adquirir. Não faz sentido ler sem isso. É como ouvir música de protetor auricular. Aí, é melhor dormir.

Ora (direis), se afirmas terdes pouca chance de continuidade, por quais caminhos arrogas seguires em tuas pretensas leituras? É, meu imaginário interlocutor, não é simples, de fato. Há muito, aproveito o momento das compras da cara-metade, onde minha função é de burro de carga, mas um burro culto, já que empurrar carrinhos não é exatamente um sacrifício. Mas eu tenho um lugarejo inconfessável onde consigo emendar bom tempo de leitura com baixo índice de perturbação. Sim, ele mesmo: o banheiro.

O hábito não é novo e nem unânime, porque o argumento dos detratores do recinto como sala de leitura tem bons motivadores: é um local que, por maior que seja a higiene aplicada, é sujo. Além disso, não é propriamente confortável como a tal da poltrona acolchoada, e dizem que o costume de ficar por muito tempo sentado em um buraco pode causar prejuízos aos países baixos. E o mais mortífero dos argumentos se aplica em casas onde esse lugar é único: ele é ocupado individualmente, e precisa ter acesso democrático a todos na casa. Mas as razões de uso são igualmente boas.

A primeira é a privacidade. Dificilmente é possível considerar simpático que alguém se tranque em um quarto enquanto lê, mas a principal maneira de se conseguir a melhor absorção possível de conteúdos é esse certo isolamento do mundo exterior. No banheiro, essa privacidade é obtida automaticamente, já que, por suposição, não há como se desenvolver as atividades típicas do recinto em outros lugares da casa. Além disso, não é de bom tom existir companhia nos momentos de uso, pelos óbvios motivos. Embora seja um ato naturalíssimo, praticado por absolutamente toda a humanidade, há um constrangimento reconhecido socialmente de não se fazê-lo na solidão, porque, vamos e venhamos, o produto cheira mal. Conclusão é que ninguém achará ruim que alguém se isole, o mesmo isolamento que a leitura requer.

A segunda é a disponibilidade de tempo. Em tese, quando se vai à casinha, o campo de atividades possíveis fica bastante limitado. Não dá para executar a maioria das tarefas do quotidiano, mas dá para ouvir música, fuçar no celular e… ler! Há clássicos armarinhos de revistas nos banheiros que ficam repletos para cumprir essa tarefa, o que demonstra que não se trata de situação excepcional. Quando eu era um molecão, era moda colocar bidês no banheiro. A questão é que o costume de usar essa louça sanitária, destinada à higiene íntima, não pegou entre os brasileiros, já que na maior parte do tempo temos clima propício para banhos completos, e ela acabava ficando exposta como uma mera marca de época, ou como porta-revistas, o que era mais costumeiro. E ali tinha gibis, jornais dobrados, revistas de variedades e até alguma publicação mais danadinha, oculta lá pela parte de baixo. Tirando tudo isso, é perfeitamente possível, independentemente da existência do bidê, adentrar-se no território com um bom livro, dos mais variados assuntos, inclusive filosofia.

A terceira é correlata, ou seja, se há disponibilidade de tempo em um mundo onde vivemos reclamando de sua escassez, é um período ideal para o uso mais proveitoso possível. Eu não só leio, mas também escrevo no toalete, inclusive componho um bocadinho dos textos que vocês leem aqui. Escrita virtual não pega cheiro, o que é um bem. Também gosto de cantarolar algumas melodias para encaixar nas minhas cada vez mais raras poesias (sim, por vezes também elas são escritas lá), o que é outro clássico do desprezado cômodo, e, com isso, pode-se notar que é também um espaço da criatividade.

Por fim, e principalmente, a invisibilidade. Ao contrário da poltrona, ninguém manda você colocar o lixo na rua se você está na privada. A não ser que você tenha montado acampamento na retrete, e aí a cobrança será pela desocupação, é garantido que haverá um lapso de paz durante o período em que você estiver instalado, pelo simples fato de que estar fora do circuito te deixa imperceptível. O contribuinte sentado na sala está dando sopa, quase reluzente na sua “desocupação”, enquanto aquele em processo de alívio está trancadinho, quietinho, silente, impossibilitado.

Jocosidades à parte, temos diante de nós a triste realidade do que reputamos como importante ou irrelevante em nosso país. Conforme falei em outro texto, ser flagrado em boa leitura durante o serviço deveria ser considerado hora trabalhada, louvável dentro de certos limites, especialmente para quem trabalha com a linguagem. Uma instrução bem escrita, uma especificação bem redigida, uma determinação clara ou uma regra que não deixe dúvida dificilmente produzirá erros, retrabalho ou necessidade de esclarecimentos, o que representa ganho, cara-pálida. Não só de tempo, mas de grana, gaita, erva, vil metal, wampum.

É um contrassenso o que nós fazemos. Reclamamos diuturnamente da educação no país, e mandamos um leitor levar o lixo lá fora. Falamos que as telas são prejudiciais, sem nem ao menos saber se o cidadão não está lendo. Os livros físicos estão condenados à morte, como já aconteceu com os jornais físicos, e a versão para celular tem os benefícios que vão além do romantismo: portabilidade, compartilhamento de uso, iluminação própria, custo. Se alguém diz que você “fica o dia inteiro no celular”, precisaria saber o que você faz com ele. O pessoal que me vê enquanto eu escrevo certamente pensa que estou em grupos de conspiração ou falando putarias com os amigos, mas nada mais faço do que redigir para este blog ou pegar referências para ele. Certo: precisamos ser parcimoniosos e levar o lixo, evidentemente, mas também é preciso reconhecer o valor da cultura e não a considerar objeto de descarte, coisa secundária, de somenos importância. Do contrário, vamos fixar no nosso substrato mental que o hábito da leitura é um demérito e alimentar o círculo vicioso do desprazer pela escola, ou então vamos enaltecer o subterfúgio do banheiro. Eu não sou um bobo que prefere sentar-se na beira de um buraco a uma almofada fofa, mas é fato que ali as coisas rendem. Tentem ler meia hora de Kant sem que haja um mínimo de concentração. É a mesma coisa que ouvir músicas em sânscrito. Desde que não compreendamos sânscrito, bem entendido.

Já ficou bem louco este texto. De vez em quando tenho mesmo vontade de abordar temas mais leves, mas dessa vez eu me superei. Mas não deixa de ser uma forma de ser filosófico falar sobre o quotidiano mais prosaico de todos, aquele que todos precisam apelar, e não é de vem em quando. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Existe nos Estados Unidos um termo chamado de bathroom reading, que diz respeito a leituras leves e rápidas, específicas para serem absorvidas nos momentos de alívio, o que também comprova a universalidade do hábito. Embora não se chegue a tanto, há uma boa série no Brasil que tem a dupla função de ser leitura ligeira e de dar aprendizado a quem vem iniciando no mundo das letras (independentemente do lugar onde se lê), já consagrada e que traz muita coisa boa. 

VV. AA. Para Gostar de Ler. São Paulo: Ática, a partir de 1977.

*Caveat emptor é uma antiga expressão latina que significa algo como “tenha cuidado, comprador”. Ela significa que o cuidado em fazer uma aquisição deve estar do lado de quem granjeia, porque quem vende tem interesses diferentes, evidentemente. Essa expressão hoje parece obsoleta por conta do Código de Defesa do Consumidor, que inverteu a lógica de muitas das relações mercantis envolvidas no comércio, mas foi justamente por causa das intenções espúrias que se fez necessária a legislação. Como eu sempre digo, a necessidade da lei é o fracasso da moral.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: o insólito Santos e a incerteza do alvo para onde apontar os canhões

(Tem momentos em que não sabemos muito bem para onde ir, e a opção de ser ousado ou ser cuidadoso influenciam para sempre o que teremos para nós. Por que não para um time consagrado?)

“A vida é a soma de todas as suas escolhas”

Camus

Olá!

Clique aqui para acessar a série toda

O ano era 1974. As casinhas da Vila Diva eram iguais e diferentes entre si. Diferentes nos formatos, iguais na simplicidade operária de um bairro afastado para uma família vinda da Mooca. Muitas com o reboco caindo, várias com canteiros que serviam de horta, algumas com galinhas no quintal, davam um ar misturado de pobreza e ruralidade, e, com poucas exceções, denunciavam se tratar da periferia da Pauliceia Desvairada daquele complexo momento histórico. Havia as casinhas geminadas feitas em um bloco só, havia o cortiço comprido desembocando na rua de trás, havia cômodos-e-cozinhas em terrenos grandes, mas a mais simples de todas daquela rua era a casa da Maria, na verdade um barraco de madeira nos fundos do terreno ao lado da fabriquinha de rolamentos. Ela morava lá com o marido e os três filhos, todos, à moda de Macunaíma, pretos retintos e filhos do medo da noite. Não eram exatamente miseráveis, mas se sujeitavam a morar num canto extremamente precário para acelerar as obras da casinha, agora de alvenaria, em Itaquera. Naquela época, era quase o equivalente a ir para o interior, mas o terreninho era deles e representava uma conquista e tanto. Não tardaram muito a ir embora, satisfeitos com o teto mais sólido.

Das três crianças, lembro só do nome da Sabrina, a menina que deveria ter uns dois anos a mais do que eu, e que fritava minhocas à guisa de macarrão em suas brincadeiras infantis. Nojento e cruel, mas criativo. Minha mãe dizia que eles eram bonzinhos, embora serelepes, e a Maria era cliente dela nas costuras. Por isso, volta e meia eles estavam lá em casa. Eles achavam engraçada a minha brancura Omo Total, notável até mesmo quando eu me encardia no terrenão onde moravam, e tinham muita paciência com meu infante mau humor, não sei por quê.

Eu sei dessas coisas mais pelo que minha mãe contava do que propriamente pelas lembranças próprias, mas há algo marcante relacionado a esse quesito: é da Maria que eu ganhei o presente mais antigo do qual eu me recordo: duas caixinhas de jogos de futebol de botão, uma do meu Corinthians, e outra do Santos do marido dela, que eu tentei a custo lembrar do nome, mas não consegui. Eram daqueles botões que tinham a foto dos jogadores, e não o escudo do time. Levando em conta o branco dos uniformes de ambos, era meio difícil de diferenciar um do outro; mas falávamos de um molequinho de quatro para cinco anos, e não dá para cobrar primores de propriocepção de uma criatura dessas.

O Corinthians de então era uma banda de um único virtuose. Embora houvesse bons jogadores, é inegável que o mundo parque-são-jorgiano girava em torno do habilíssimo Rivellino, enquanto o Santos ainda era uma seleção completa. Carlos Alberto, Marinho Peres, Clodoaldo, Edu, Brecha, Cejas e o então garoto Cláudio Adão compunham a orquestra do maestro Pelé, majestoso ainda nos seus 34 anos, mas prestes a partir para sua aventura ianque, onde multiplicou a fortuna e arrefeceu o ímpeto. O Santos era uma verdadeira máquina de futebol, conhecido em todo o mundo que tinha o futebol como esporte relevante.

O Santos não é somente o maior do momento em que eu nasci, mas é também o time do sogrão e da patroa, motivo que me levou a assistir vários jogos do time da dita vila mais famosa do mundo in loco, inclusive na própria, um estádio pequeno e bom de ver jogos, com o devido silêncio de quem forma fileiras inimigas. Vi bons jogos: contra a Ponte Preta, contra o Flamengo e contra o América Mineiro, dos que me lembro, sempre com a característica que construiu o Peixe: dois ou três experientes dando guarida para a molecada formada na casa. Essa camisa é da cara-metade, que lhe dei em um aniversário, a mais bela do Peixe:

Esse time, assim como é muito comum, leva o nome da cidade onde sua sede está estabelecida. No momento de sua fundação, Santos (cidade) era a segunda maior em importância no estado de São Paulo. Dona do maior porto do país, ponto de chegada de inúmeros imigrantes que chegaram a Terra Brasilis para cultivar a própria sorte, rica em história e natureza, era um local de excelência, conhecida como Terra da Caridade e da Liberdade. E Santos (clube) tratou de levar seu nome para o mundo. Daí, seus vínculos são viscerais.

Santos (cidade) era provavelmente o principal destino turístico do estado nos meus tempos de criança. Casais faziam lua de mel lá, famílias se juntavam para farofar no final de semana ou concentravam esforços para esticar uma temporada. Exceção feita à região portuária, a cidade é razoavelmente bonita e bem estruturada, com ótimo patrimônio histórico, e tem o mar, por óbvio. Sendo muito próxima à capital, ainda é um passeio relativamente barato. Mas Santos (cidade) tem um problema: não tem mais para onde crescer. Sua área é composta por terrenos ocupados ou protegidos, e os cantos onde poderiam ser construídos novos bairros já estão em regiões de outros municípios. Santos (cidade) virou um local espremido.

O mesmo pode se dizer com relação ao clube. Ele é o estádio, o velho campo da Vila Belmiro, onde pouca coisa mais há. A não ser que se derrube as casas do entorno, com um dinheiro que o Santos (clube) não tem, e o que Santos (cidade) provavelmente não quer, não há como construir um novo estádio que seja maior do que já é o Urbano Caldeira, com amplos estacionamentos (arena do Corinthians) e anexos que atraiam um público novo, como um shopping (arena do Palmeiras). Ainda que o projeto esteja nos seus princípios, e por melhor que seja conduzido, o Santos tem uma arapuca: não há como crescer. Santos (clube) é espremido como Santos (cidade).

A situação do Santos (clube) é sui generis. Mesmo que esteja passando por uma fase um tanto escassa, não deixa de ser um dos maiores times do futebol tupiniquim, mas, ao contrário de seus concorrentes mais diretos, fica situado em uma cidade mediana, se comparada a São Paulo, Rio, Belo Horizonte ou Porto Alegre. Isso faz com que sua maior torcida não esteja na própria cidade, um fenômeno do qual o clube se orgulha, porque transcende a limites, mas que traz esse sufoco. Tem muita gente que coloca como solução o deslocamento da sede principal para São Paulo, onde poderia apresentar o renovado Pacaembu, um neo-elefante branco que implora por ocupação desde que o Corinthians, seu principal inquilino, abriu seu boteco próprio. Na Pauliceia, o Santos teria espaço suficiente para tentar reexpandir sua torcida e sua capacidade de engajamento, haja vista a diferença de tamanho entre ambas as cidades. Poderia ser uma boa ideia, mesmo considerando que abandonar a praia pode não trazer os novos barcos esperados, ao mesmo tempo em que os antigos podem pegar o alto-mar e aportar em outros cantos, mas eu não creio que isso aconteça.

Conto mais uma história. Logo que me casei, fui morar no porão da casa do meu sogro. Era isso ou pagar aluguel. Ficamos bons sete anos lá, tempo suficiente para nascerem os três filhos, suficiente também para comprar um terreninho típico ZL, de 5 x 25, próximo do Jardim Elba, então um grande morro pelado. Era preciso expandir, porque o porãozinho de três cômodos já estava apertado demais. Minha filha mais nova, por exemplo, não dormiu em berço, indo direto para a parte de baixo de um beliche. Eu, um jovem assalariado, não vislumbrava dias tranquilos, mas era preciso dar o passo: construir o que seria o andar de baixo do sobrado e se mudar para lá, a fim de acumular novos recursos e depois erguer os cômodos de cima, no momento em que as crianças não fossem mais crianças. O primeiro passo foi dado, mas não o segundo, porque não havia pernas para dá-lo. Financiamentos estavam fora de cogitação, porque eu já precisava pagar o que havia ficado do andar de baixo. Eu dependia de algum fator externo que nunca veio. A mudança para o Centro foi outra história, para contar em momento mais propício.

Não sou favorável a fazer loucuras. Já tive minha época de falsificar documentos para tocar minha bateria na noite, usar cigarros de altos teores, zerar garrafas de bebida barata e outras pequenas ilicitudes que, somadas, poderiam trazer encrencas. E isso já não cabe mais para quem tem filhos a ensinar não fazerem nada disso. Temos limites razoáveis até mesmo para sermos ousados, para não dizer que sou um conservador bundão. Isso explica por que hoje tenho minhas contas razoavelmente controladas, obrigo-me a vestir paletós em dias saarauís e passo perfumes de preço mediano: o mundo lá fora me quer assim, e eu tenho que atendê-lo ao menos algumas vezes. Triste, mas calcado na realidade. Não posso aconselhar nada diferente para um time como o Santos. Afinal de contas, dá sempre vontade de meter o louco, mas nessas coisas de responsabilidade coletiva, não se arca sozinho com as consequências.

É um momento em que o Santos (clube) precisa lidar com cuidado a questão de sua expansão e continuidade. Não é sempre que brotará uma geração que vai resolver seus problemas imediatos. Não acredito em obras do acaso, mas em competência para gerar bons jogadores, mas é certo que existem safras, como de bons vinhos e de excelentes cafés. Por motivo A ou motivo B, há momentos em que os talentos não surgirão, e um clube com base sólida não poderá se fiar em soluções transitórias. Mas ele tem margem de manobra maior do que Santos (cidade). Não dá para a Terra da Caridade e da Liberdade simplesmente levantar acampamento e procurar terreno maior: ela É o seu território. Já o clube não tem esse mesmo limitador. Pelo menos não nesse sentido, já que ele carrega as cores, a história e a vontade de continuar representativo, e isso pode ser em mais de um lugar.

Notem que o laço não pode se transformar em grilhão. Em um sonho idealista, Santos (clube) ficaria em Santos (cidade), especialmente se fosse possível dois fatores: não eliminar patrimônio histórico e ambiental, e estar bem próximo da rodovia, para facilitar acesso dos torcedores vindos da metrópole. Como sabemos que terrenos não dão em árvores, e árvores dão em terrenos, temos a dimensão do problema: não vai dar para construir sem destruir.

Então eu acho que há um momento talvez em que nada resta a não ser baixar a cabeça e aceitar o próprio destino. Reformar a Vila não me parece uma boa ideia, sendo o ideal pegar o prontíssimo Pacaembu e tentar fechar um acordo razoável com seus arrendadores. Basta lembrar que o bairro é protegido por lei dos excessos de ruídos, o que fará com que não sejam os shows sua principal fonte de renda. Como palco de futebol, um acordo com o Santos seria seu melhor caminho, com sua grande torcida, sua certa familiaridade com o time e com a falta de alternativas, visto que os times do trio de ferro já possuem suas casas. Parece a mim que é possível fixar ótimas bases para esse uso, tornando o reavivado estádio da Capital sua sede oficial. Com isso, toda a sua atividade, incluindo diretoria e demais esportes viriam a reboque, e a velha Vila permaneceria lá, para jogos menores, para os momentos de reforma do gramado, para lembrar da sua origem.

A vida é isso, um eterno encarar de muros erguidos por ela mesma, e é preciso saber fazer limonadas com os limões que temos. Lá da praia ainda é possível pegar bons ventos, que impulsionam para o alto da serra e permitem que a história se mantenha, tão grande quanto for possível, quanto já foi um dia. E que esses bons ventos sejam para todos!

Recomendação de leitura:

É um livro que eu dei para o sogrão por ocasião do centenário do Peixe.

JATENE, Celso. 10 Décadas. A História do Santos Futebol Clube. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2012.

E um post-scriptum: ficou chato à beça esse negócio de Santos, cidade e clube. Mas eu tentei tirar e ficou tão confuso que eu resolvi manter, sacrificando a fluidez do texto para obter um pouco mais de clareza entre os sujeitos. Desculpem-me se ficou maçante. A gente vive e aprende.



terça-feira, 21 de outubro de 2025

Sobre a acusação de que Nietzsche foi o profeta do nazismo

(Uma acusação pesada recai sobre nosso desafiador filósofo. Será que ela faz sentido?)

“O Estado, nas mãos destes últimos [Obs: déspotas militares], tenta antes, tal como o egoísmo dos proprietários, reorganizar tudo em seu proveito e se tornar o liame e a pressão de todas estas forças antagônicas. Quer dizer, ele deseja que os homens pratiquem com relação a ele o mesmo culto idólatra que há pouco tempo eles consagravam às Igrejas”

Nietzsche

Olá!

Quando eu estava na transição da infância para a adolescência, morava em uma rua que ainda era de terra. Ficava à beira do Córrego da Mooca, local onde hoje é a bem conhecida Avenida Luiz Ignácio de Anhaia Melo, nome longo para uma via mais conhecida no vulgo como “Nhamelo”, lotada de agências de veículos e correlatos. Era ainda uma época muito tranquila naquela região, com muita coisa por fazer nas ruas desestruturadas, cheias de fossas e água que despinguelava ladeira abaixo, principalmente da enorme fábrica de linhas que dominava a parte alta do bairro. Enchentes eram uma constante a cada verão, especialmente nas casas do baixio, mais próximas ao antigo leito do pequeno rio, mas igualmente tentando obedecer ao mandato da natureza que o mandava cuspir sua água já pútrida para além de suas bordas quando São Pedro estivesse especialmente irritado.

Como ainda tudo era meio desorganizado no loteamento que um dia foi composto de chácaras, era preciso muita mobilização popular para conseguir algumas coisas, porque eram tempos em que o poder público era ainda menos presente que nos dias de hoje. Por exemplo: praticamente montamos barricadas para impedir as obras de calçamento da rua sem que antes fosse instalada a rede de esgoto.

À frente disso tudo, duas personalidades que se consagraram na rua: Seo Toninho e Seo Arquimedes. Ambos eram chamados de “prefeitos da rua”, por motivos distintos. O primeiro, por tomar a frente de todas as demandas daquela pequena comunidade. Prático contábil, conhecia leis e repartições, e, sendo assim, conseguia adiantar o conhecimento público, aonde ir, a quem procurar, quanto tempo esperar, essas coisas. Já o segundo era um senhor aposentado, que vivia de dar palpites, sobre qualquer assunto: construções, carros, futebol da molecada, condutas morais das mocinhas… até em vestimentas ele tinha sua opinião abalizada. Mas que estava sempre presente e disponível.

O Seo Arquimedes era quase uma figura cômica, no melhor dos sentidos. Ninguém levava ele muito a sério, porque metia seu nariz quase sempre por aquele delicioso vício dos fofoqueiros de se inteirar da vida dos outros, mas sem as maldades dos futriqueiros que fazem das intrigas seu hobby. Era o prefeito porque conhecia todo mundo daquela ladeira e conversava com todos com aquela lábia de quem vai te pedir um cigarro no fim do papo, mas que se prontificava a receber uma carta ou receber a entrega do mercado, até porque isso lhe dava elementos de pesquisa.

Já o Seo Toninho era um homem muito mais sério e reservado, mas era o prefeito por causa da sua sanha de ordenação e de bom funcionamento da rua. Não se furtava a ajudar nos impostos de renda da vida ou de indicar o lugar certo onde se deveria conseguir um documento. E não abaixava a cabeça quando via que alguma coisa ia ser malfeita. O episódio do esgoto foi assim: quando a prefeitura quis instalar as calçadas na rua, todo mundo ficou feliz, porque o asfalto viria na sequência, como era óbvio. Quem vive em ruas de lama sabe como é alvissareiro a chegada das máquinas de piche, porque isso significa que os rapapés seriam aposentados, que os pés não precisariam passar pelas mangueiras e que os quintais teriam apenas água nas chuvaradas. Mas as casas todas eram guarnecidas pelas fossas, já que a tubulação do esgoto ainda não havia sido colocada. Casmurro como sempre, ele procurou reunir toda a rua para dizer que isso significava que o asfalto teria que ser quebrado quando a Sabesp resolvesse fazer o serviço, com a consequente farofa mal socada e os buracos nas portas de nossos quintais. Quando os caminhões baixaram para o trabalho, os moradores sentaram-se nas beiras da rua, para impedir a ação da prefeitura, Seo Toninho à frente, e somente após reuniões e mais reuniões na administração regional, Sabesp, Emplasa e etc a coisa pegou o rumo e feita na ordem certa. Como essa, várias outras mobilizações foram promovidas pelo diligente vizinho.

Ser prefeito da rua tem seu custo. O dito popular diz sabiamente que não se pode agradar a gregos e troianos, e tanto Arquimedes quanto Toninho tinham seus detratores, que, por vezes, prevaleciam. O primeiro tinha a fama de maledicente, de espalhar somente fama ruim e essas coisas que se contam de quem está na rua para passar o tempo. Já o segundo tinha fama de turrão, de fiscal da vida alheia, de pentelho que não deixa ninguém quieto em casa. São famas injustas, mas que, uma vez pespegadas, grudam mais que visgo de jaca mole. É injusto? É, mas essa é a vida como ela é.

Não deixaria de ser assim para os próceres do pensamento. Motivos há vários: adversários que querem menosprezar o outro, pura e humana inveja, ou, o que é mais comum, o incômodo causado por uma posição verticalmente oposta a muita gente. E o demérito aplicado, na maioria das vezes, vem de forma falaciosa, como ocorre quando apelamos para o ataque pessoal, para a má companhia ou, de uma forma mais específica e amplificada, para uma redução a Hitler. Isso é algo que pesa sobre um dos mais citados autores deste blog, Friedrich Nietzsche.

A questão é que tudo o que Nietzsche falava causava incômodo, e ele tinha plena consciência disso. Cutucou a tudo e a todos, desde o próprio povo alemão até os religiosos em geral, com especial ênfase nos cristãos. Desagradou filósofos que viam Sócrates e Platão como padroeiros, sem deixar para trás racionalistas e empiristas, cada um a seu modo. Deu tapas na cara da formação da ética, especialmente nos “homens de boa vontade”, e jogou todos eles ao campo do seu niilismo peculiar. Em suma, desconfiou de todo o pensamento ocidental e colocou isso em voz alta. É, portanto, aquele tipo de pessoa de quem ninguém gosta, mesmo que lhe seja reconhecido o espírito arguto e a ousadia em colocar suas opiniões sem nenhum tipo de parcimônia. Tipo aquela coisa: lá vem o Seo Toninho reclamar de alguma coisa, lá vem o Seo Arquimedes futricar na minha vida. Mas daí a ser considerado o filósofo do nazismo vai alguns metros a mais, e é preciso entender se isso faz sentido.

Enquadrá-lo em escolas não é tarefa simples, e o mais normal é tratá-lo como um voluntarista, por ter no substrato do seu pensamento a vontade de potência, princípio vital que move o mundo. Mas não deixa de ser uma definição simplificadora, e ele vai contra tanta coisa que mesmo outros voluntaristas, como Schopenhauer e Freud, não são facilmente acomodáveis aos seus cânones. Como a vontade de potência pode ser traduzida como vontade de poder, é mais ou menos simples cair na cilada de jogar isso para o campo político.

É bastante comum, em especial até o final do século passado, que Nietzsche seja considerado uma espécie de precursor do nazismo. Isso normalmente é vinculado à sua visão do super-homem, tema que abordei recentemente. Tendo dito que o novo homem deveria transvalorar todos os valores, e estabelecendo que esses valores derivam da moral que se praticava naquele momento histórico, que incluíam um rumo para a democracia, reconhecimento de direitos humanos e etc, é encaixável a narrativa de que Nietzsche se contrapunha exatamente a esses valores, que deveriam ser sobrepujados pela via da força.

A acusação não é nova, e não brota do vazio. Nietzsche, no frigir dos ovos, dá alguns bons motivos para que se exerça uma vinculação a regimes que não prezem pela piedade, mas, uma vez colocados em um contexto amplo, e observando algumas falsificações de suas obras póstumas, percebe-se que tal afinidade não existe. É preciso se dispor a estudar um pouco da história dessa personalidade complexa e de sua escrita difícil de compor linhas.

É certo que Nietzsche é detestado pelos religiosos de um modo geral, porque a proclamação da morte de Deus passa do ponto da crítica para essas pessoas, bem como de todo o desmonte dos critérios morais que, sabemos, toda religião carrega. Daí, toda sorte de acusação chega sobre o gajo. Já vi em algum lugar perdido por aí que um sifilítico não tem nenhuma envergadura para apontar o que alguém tem o direito ou o dever de fazer. É aquele velho espírito cristão em ação.

Mas em primeiro lugar é preciso colocar as coisas em contexto. O nazismo, uma derivação direta do fascismo italiano, era uma vertente política entre outras nos princípios do século XX. Embora seu discurso fosse belicoso, não havia contra ele as redes de proteção que possuímos hoje, após a ocorrência da experiência traumática. Dizer hoje que o nazismo não terminaria bem é engenharia de obras prontas, e não era possível saber onde ele ia dar. Sendo assim, não dá para comparar a visão que temos hoje sobre o fenômeno político e a esperança que os alemães nele depositavam àquela época. E é bem fácil de se dizer contrário depois que tudo já aconteceu. Eu lembro de quando o Fernando Collor foi eleito. Hoje, é muito difícil encontrar quem tenha lhe votado, mas o fato é que ele foi eleito, o que demandou mais da metade dos votos válidos, ou seja, eram inúmeros. Seu discurso falava em modernizar um país que estava estancado no passado, o que, sejamos francos, era atraente no momento. Sendo um político pouco conhecido, mas que teve sua candidatura alavancada pela mídia, compreende-se que tenha chegado onde chegou. O processo com o nazismo foi semelhante, embora muito mais complexo e historicamente prolongado.

É preciso dizer que os discursos de Nietzsche não eram inocentes pregações de Madre Tereza. Ele batia muito duro na moral vigente, o que incluía as predisposições políticas do momento. E a cooptação de uma base filosófica que falava sobre um homem que ia para além dele mesmo, a quem era atribuída uma vontade de poder como base ética para sua ação poderia, de fato, resultar em regimes baseados na força.

Mas isso é ilusório e vai de encontro com o pensamento nietzscheano de fundo. Não gosto da tradução de “vontade de potência” por “vontade de poder”. Ela ajuda a cunhar essa impressão de que somos movidos por uma vontade de pisar sobre os outros, de ser tirânicos e de sobrepujarmos os anseios alheios em nome dos nossos próprios, o que não é uma boa interpretação. Com exemplos, podemos atilar melhor o que o termo quer dizer.

Quando eu tinha meus dezesseis anos, entramos eu e minha banda Exílio em um festival do colégio Anchieta. Era um evento meio grande, e o pátio estava cheio como um ovo. As bandas foram tocando e chegou nossa vez, os penúltimos. Mandamos nossas três músicas e voltamos para o escritório-modelo, que estava fazendo as vezes de camarim. Lá, fizemos a nossa autocrítica e concluímos que não ia dar: a mesa de som mais atrapalhou do que ajudou, o som estava muito poluído e não saiu como ensaiamos exaustivamente. Quando fomos para o resultado, esperávamos no máximo um terceiro lugar, para pegar uma medalhinha e deixar ela pendurada em um dos clamps da bateria. Passou o terceiro, passou o segundo, e estávamos já sinceramente indo embora. O momento de anúncio do vencedor (nós) foi estranho. De tanto achar que seria chamada outra banda, pensei que tinha ouvido outra coisa. Só me toquei por completo ao ver os camaradas pulando.

Subimos novamente ao palco para pegar o troféu e receber os aplausos, e repetir a música vencedora para a plebe que nos consagrava. A vontade era de tocar aquela música eternamente. De ver a galera pulando sem parar, de alongar os solos ao infinito, propondo novos arranjos e entrando em catarse com a audiência, em uma relação semelhante a um gozo sexual. Não se trata da figura besta que diria ser satisfatório “morrer naquele instante”. Não. Era um momento para durar pela eternidade. ESSA é a vontade de potência de quem Nietzsche tanto falava, especialmente pela via do eterno retorno, uma de suas alegorias mais célebres. Um impulso vital que busca fazer um ser humano se superar continuamente em uma oportunidade única de existência. O super-homem é, portanto, aquele que aceita a vida com tudo o que ela tem dentro e sem se importar se há consolação ou continuidade fora dela. O que importa é explodir em potência.

Ocorre que Nietzsche morreu e deixou um legado confuso, uma obra sem nenhuma linearidade e escritos inéditos, que, geridos pelos seus familiares, transformou-se em ouro para causas simpáticas ao emergente nazismo. Ele tinha, de fato, opiniões controversas sobre hierarquia de raças, ainda que não fosse um antissemita ou coisa parecida. E isso era gasolina perto do fogareiro nazista. Ele tinha uma irmã, Elizabeth Förster-Nietzsche, que lhe sobreviveu por décadas, e que era aderente à política nazista. Ela manipulou seus escritos póstumos de modo a vinculá-lo fortemente ao nazismo pronto e acabado.

Mas, embora Nietzsche não tenha se ajudado em certas polêmicas, o fato é que não pára em pé a afirmação de que seu pensamento tenha dado base ao nazismo, e não digo isso para fazer uma passagem de pano, e não farei cherry pickings para demonstrá-lo, porque a questão era estrutural. Se há alguma forma política que Nietzsche apoiaria, certamente seria o liberalismo, o que era o oposto do que os seguidores de Hitler preconizavam. Senão vejamos.

A vontade de potência e o super-homem são conceitos centrais na filosofia de Nietzsche. Um deriva do outro, e somente são realizáveis quando pensamos no nível pessoal. Embora constituamos comunidades e sociedades, o fato é que a vontade de potência é sentida e exercida por qualquer um de nós, a nível de indivíduo. A lógica da moral de rebanho vem justamente do oposto: da aniquilação das vontades. Um viver social corresponde, sem nenhum tipo de dúvida, a um mecanismo franciscano – é dando que se recebe. Isso não significa somente a ideia fisiológica de nossos políticos, mas de que é preciso abrir mão de individualidades para se exercer a vida em grupo. A tendência é que, para cima e para baixo, sejam aparados os excessos, de modo a espremer as individualidades em uma média que vai resultar no escopo socialmente aceito. É contra isso que Nietzsche luta. O Estado é, para ele, um castrador que nos faz renegar a vida e os ânimos, a vontade de potência. É no indivíduo que o super-homem eclode, e não nas coletividades.

Isso nos informa que Nietzsche era um individualista empedernido, contrário a todas as formas totalizantes, da qual o Estado era a mais bem acabada de todas. Ora, qual a frase mais célebre do fascismo, que deu toda a base para o nazismo? Se você disser que é “tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”, estará correto*. Não se trata aqui do Estado como veem os idealistas liberalizantes, mas como a expressão da unidade de uma nação. O fascismo e o nazismo tinham essa ideia de Estado forte perante os demais Estados, ou seja, o nacionalismo à flor da pele. Há inclusive muita confusão que tolamente busca colocar o nazismo no âmbito da esquerda, por não compreender que a função do Estado em ambas as ideologias divergem figadalmente: enquanto para a esquerda o Estado é um provedor que busca arrecadar da classe mais abastada para distribuir aos desfavorecidos, na extrema-direita ele é um agregador de poder que garante o status quo exatamente das classes dominantes. Nietzsche podia ser acusado de qualquer coisa, mas de ter adesão a um Estado forte vai contra todo o seu pensamento mais basilar. O Estado, especialmente nas ditaduras, promove um culto à personalidade que colide com a ideia de independência do indivíduo promovida pelo übermensch, que não funciona com uma linha hierárquica. Mas o próprio Estado é, para Nietzsche, um reprodutor da idolatria típica das religiões. O Estado, mesmo em uma concepção materialista, ocupa o lugar deixado por deus: poderoso, onipresente em seu âmbito, determinante, delimitador. Notem como essa afirmação soa contraditória em relação a um Estado fascista:

“Mas aqui experimentamos somente as consequências desta doutrina recentemente pregada em todos os lugares: que o Estado é o fim supremo da humanidade e que não há para o homem deveres mais elevados do que servir ao Estado; reconheço nisso não uma recaída ao paganismo, mas à estupidez”.

Parece que ele está falando exatamente do fascismo, porque ele já sentia em sua época uma propensão surgindo. Então não parece que faça muito sentido que seus escritos póstumos carreguem tanto nas cores da ideia de uma superioridade ariana e da concretude de um renascimento alemão sob um Estado forte. Essas eram, na verdade, ideias de sua precitada irmã, que, de posse de seu legado, procurou transformá-lo nesse profeta do nazismo.

Elizabeth Nietzsche não era exatamente uma personalidade confiável. Seu marido era muito próximo a Richard Wagner, músico de renome e notório antissemita que forjou uma boa parte da ideia de superioridade ariana. Fundaram uma fracassada colônia no Paraguai onde esperavam criar o embrião do que seria uma “Nova Alemanha”, um enclave ariano em terras tropicais, mas o próprio casal fundador encontrou uma terra difícil de agricultura, e tentavam reger aquele pedaço de terra com mãos de ferro e obtendo proveitos com a exploração de trabalho de outros alemães, com fraudes financeiras. Além disso, após a morte do célebre irmão, ela falsificou trinta de suas cartas para lhes dar caráter adequado às práticas nazistas, reteve a edição da autobiografia Ecce Homo e reescreveu várias passagens do livro “Vontade de Poder”, com o mesmo intuito. Somente após sua morte, em 1935, a academia pode acessar as obras originais, atestar as modificações e recompor os originais.

Conclusão: a vinculação de Nietzsche com o nazismo é uma forçada de barra de quem não gosta dele, seja por suas ideias antitradicionalistas, seja por sua retórica agressiva, seja por seu bigode mal escovado, mas também não dá para dizer que ele é inocente da acusação, no sentido de que, de fato suas opiniões são polêmicas, e de que quem senta na janela está mesmo sujeito a tomar tapa no traseiro. Não deixa de ser uma forma de se atirar no abismo da vida. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É o terceiro libreto dos ensaios de Nietzsche, onde ele foca mais amiudadamente a questão do Estado.

NIETZSCHE, Friedrich. Schopenhauer como educador. Considerações extemporâneas III. São Paulo: Martins Fontes, 2020.

*È meglio vivere un giorno da leone che cento anni da pecora é uma outra frase bastante conhecida do fascismo, e, aparentemente, mais conectável com o pensamento nietzscheano, mas definitivamente não é a mais conhecida da corrente. Mas coloquei aqui para que se perceba como é fácil de fundir ideais quando se tem intenção disso.



quinta-feira, 16 de outubro de 2025

O café filosófico do quotidiano – a tatuagem fala mais para si ou para os outros?

(Fazer uma tatuagem é parte da moda, não há dúvida. Mas é só isso? Quando bem pensada, a quem ela fala?)

“Não se tornam as vidas humanas mais legíveis quando são interpretadas em função das histórias que as pessoas contam a seu respeito?”

Ricoeur

Olá!

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Experimentar significa caminhar de um extremo para o outro. Muitas vezes insistimos em um ponto que visivelmente não funciona, e mal percebemos que é no outro canto que está a resposta. Plantas apodrecidas pedem que se coloque menos água. Pressão alta demanda menos sal, e vamos caminhando da salmoura para o insosso, com todas as escalas no meio da via. Sendo assim, nossos passos são dialéticos, não porque todas as vezes que eu tenha um fracasso eu precise ir para o lado de lá mais extremo possível, mas eu aponto meu nariz para ele. Se sou gastão, preciso ser econômico; se sou guloso, procuro pela temperança e, se sou doido, procuro pela sanidade, seja lá o que isso for. É isso o que quero dizer.

Isso é aplicável a café? Sim, sem dúvidas. Toda experimentação é válida na busca do café perfeito, que sabemos ser impossível, mas, tal qual deve fazer qualquer ciência, não se deve desistir de tentar a perfeição. Se eu uso temperaturas baixas, dou uma guinada para sua elevação e vou modificar essa variável. Se o líquido está fraco, apertamos a moagem. Se há pouco corpo, vamos partir para mais contato, através de uma infusão. São tantos e tantos fatores que justificam esse pequeno universo como modelo de pesquisa científica. Os detalhes, por vezes, fazem a diferença.

Um deles está na aderência do papel ao porta-filtro. Há escolas que preferem o contato mínimo entre ambos, para melhorar a circulação de ar no sistema e, consequentemente, acelerar o fluxo, enquanto há outras que preferem o contrário: aproximar ambos para tornar mais regulares as superfícies de contato, com o mesmo objetivo. Quem trabalha com os dois lados é a japonesa Hario, que tem no V60 sua joia da coroa, e que trabalha com a primeira perspectiva. Para a segunda, há o irmão menos famoso, que compartilha muitas de suas características, mas oferece uma opção na questão do contato – o Mugen.

Enquanto o V60 tem ranhuras que isolam filtro e porta-filtro, o Mugen procura canalizar o escoamento para as poucas ranhuras em forma de estrela de seu interior. A promessa é que essa arquitetura permite que a água seja passada em um ataque único, sem necessidade de blooming ou de parcelamento de despejos.

O objetivo é exatamente diminuir o fluxo de água e combinar características de métodos percolados e infundidos, produzindo bebida com mais corpo, sem, no entanto, extrair mais amargor.

O suporte excêntrico e a cor cinza escuro dão uma elegância ímpar ao método, mas sua característica mais inconfundível é o conjunto de ranhuras interno, que coleta a água dos diferentes pontos e a centraliza para o escoamento.



Nome do utensílio: Porta-filtro Mugen

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Média

Dinâmica: Insere-se um filtro no porta-filtro e despeja-se água antes de se colocar o pó, para uma boa adesão do mesmo às paredes do filtro. Fazer o ataque todo de uma só vez, para que o efeito desejado seja produzido.

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio

Olho para aquele formato de estrela bonito e lembro de uma tatuagem muito comum, que eu gostaria de ter feito, quem sabe ainda? Eu queria tatuar uma rosa dos ventos, espécie de símbolo consensual dos viajantes, mas, embora eu tenha feito várias séries de textos versando sobre meus rolês, o fato é que eu não posso afirmar que minha vida se pauta nas idas e vindas para lugares variados, por um motivo muito simples: falta de recursos. Conheço um monte de gente que faz maluquices financeiras para ir à Europa, Caribe, Estados Unidos, Japão. Eu, por exemplo, nunca saí do país, e não tenho grandes sainhas disso, já que há muuuuuuuito o que ver em Pindorama. Mas, mesmo aqui, não sou o que se pode chamar de viajante contumaz. Por isso, não percebo muito sentido em eternizar uma imagem no corpo que, apesar de esteticamente bela, não diz muito sobre mim para mim mesmo. Meu baixo e minha bateria sim, evocam meu passado e nelas vislumbro meu futuro, então olho para elas e percebo que tem significado para mim.

Poucas coisas mais poderiam caber na minha pele no sentido de ter sentido. Alguma coisa sobre café seria óbvio, como fez a patroa, com seu ramo no antebraço e xícara no braço:

Mas ainda não cheguei a concluir o que eu poderia colocar. Um dos meus métodos favoritos estilizado é uma hipótese, como uma Chemex ou Clever. As ligações iônicas da cafeína são muito manjadas. Talvez sua fórmula química, não sei. Outra hipótese estaria ligada ao trabalho, mas eu o detesto, então deixa para lá. Filosofia? Pode ser, ainda não pensei a fundo. Corujas são muito batidas, então precisaria pensar em alguma coisa, talvez a página de fundo deste blog… acho que ficaria bom. Então, por enquanto, vou ficando com meus artigos musicais, minhas pautas, meus trechinhos de canções.

Nossa, esse papo já está parecendo de maluco. Vou centrar as ideias em uma única pergunta: por que as pessoas se tatuam?

Não é um único fator. Quando você olha as poucas estatísticas disponíveis, e levando em conta que se trata de pouco confiáveis levantamentos de internet, percebe-se que os brasileiros são um dos povos mais tatuados do mundo. Algo em torno de 35% das pessoas possui ao menos uma tatuagem gravada no corpo, e isso é um negócio realmente empírico, bastando sair na rua para constatar. A coisa muda radicalmente de acordo com a idade. Excetuando-se os menores de idade, quanto mais baixa a faixa etária, maior é essa proporção, invertendo-se a lógica quando os cabelos rareiam e a barba embranquece. Na minha faixa, provavelmente algo em torno de 10% é o número mais imaginável. Ou menos.

Mas as regras não são tão estritas. Minhas irmãs, por exemplo, têm apenas um ano de diferença entre elas, mas a mais nova tem umas vinte espalhadas pelo corpo, enquanto a mais velha tem uma só. Por isso, tentar delinear regras não é simples, então pensar nos supostos 77 milhões de brasileiros rabiscados é um exercício mais fácil do que ficar delineando séries e classes. De qualquer forma, é um mar de gente, há de se convir. E não há como deixar de se discorrer sobre o óbvio: é moda. Resta saber se é modinha.

Uma maneira de entender isso é olhando as próprias tatuagens. Certos desenhos se repetem em determinadas épocas, como os atuais leões realistas e as mandalas. Houve o momento das estilizações, dos motivos tribais, das explosões de cores, dos motivos afro. Essa variedade demonstra que talvez as tatuagens tenham vindo para ficar, como um adorno de pele semelhante aos brincos, usados há séculos por mulheres e há décadas por homens modernos. Como temos ao menos trinta anos de crescimento das tatuagens, parece que vieram para ficar, com as devidas flutuações. Por isso, é moda, no seu sentido mais permanente de ter sido absorvida pelos costumes. Modinha são os desenhos do momento, já sendo modificados, para o desespero de quem entrou na onda.

Como é impossível prever o futuro, desloco o foco para uma questão mais filosófica. O que queremos dizer com uma tatuagem? A quem queremos dizer? A nós ou aos outros?

Talvez seja uma questão de identidade. Sem cair no âmbito da insatisfação consigo mesmo, há uma casca exterior que nos é característica e há uma quota de formatações internas que podem ser facilmente detectáveis, e outras são mais difíceis de externar, são autenticamente interiores. Por exemplo, sabemos de imediato que uma pessoa é negra, alta, peso em dia, olhos grandes só de ter um contato visual. Para saber seu jeitão de ser, precisamos de algumas horas de conversa, e aí teremos seus graus de eloquência, timidez, vaidade e così via. Já para puxar algo que lhe seja verdadeiramente íntimo, talvez jamais saibamos. Ocorre que, por vezes, há uma necessidade interior de se por isso para fora, mas que não se encontra bom meio para tanto. Há maneiras de fazer isso: escrever um poema, cantar uma música, fazer uma tatuagem - eternizações e exteriorizações de interioridades.

O ato da tatuagem inclui uma dose de sofrimento. É caro, é doloroso e é permanente, a não ser que se queira enfrentar reversões igualmente caras e dolorosas. Então temos certa porção sacrificial, o que dá uma ideia de rito de passagem. Isso acaba me lembrando aquele momento da juventude em que começamos a fumar, uma mostra (tola) de que estamos nos descolando de nossos pais e tomando decisões próprias, o que caracteriza a formação de uma nova identidade. Ter uma tatuagem externa isso, demonstra algo de nosso caráter, primeiro pela coragem de fazê-la, depois por expor um símbolo. Modinhas saem um pouco desse contexto, mas uma imagem bem pensada conta um pouco de nós aos outros e, quem sabe, a nós mesmos.

Só que o que nos identifica não é único. Existe uma camada mais externa e evidente, que está ligada a nossas aparências e características permanentes, aquilo que sempre temos, independentemente do tempo. Alguns fatos meus nunca vão mudar, como eu ser brasileiro, ser da espécie humana, e, portanto, ser bípede implume das unhas chatas, dentre outras coisas que nunca mudam com o decorrer do tempo. É o que chamamos de mesmidade, ou a identidade que resiste ao tempo.

Mas não somos sempre os mesmos. Crescemos, envelhecemos, caminhamos para a morte, e, nisto, muito muda. Aquele velhinho que está subindo duramente a ladeira com sua bengala já foi um gurizinho que perturbava seus pais mesmo de madrugada. O que faz com que ambos sejam o mesmo ser?

Mais ainda: mesmo que todas as histórias dos seres humanos sejam, na média, mais ou menos semelhantes, cada um de nós é único. Cada um de nós deixa um legado de sua própria história. O que é isso que nos deixa iguais a nós mesmos dentre o mundo todo e no decorrer do tempo?

Vejam bem. Quando queremos falar a palavra “mesmo” em latim, podemos usar duas formas. A mais comum é “idem”, de onde retiramos uma palavra muito significativa do que estamos expondo aqui: identidade, a qualidade de ser igual a si mesmo, a se tornar único. Mas, como acontece em tantas outras línguas, também no latim temos um sinônimo: ipse. Ela está em termos como ipsis litteris ou ipsis verbis, respectivamente para representar literalidade escrita ou falada. Mas a sinonímia entre idem e ipse não é absoluta, como acontece com mandioca e aipim. Enquanto o idem é aquilo que é igual ao longo do tempo, o ipse representa aquilo que é igual em nós APESAR do tempo. Sabemos que não seremos sempre iguais no físico, nem no psicológico, mas teremos sempre algo que nos diferenciará no mundo, algo só nosso. A ipseidade nos particulariza e nos mantém iguais a nós mesmos.

Segundo um dos seus maiores defensores, Paul Ricoeur, a ipseidade se sintetiza nas narrativas. Um exemplo que eu posso dar está em um jornal. A mesmidade estaria na notícia – imaginando ser possível que a mesma seja desenviezada. O relato seria um fato contado como ele foi: onde, quando, como, porque e para que. Já a ipseidade seria a análise do fato, que já vem banhada pelo conhecimento e opinião de quem a profere. Notem que uma vem como uma marca indelével clara, um fato descrito, quase um axioma sobre um determinado fenômeno. Já o segundo vem carregado de cultura e subjetividade, mas que também é uma marca pessoal, uma visão de mundo que fica estampada na história daquele indivíduo. A ipseidade é, em boa parte, isso: as narrativas surgem da história de cada contribuinte, dos aspectos que lhe construíram e que não se apagam mais, ainda que mudem com o decorrer do tempo. Ambas, identidade e ipseidade perduram no tempo, uma no aspecto tangível, outra no aspecto narrativo. De fato, não somos somente nossos corpos, mas também nossas histórias. E, com isso, temos que admitir que somos tripartites, sendo formados por mesmidade, ipseidade e alteridade, sendo que a do meio está aí por ser meio que “ensanduichada” entre nossa realidade própria e pelo que os outros nos formatam. Em miúdos: já temos coisas que somos (idem) e somos moldados pelo que queremos colocar aos outros (alter), e isso constrói o que somos em si mesmos (ipse). Colocamos isso para fora na forma de narrativas, que não são somente falas, mas em tudo aquilo que nos expressa. Somos para os outros e para nós mesmos.

Percebam, em vista de tudo isso, como podemos imaginar que, ainda que inconscientemente, uma tatuagem pode ser interpretada como uma fusão de identidades. O que é permanente no caráter passa a ser também permanente no tempo, através da impressão de um simbolismo abstrato representativo de um conteúdo da consciência. Trazemos para a pele algo que faz parte de nossa identidade intangível, e a tornamos permanente. Por isso, eu sempre digo que uma tatuagem não precisa ser evitada, mas bem pensada. Aquele leãozinho da moda pode perder o sentido se você mudar sua perspectiva religiosa, e a não ser que você não tenha dificuldades em assumir sua própria história, pode acabar se tornando um estorvo. Nomes são um eterno perigo, rostos também, a não ser que haja muita resiliência com o tempo passado.

Pode ser que eu acabe colocando a rosa dos ventos na pele não somente para expressar uma realidade tangível, mas uma realidade do desejo, o que vai dar mais substância a ela do que um aspecto meramente estético. O mundo gira e vamos ver onde vai dar. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não é leitura fácil, mas é interessante, especialmente pela abordagem a inúmeros aspetos psicológicos.

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991.



segunda-feira, 29 de setembro de 2025

O café filosófico do quotidiano – fios que fazem café e livros que guardam vidas

(Livros são formas compactas da vida. Por isso, também são bons para não esquecermos de lições)

“Assim é, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento desse longo tempo de exílio”.

Camus 

Olá!

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Certas conveniências da vida moderna não estão nos grandes tamanhos, mas justamente no contrário. Um carrinho compacto evita problemas para estacionar, studios (as antigas kitchenettes) nasceram para acomodar pequenas famílias e baixos orçamentos, computadores foram ficando cada vez menores, até caberem na palma das mãos – um celular é muito mais poderoso do que os monstrões com os quais eu trabalhava na década de 80, com tela de fundo preto e drives para disquetes de 5” ¼, e que geravam filas e mais filas de esteiras de papel destacável em impressoras barulhentas. Aliás, imprimir hoje é coisa vetusta: gera-se um PDF e manda-se por zap. A natureza agradece um pouco.

Minorar tamanhos otimiza espaços, e isso é essencial no nosso mundo cada vez mais compactado. A cozinha da madrinha Tia Nena era o maior cômodo da casa, e lá cabia uma mesa do estilo taberna, onde todos os familiares se reuniam, em uma balbúrdia admirável, como já descrevi neste texto. Já no moderníssimo apartamento da prima Simone, que visitei na semana passada, este compartimento é quase simbólico, objeto de uma engenharia de condensação digna de aplausos, tamanha a criatividade para conseguir arranjar todas as benesses contemporâneas naqueles exíguos centímetros quadrados: fogão de indução, geladeira, micro-ondas e air fryer (tem copyright envolvido?) estão todos presentes, mesmo que em versões utilizáveis em casas de bonecas.

Se todos esses dispositivos grandes, que ocupam espaços consideráveis, vão ficando cada vez menores e flexíveis, os utensílios que já eram pequenos se tornam diminutos, a ponto de serem carregáveis no bolso. Como é o caso do porta-filtro espiral.

Ele não nasceu para ser bonito, não nasceu para encantar. Ele é um método que nasceu para ser compacto, para caber em qualquer cantinho e ser útil em uma viagem ou em momento no qual se precise montar um porta-filtro que abrigue um V60, mais comum em terras estrangeiras do que em Pindorama.


E funciona, mesmo que seja meio chatinho de chegar em um formato adequado. Não se espere que ele sustente o conjunto com elegância, mas com eficiência.

Ele é um fio de aço que tem esse formato de mola justamente para esticar e encolher, bastando travar sua ponta para que fique com a espessura de uma bolacha para deitar copos, e lá se vai ele para uma mochila, para uma maleta ou algibeira do paletó.

Nome do utensílio: Porta-filtro espiral portátil

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Média

Dinâmica: Desdobra-se o porta-filtros pelo desenlace da ponta de aço inicial e alonga-se até obter a extensão necessária para acomodar um filtro V60. Os demais passos são iguais ao de uma percolação padrão. Após o uso, recolher novamente as espirais e travar a ponta de aço na primeira espira.

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio

Reduzir tamanhos, portanto, melhora a adaptação à vida moderna, e pode ser extensível a coisas mais abstratas. Olho para minha estante de livros e imagino que tudo aquilo cabe em ínfimos arquivos dentro do mesmíssimo celular, o que me liberaria um bom espaço para meu sonhado painel de chaveiros, ou para colocar um quadro surrealista, sei lá. Mas paro para pensar que mesmo esses livros físicos são também compactadores. Resumem histórias de nações, biografias de uma vida inteira, filosofias e pensamentos que demorariam anos para serem ditos, resumem pandemias. Há pouco mais de cinco anos nós fomos trancados dentro de casa por um “bichinho” invisível, ainda mais perigoso do que um homem com um porrete na mão, que pelo menos vemos e de quem podemos correr. Há livros que falavam sobre isso, e que não estavam nos compêndios médicos, mas no romanceiro, em obras que misturam filosofia e poesia, a abstração a serviço da realidade.

Já falei sobre um deles lá no momento do isolamento, este texto, em que citei “O Amor nos Tempos do Cólera”, chupinhando até mesmo o título da obra de García Márquez. Lá, temos o desenrolar de uma trama que mescla amor e infecção, relacionamento tóxico, objetivos mal resolvidos, e, por fim, concluímos que o tempo não para mesmo quando não há movimentos. Mas há outra obra que é ainda mais próxima da realidade em que vivemos naqueles dias, mais filosófica ainda, de um autor único na fusão entre filosofia e literatura, que já visitei aqui e aqui: Albert Camus. E o livro é “A Peste”.

Camus é a cara mais editorial da vertente contemporânea do Existencialismo, que desloca a análise filosófica das essências para a existência. Quando queremos compreender a realidade e suas justificativas, sempre tentamos chegar ao âmago das coisas, para estabelecer o que há de comum a todas elas, ou seja, capturar a essência que explica tudo o que existe. Os existencialistas chegaram à conclusão de que não há explicações essenciais para a vida, e que é ela mesma, a existência, a sua própria essência. Procurar explicações para perguntas do tipo “por que sofremos?”, “somos livres ou condicionados?” ou “de quem é a responsabilidade por minhas escolhas?” passa pela assunção do sujeito humano como centro da especulação. Certas conclusões são angustiantes, principalmente pela perda de sentido fixo na existência, que, por outro prisma, ao menos é reconfortante: o homem é uma construção de si mesmo, e fazer da vida o que se quiser é, antes de mais nada, uma incumbência assustadora, especialmente quando se conclui o absurdo que é existir. O existencialismo não é só isso, mas gira em torno.

O argelino Camus é um dos principais nomes da corrente, em especial pelo seu modo sui generis de filosofar pela via da ficção. Sua mão é suave como a do cirurgião que cinde uma pústula, e que põe todo o conteúdo para fora sem chocar. O livro que abordo aqui coloca a cidade de Oran no centro dos acontecimentos de um surto de peste bubônica, doença transmitida pelas pulgas de ratos contaminadas pela bactéria Yersinia Pestis, e que tem esse nome por sua característica mais distinta: a formação de bubões, inchaço nos gânglios linfáticos próximos aos locais de entrada das bactérias. Acompanham febre, náuseas, febre e, muitas vezes, êxito letal, a tal de morte. É uma doença que assolou várias vezes a humanidade, especialmente na Peste Negra do século XIV, onde se pensa que pelo menos metade da Europa foi para a caixa-prego.

É evidente que as causas para a praga não foram as mesmas na Idade Média e na hipotética contemporaneidade. A do passado distante tinha caráter de castigo divino, uma censura extrema pela vida pecaminosa, enquanto a recente teria como base fatores de higiene pública. Mesmo estando mais distante da realidade, a primeira tem um sentido: a ira divina, a conduta mundana, uma perspectiva salvífica. Na segunda, a hipotética epidemia baseada na real cólera da cidade argelina, nada mais do que o mundo girando, o universo indiferente e sem motivações. O sermão do padre Paneloux traz de volta à mente das pessoas a culpa pelo pecado e, principalmente, uma razão pela qual a desgraça se abate, assim como faziam os pregadores apocalípticos dos tempos da peste negra. A culpa está em nós mesmos, é o que se pode traduzir da homilia escatológica do ameaçador sacerdote. A peste como benção, para reconduzir as ovelhas ao redil. Por mais que seja assustadora a suposição de que há um Deus iracundo que aplica um castigo às suas ovelhas, ainda isso dá sentido ao sofrimento. Eu peco e nem percebo, então, se eu sobrevivo, preciso rever minhas atitudes, redirecionar minha vida. Agora, se eu dependo do acaso que é a proliferação de bilhões de seres que não vejo, mas me matam, fica desfeito qualquer sentido que a existência possa ter. Sonhos e planos não são nada diante do micróbio. Até mesmo a cura não depende de nenhuma vontade, humana ou divina. Depende de estreptomicina. Se há escolha, ela é minha, não do Deus. A vida não só é absurda; é sem graça.

Deveria ser obrigatória a leitura deste livro. Não por um decreto governamental, que impõe deveres às pessoas, mas uma obrigação dada pela ética de nós mesmos. Todas as perguntas que nos fizemos durante a pandemia de COVID já estavam contidas nesse livro de 1947, setenta e três anos à época do início dos acontecimentos. Ainda que haja evidentes diferenças temporais e situacionais, já que o confinamento é da cidade, e não dos indivíduos, é inevitável que não nos identifiquemos com todos os acontecimentos fictícios ma non troppo narrados com perícia pelo escritor-filósofo. Estão lá os negócios que claudicam, as pessoas que se isolam, as restrições que ninguém gosta e aqueles que querem furá-la a qualquer custo. E está lá a morte, crescente e incontrolável.

A relutância na assunção da epidemia tem a ver com os nomes malditos. “Peste” tem o sentido de fúria divina contra os pecados que não sabemos bem como (e se) cometemos. É uma palavra que causa arrepios, porque está vinculada a grande sofrimento, como o câncer que os nossos avós apelidavam de “doença ruim” – a doença sofrida e a morte inevitável. Lembro da finada dona Madalena, que todas as vezes que a zeladoria relaxava com a limpeza, dizia que “a peste viria entre nós (sic)”. A palavra peste, então, remete a morte terrível, suja, que se espalha e que gera abandono. Mais do que isso, é uma marca na testa de toda uma região – que se a ganha, está carregando uma condenação. Senão à morte, ao menos ao isolamento. Por isso, é evitada até o momento em que é impossível chamá-la por um nome que não lhe signifique.

Eu lembro que na pandemia de COVID o primeiro decreto de recolhimento foi de uma quinzena. Quinze dias, quem me dera… Foram dois anos colecionando tédios e defuntos. No livro de Camus acontece o mesmo: as pessoas procuram nos jornais notícias sobre um recrudescimento da peste, mas só veem o aumento das desgraças. As mortes de uma semana passam a ser diárias, e a expectativa de fim rápido vai desvanecendo. O verão que chega só intensifica a tragédia, favorecendo a sua transmissão. Um misto de impaciência e distanciamento vai tornando as pessoas menos compreensivas com o caos que se instala. Entretanto, há uma diferença substancial entre a Oran de Camus e o Patropi surreal em que vivemos. Enquanto os sobreviventes da crônica, à medida que vão sendo transformados em um único coletivo que segue o mesmo destino, e, sem opção, vão se entregando à solidariedade, aqui enxergamos uma forte cisão: quem tinha uma atitude, já vinha com todas as outras do pacote ideológico: quem era contrário ao uso de máscaras já vinha com o comportamento antivacina, com os elogios à cloroquina, ao fim dos lockdowns, o exato oposto da turma do lado de lá. Seria de se imaginar, em um país com 700 mil mortes, que as pessoas procurassem se unir mais, mas nisso, fracassamos mais do que na ficção. E continuamos assim.

As semelhanças não são meras coincidências porque nos mostram que a excepcionalidade também está presente na história humana, e demonstra a fragilidade da nossa situação. Assim como um belo dia um porteiro encontrou alguns ratos mortos, alguém no interior da Ásia acordou meio gripado, e, com dificuldades de respirar, foi a um hospital para a desconfiada constatação dos médicos que aquela “gripezinha” era um tanto estranha. Às vezes as calamidades vêm em camadas – nem sempre o tsunami vem de uma só vez.

O livro não é profético, como pode parecer. É uma crônica simbólica dos totalitarismos que impõe prisões a populações inteiras, o que estava em pleno andamento nos tempos em que é narrado, a plena atmosfera da Segunda Guerra, mas eu o vejo hoje pelo seu aspecto mais direto. Ele nada mais é do que um relato de um fenômeno recorrente, que as evoluções científicas faziam crer estar mais distantes, mas que estão sempre à nossa espreita, porque ainda não compreendemos completamente os mecanismos de surgimento de novos seres, e esse é o problema que ele nos faz relembrar: nunca estamos livres de acordar com a notícia de uma doença estranha surgindo em algum lugar do mundo e se espalhando rapidamente, pronta para romper laços, transformar modos de vida, aprisionar pessoas. A peste de Oran já ocorreu tantas vezes, na forma de outras epidemias da própria peste, ou como a Aids dos anos 80, o Ebola dos 90 e a recente COVID que nos faz pensar se essa não é a pedra de Sísifo que nós mesmos precisamos empurrar morro acima. A peste termina sem acabar, e cada um recebe sua própria influência, alguns felizes pelo fim da desgraça (e esperando pela próxima) outros com as cicatrizes inapagáveis, porque, como está lá pelo final do livro…

“Para esses - mães, esposos, amantes que tinham perdido toda a alegria com o ser agora abandonado numa cova anônima ou fundido num monte de cinza – era ainda a peste”.

Camus havia colocado esse caminho como o absurdo da existência e o faz novamente aqui, para refletirmos menos no âmbito da filosofia e mais da nossa própria realidade. A vida toda cabe em um livro, assim como todo um rito do café cabe em uma molinha. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Tenho uma coleção antiquíssima conseguida em um bazar, que inclui esta e outras preciosidades. A patroa vive querendo dar um fim, mas eu resisto bravamente, porque não tem livro ruim. Mas é fácil de conseguir versões bem mais recentes.

CAMUS, Albert. A Peste. Col. Prêmios Nobel da Literatura. Rio de Janeiro: Delta, s.d.