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segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (40 - Historiografia)

(A História é uma ciência humana, e, como tal, precisa de métodos par fazer seu trabalho direitinho)

“Eu vejo o futuro repetir o passado

Eu vejo um museu de grandes novidades

O tempo não para”

Cazuza

Olá!

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Contei bastante coisa da minha vida para vocês aqui neste espaço, porque esse é o mote do meu blog. É evidente que não acontecem coisas interessantes todo santo dia, então eu busco muita coisa do meu passado para ilustrar um tema que eu queira desenvolver. Ou, vice-versa, uma sessão de rememorações traz inspirações filosóficas. Como é possível supor, essas lembranças não são cem por cento precisas, pela via das distorções esperadas pelo tempo passado, e não têm o rigor científico esperado por quem quer a realidade ipsis litteris. As coisas são assim, a vida é essa. O que vamos fazer?

Essa é a mesma base que tem a tradição oral: lembranças que são passadas de pais para filhos e que vão ganhando incrementos ou decrementos na medida em que um conta para o outro. Eu tenho histórias dos meus avós que foram contadas para os meus pais e que eu transmiti para meus filhos, que, se houverem, também as repassarão para os meus netos. Se confrontadas as primeiras com as últimas, pode ocorrer de termos uma variação tão fantástica que seriam irreconhecíveis. Talvez só tenham um quê de intenção original. Quem conta um conto aumenta um ponto, é o dito popular.

Tudo seria diferente se o nonno tivesse pegado uma pena e escrito suas aventuras e desventuras. Bastaria, assim sendo, apresentar a missiva aos descendentes e evitar as discrepâncias. Perderíamos em saborização? Certamente, mas teríamos uma precisão maior. Desde que o vetusto parente mantivesse um mínimo de proximidade com os fatos.

E isso mostra que o problema persiste. A escrita do vovô garante uma persistência do relato, mas não sua veracidade (ou mesmo sua verossimilhança), e, sendo assim, percebemos bem de leve o grande problema da História como Ciência. Eu posso medir a potência de um raio, a velocidade de um fluxo sanguíneo, a distância entre astros, a potência de um veneno, a profundidade de uma fossa marítima. E a verdade de um fato?

Sim, gregos e romanos já destoavam no que eles consideravam verdade. Os primeiros gostavam do objeto no olho, mensurável e observável em sua aletheia, enquanto os últimos preferiam a coerência do relato, o encadeamento bem-feito e crível na sua veritas. Essas concepções são diferentes, e as ciências naturais se beneficiam da observação possível dos objetos presentes, enquanto a História não tem como prescindir da força do relato, seja direto ou não, porque seu material não está em cima de nossa mesa.

Já falei neste espaço sobre as diferenças entre Ciências naturais e Ciências humanas, e o fiz com o intuito de esclarecer como é possível estabelecer critérios para que consigamos reconhecer a cientificidade dessas áreas de conhecimento. Nesse bojo, está a História, que precisou construir todo um método para conduzir suas pesquisas e ganhar estatuto de estudo científico. Um método apropriado para sua realidade que, por muitas vezes, precisa lançar mão de expedientes colaterais à observação direta dos fenômenos, especialmente quando eles são exíguos. Esta metodologia recebe o nome de Historiografia.

Primeiro, vamos fixar a diferença: a História é a atividade humana que pretende investigar o passado para estabelecer correlações entre este e o presente. Já a Historiografia são os meios materiais com os quais se levam a cabo esses estudos. Ou seja, a Historiografia é uma ferramenta da História para produzir resultados minimamente confiáveis.

Normalmente, ciências exatas não dão margem a erros, e ganham um nível de especificidade difícil de desviar. Solva dez gramas de bicarbonato de sódio em 20 ml de vinagre e veja a espuma se formar. Aplique 20 bar de pressão em uma bexiga com a espessura de 1 micrômetro e veja ela explodir. Aumente a temperatura de 100 ml de água a 100 graus centígrados por 15 minutos e perceba que o recipiente ficará vazio. É A+B=C, sem furo. Se houver, procure uma condição para a falha, e certamente você encontrará um motivador (ou terá em mãos uma falsificação da teoria).

Nada disso é possível em História, que não é uma ciência experimental. Se não estamos falando de ocorrências recentes, que possuem diversos suportes para manter fidedignidade aos relatos, contamos com elementos muito difusos que são facilmente postos em dúvida. Se formos parar para pensar, meios de registro são invenções recentes. Internet existe há a 50 anos, imagens em filme existem desde o finalzinho do século XIX, os primeiros áudios são de um pouco antes, a imprensa foi inventada no século XVI e, mesmo a escrita, tem alguma coisa próxima de cinco mil anos, bem pouco para uma espécie que existe há mais de 300.000. Então registros precisos como as ciências exatas exigem são impossíveis.

Então vamos colocar a viola no saco e nos conformar com a impossibilidade da História? Não. O que é preciso é estabelecer métodos que permitam reconhecer a estrutura mais verossímil possível sobre as realidades passadas, especialmente as mais remotas.

Em primeiro lugar, é preciso estabelecer que as fontes históricas não se limitam aos registros escritos, mas a tudo que possa dizer sobre uma determinada época, e, nesse sentido, a Arqueologia é uma auxiliar de mão cheia. Desde as antiquíssimas pinturas rupestres das grutas de Maltravieso, os registros da ação humana são elementos que são considerados vitais para a tentativa de descrever modos de vida e fatos quotidianos.

Os registros, quanto mais longínquos se vão no tempo, mais fragmentados se apresentam. A alegoria do quebra-cabeças é perfeita para a montagem do painel histórico, e muitos dos claros são suprimidos com suposições que vão sendo corroboradas através de elementos externos à própria sequência de fatos. Frequentemente, é preciso adotar uma postura de lateralidade, ou seja, de olhar para os lados em busca de dados confirmatórios indiretos. Como é comum termos poucos elementos para dar guarida à veracidade dos relatos obtidos, é preciso que se olhe ao redor do contexto para obter elementos que ajudem a explicar, confirmar ou refutar o que se diz. Se eu olhar para a historinha do nonno, é de bom tom (por amor à veracidade) validar as afirmações, como a existência de histórias parecidas, de outras fontes que indiquem ser possível o fato descrito, se faz sentido a temporalidade informada ou se isso tudo somente comprova a criatividade do macróbio progenitor. Sendo assim, é preciso estabelecer critérios que orientem a pesquisa historiográfica para além do fato diretamente descrito.

Um desses critérios, talvez o principal deles, é o de múltipla atestação. Para cada vez em que encontramos um relato sobre um determinado acontecimento, dizemos que possuímos uma atestação, ou seja, uma afirmação sobre um fato que tem a intenção de corresponder à realidade. Contar uma piada ou cantar uma música, por exemplo, não são atestações, porque, a princípio, não há aí uma intenção em ser verdadeiro. Quanto mais gente fala sobre um fato, mais provável é que o mesmo tenha ocorrido. Ainda mais: tendo várias atestações distintas, é possível filtrar as que possuem maior quantidade de indicações. Sendo assim, havendo um relato dissidente em meio a dez outros convergentes, é muito mais provável que o multiplamente atestado seja o real. Sendo assim, essa é a linha que será primariamente pesquisada, por ser mais provável. A não ser… 

A não ser que sejam observados outros critérios, o que demonstra a complexidade que há em estabelecer uma metodologia historiográfica. Um deles é o curioso embaraço. Ele diz que, entre versões dissonantes, a que causaria maior constrangimento a quem a profere tende a ser a verdadeira. Isso é fácil de explicar: quando teu time tem uma derrota acachapante, daquelas traulitadas históricas, normalmente você dirá que a culpa é do juiz mal intencionado, enquanto teu coleguinha mais sensato dirá, mui simplesmente, que o time jogou mal. Qual das duas é mais embaraçosa? A segunda, evidentemente. Temos a tendência de procurar culpados externos quando sofremos decepções, ou a atribuir heroísmos em atos corriqueiros, e nossa análise fica enviesada, como prova a psicologia com o efeito ator-observador. Sendo assim, se confessamos uma condição embaraçosa, dificilmente será porque estamos mentindo (conscientemente ou não). É a velha questão da história contada pelos vencedores.

O critério da dissimilaridade é razoavelmente parecido com o do constrangimento. Ele reza que uma afirmação é tanto mais digna de confiabilidade, quanto mais estiver afastada de uma prática comum. Trocando em miúdos: se algum fato histórico está em dessemelhança com uma tradição anterior ou posterior, ou seja, é “diferentão”, tem mais chances de ser real. Isso acontece porque é mais esperado que um fato dissonante esteja mais de acordo com as tradições em voga, justamente para corroborá-las. É em cima deste critério que surgiu o lectio difficilior potior, termo latino que significa “a leitura mais difícil é a mais forte”, um princípio da crítica textual que entende ser o texto de compreensão mais difícil aquele que tem maiores chances de ser o mais correto, justamente porque os escribas teriam a tendência de adaptar os textos à sua realidade, ao seu tempo e ao seu espaço físico, de modo que, na concorrência entre os textos, o mais “estranho” tende a ter a menor carga cultural daqueles que os transcreveram, e, consequentemente, menos modificado.

Só que há também o critério da coerência. Mesmo que haja indicativos de dissimilaridade ou de constrangimento, as narrativas precisam seguir alguma lógica para ganharem o selo de verossímeis. Não basta um texto ser antigo: ele não pode ser contraditório, precisa ser semanticamente interpretável e precisa estabelecer relações lógicas entre as ideias que exprime. A questão é que nem sempre a coerência é facilmente visível. Digamos, por exemplo, que as casas de um determinado local foram inundadas após uma chuva muito forte. A priori, é um fato que pode ser facilmente aceito. Entretanto, o histórico de inundações daquele lugar somente se iniciou após a construção de uma represa. Neste caso, relatos de inundações anteriores a essa construção são incoerentes, mesmo sendo um caso que, na atualidade, seja perfeitamente factível. Portanto, questões de coerência são uma condição primária para a boa aceitação de uma fonte.

Outro ponto importante é o critério de linguagem e ambiente, que trazem boas balizas para consolidar entendimentos. Por exemplo: uma expressão que nasceu no Brasil em meados da década de 80 é o tal “da lata”. Sua origem foi a curiosíssima história do pesqueiro Solana Star, que fazia uma carga ilegal de cannabis da Austrália para os Estados Unidos. Quando estava no Atlântico Sul, o navio precisou de reparos e, para isso, aproximou-se da costa brasileira. Ao perceber a aproximação da guarda costeira, a tripulação se livrou da carga danada, desovando 22 toneladas de latas repletas de maconha no mar. A Marinha somente conseguiu recuperar três e meia dessas toneladas, o que significa que a maior parte ficou boiando no oceano, até que as correntes marítimas as levassem para o litoral de São Paulo e Rio de Janeiro. Como era produto de primeira linha, muito diferente dos talos de chuchu que se vendiam nos carrinhos de pipoca, a expressão “da lata” era sinônimo de produto bom: tênis da lata, música da lata, comida da lata. Como esses fatos todos ocorreram entre 1987 e 1988 (o “verão da lata”), essa expressão linguística só tem sentido se ocorrida nesse período ou, no máximo, a posteriori. Nenhum fato pode ser considerado anterior se calçando nessa expressão. Mesma coisa com tópicos relacionados aos locais onde se conseguem as informações, que forma o ambiente onde uma história é narrada. Percebam que não se falam em corvos nas mitologias tupi-guarani, porque esse interessante bicho não faz parte da fauna brasileira. Ambientações corretamente definidas em um texto ajudam a enquadrá-lo como mais confiável, porque muitas vezes os usos e costumes de um determinado local são os poucos elementos que temos para referendar o que está sendo dito.

Notem como todos esses critérios são como “esquentadores de palpites”, e não como certificadores da verdade. Eles são indicativos de que uma assertiva é mais crível, ou, melhor ainda, que é menos provável do que outras, mas não asseguram a veracidade de modo incontestável. Por exemplo: Sócrates tem três atestações robustas: a de Platão, a de Xenofonte e a de Aristófanes. Os três trazem visões substancialmente diferentes sobre a mesma pessoa. Em Platão, Sócrates é mais filosófico; em Xenofonte, mais prático e, em Aristófanes, um parlapatão. Essa dissonância, ao contrário do que pode parecer a princípio, é benéfica para a pesquisa histórica, porque dá mostras de um indivíduo multifacetado e que desperta diferentes sentimentos, como sói acontecer com nós mesmos. Mas comprova em definitivo a existência socrática? Não, mesmo que sejam evidências muito boas. O contrário ocorre com os evangelhos, por exemplo. A cadeia de semelhanças existentes entre os três sinóticos, ao contrário de anunciar uma unicidade, denuncia compartilhamento de fontes, embora todos eles possuam material próprio. Ou seja, embora haja três fontes, há a hipótese de que elas sejam apenas uma, até porque o Evangelho de São João é muito mais teológico do que histórico.

Reconhecidas as dificuldades desta metodologia, é necessário reconhecer como seu espírito é legitimamente científico, primeiro por buscar caminhos onde eles parecem não existir, e principalmente por reconhecer sua falibilidade. Quer mais científico que isso? Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

Um lugar e tanto para aprender como funcionam os métodos historiográficos é o canal do professor Jonathan Matthies, especializado em antiguidades religiosas, e que sempre evidencia as dificuldades e as soluções para interpretar textos que são naturalmente cercados de polêmicas. Vale maratonar.

https://www.youtube.com/@Jonathan14734

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Sobre a caixa de Pandora e a esperança vista como o pior dos males

(É bom ter esperança? Ou é mais uma maneira de se imobilizar?)

“Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens”

Nietzsche

Olá!

Entre prós e contras, há os contras e os prós. Embora haja absolutamente de tudo a vinte passos de distância, o centro de São Paulo é um lugar sujo, isso está assente e bem consolidado. O meu lugar de fala é o de quem mora lá, e, com isso, analisa todo aquele universo que lhe afeta diretamente. O primeiro olhar de qualquer pessoa é o de que os responsáveis pela lixeira são os mendigos e catadores, mas esse é um ledo engano. Os porcos somos nós mesmos, auxiliados por um poder público que parece não saber o significado de zeladoria urbana. São nossos legítimos representantes, e, sendo assim, nossas mãos que assinam decretos.

Saindo do geral para o miúdo, nós do centro acabamos nos acostumando a ter um passo de bêbado para fugir da sujeira. Pulo uma casca de fruta à esquerda e já encolho o pé para evitar um saco de lixo à direita e, nesse estranho balé, vou evitando ter que lavar o tênis. Mas, da mesma forma que renomada bailarina, mesmo na prática há passos em falso, e é inevitável cair em alguma armadilha.

Uma delas foi uma caixa de papelão que estava bem na porta do balansarte prédio em que habito, numa das tardes desses domingos pasmacentos. Um treco daqueles bem no meio do caminho da estreita passagem é algo irritante para alguém que já vive irritado, e mandei ela para longe com um chute digno de Nelinho. O problema é que a tal caixa foi lá colocada para encobrir um conteúdo pouco nobre, e, espalhafatoso, cai com o pé do chute em cheio da massa disforme, que se espalhou por toda a realidade circunstante, eu incluso. Como era inevitável, a supernova orgânica chegou ao tapete da entrada e o melecou todo, implantando um cenário caótico. Como ainda tento manter civilidade, contei até dez e não quis deixar a hecatombe para o pobre seo Antônio, o porteiro ocasional dessa bodega de condomínio caro e zeladoria ausente, e lá vim com balde e esfregão para curtir um domingo perfeito. A cada etapa da limpeza, um impropério berrado em alto e bom som, daqueles de rachar um carvalho ao meio e aumentar o léxico de carroceiros. Levando em consideração que é um prédio de senhorinhas católicas conservadoras, virei atração turística por um dia, da pior maneira possível. “Que moço boca suja!” foi a afirmação mais elogiosa, por causa do “moço”.

Momentos impulsivos não trazem belos resultados, como se pode ver. Algumas ações imediatas são necessárias para a própria sobrevivência, como provam os instintos, mas, em geral, elas vão muito além da necessidade, porque são desmedidas. Mas o fato é que muita coisa na humanidade já foi decidida nessa base, a ponto de um dos mais significativos mitos gregos estar associado a eles: a caixa de Pandora. Essa não é só uma explicação para a presença do mal no mundo, mas também como a fraqueza de um ser pode influenciar todo o universo, assim como a inconsequência de um ato impensado encadeia uma série de consequências imprevisíveis.

Mitos são assim mesmo: formalizam uma determinada maneira de pensar, geralmente de um pensamento assentado em uma comunidade, que adotam a voz de um profeta ou outra autoridade para consolidar a narrativa como se fosse única, daquele povo. Os gregos formaram a base filosófica do pensamento ocidental, e, por essa razão, há inúmeros mitos que conhecemos e aplicamos poeticamente. Dentre tantos, a história da jovem Pandora é um dos mais célebres.

A narrativa mais consolidada de Pandora e sua caixa é a seguinte: em um momento em que ainda não existia a humanidade, o universo assistia deuses e titãs se digladiando pelo poder. Como essas lutas incluem desde sempre não somente a força, mas a trairagem, os titãs Prometeu e Epitemeu se bandearam para o lado dos deuses, o que desbalanceou o equilíbrio a favor destes últimos. É dito de Prometeu que ele tinha a capacidade de antever os acontecimentos com base em sua aguçada inteligência, e prevendo a vitória dos deuses, convenceu seu irmão a segui-lo. Como prêmio pela ajuda dos dois, Zeus, o líder dos deuses, não só não os jogou no Tártaro* com os demais titãs derrotados, como também concedeu a ambos o direito de povoarem a terra. Epimeteu, aquele que vê depois, utilizou todos os atributos possíveis para criar todos os animais, restando a Prometeu a criação de características únicas ao homem. Ocorre que este era um animal dentre os outros, um bruto sem nenhum brilho, já que Epimeteu não lhe reservou nada de mais insigne. Prometeu foi a Zeus pleitear o uso do fogo pela humanidade, o que foi prontamente negado, dado ser esta a ferramenta de sabedoria equalizadora aos deuses. Insatisfeito, Prometeu roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens, que, dessa forma, passaram a ter sabedoria equivalente, e, dessa forma, imperar sobre as demais criaturas.

Zeus ficou puto não gostou nada da atitude de Prometeu, e lhe impingiu um castigo eterno: acorrentá-lo em uma pedra do Monte Cáucaso, aonde uma águia viria diariamente para lhe rasgar o ventre e comer seu fígado. Sendo um imortal, todos os dias seu corpo era regenerado, o que o penalizava infinitamente. Mas sobrou também para nós, a criatura do infeliz titã, e o castigo veio na forma de ardil.

Uma vez livre de Prometeu, Zeus criou uma companheira para Epimeteu, a primeira de todas as mulheres, e lhe deu o nome de Pandora, que, em grego, significa algo como “todos os dons”. Ela recebeu a criação de todos os deuses olímpicos, que, de algum modo, deram a ela características: dentre outros dons, de Afrodite, recebeu a beleza; de Atena, recebeu as habilidades artísticas, e recebeu o poder de persuasão de Hermes, bem como a curiosidade de Hera, o que acabou por ser sua desgraça. Foi entregue em casamento para o titã, apaixonadíssimo por sua beleza. Zeus deu-lhes um presente de casamento inusitado: um jarro** a quem foi recomendado a Pandora jamais ser aberto. Conhecer do espírito humano, Zeus sabia que essa proibição era quase uma ordem para que Pandora fizesse o oposto. Movida pela curiosidade, a bela mulher descumpriu a ordem divina (já ouvi essa história em algum lugar) e abriu a tampa do jarro, e o fenômeno aconteceu: lá dentro, estavam contidos todos os males que acometem a humanidade: a fome, as doenças, as guerras, a solidão, a fraqueza, as dores físicas e morais, o sofrimento externo e interior. À abertura do receptáculo, todos eles fugiram e se espalharam incontidamente, por toda parte para onde pudessem ir. Quando Pandora se deu conta do que havia feito, tentou fechar novamente o tampo, mas reteve somente um último item: a esperança. Compreendendo que não fazia sentido mantê-la no recipiente, achou por bem libertá-la também, e ela foi se espalhar pelo universo, como todos os demais conteúdos.

Normalmente, a interpretação da libertação da esperança é vista de forma positiva. Apesar do grande projeto de vingança de Zeus contra a criação de Prometeu, ele ainda tem alguma piedade, e a esperança seria o alimento espiritual que faria com que os homens ainda tivessem alguma forma de encarar o mundo, apesar da dor e do reconhecimento da dor. Não fosse a esperança libertada, a raça humana não teria grandes motivos para permanecer viva.

Entretanto, há quem interprete essa esperança que resta no fundo da caixa de Pandora como um bem entre os males, ou não só um mal entre os outros, mas também como o pior dos males. É de Nietzsche, dentre outros, que eu falo.

A ideia é a seguinte: se eu saio de um estado de felicidade para um mundo assombrado por todas as desgraças possíveis, seria natural pensar que a opção seria sair desse mundo, mesmo que pela via da morte. Imaginar-se como sofredor de um mal eterno é precisamente o expediente das quais as religiões lançam mão para quando querem criar uma atmosfera infernal: a dor eterna. Se isso não ocorre, o que pode explicar o fenômeno? 

Notem, meus amigos, que um mundo sem vida é, também, um mundo sem dor. É preciso que os seres existam para que a dor também exista, já que sofrimento é uma inerência da vida. Não se preocupem com o metal que o ferreiro malha, nem com a pedra que o britador perfura: elas não sentem dor. Sendo assim, a abertura da caixa de Pandora só é efetiva porque a humanidade persiste em sua existência. Seria mais ou menos como um vírus que exterminasse todos os bípedes implumes: ele mesmo se exterminaria junto. Os males, portanto, só existem se a esperança de dias melhores motiva as pessoas a se manterem vivas. E, por isso, a esperança é o mal maior, o mal que nos impede de nos apartar do mal.

A esperança, olhando por um ângulo mais psicológico, é a concretização do instinto de sobrevivência. Ele é muito difícil de explicar, mas sua função biológica grita: manter a existência de uma espécie. Tentamos nos defender mesmo quando é óbvio que não o conseguiremos. Uma pessoa em queda livre tenta se agarrar desesperadamente a qualquer salvaguarda imaginária, e isso é uma das inerências da espécie dos caniços pensantes, mesmo que não haja tempo de pensar. O instinto é isso: uma reação imediata a uma situação que pede solução urgente, mesmo que não haja nenhuma chance racional de sucesso. Nós vamos sempre tentar e isso é algo que ajudou o homo sapiens a chegar onde está, assim como a pulex irritans, o canis lupus e outros mais que ainda povoam o planetinha azul em cuidados paliativos. Por outro lado, todas as espécies têm, de uma forma ou de outra, estratégias de reprodução que visam ampliar a quantidade de indivíduos para mantê-la ou ampliá-la, o que é uma salvaguarda para os fracassos individuais. Não há consciência de que reproduzir perpetua a espécie; há apenas os atos individuais em si, que ocorrem porque são prazerosos. 

É difícil determinar por que temos essa sanha de preservação da espécie? Seleção natural, meus caros. Aqueles indivíduos que, de uma forma ou de outra, estabeleceram estratégias de prevenção acabaram durando mais do que os valentões. Nem sempre a força é sinônimo de longevidade, e, no sentido da perpetuação, melhor ter algum cagaço.

O medo é filho deste instinto de sobrevivência, e, no final das contas, a sua ferramenta prática. Ele é certamente um dos males liberados por Pandora no mito, mas, sem ele, seria mais difícil de estarmos aqui. Viram como o sinal se inverte? Levados ao extremo, os próprios males comprovam ter um lugar nas cadeias consequencialistas dos fenômenos do universo.

No final das contas, a medida está no ponto onde a vida vale a pena, onde o balanço entre dores e prazeres pende irresistivelmente para o primeiro lado, e na insistência que fazemos em ainda ter projetos onde eles não podem prosperar. É aqui onde a assertiva de Nietzsche parece contraditória. Quando lembramos que ele é um defensor da vida levada pelo caminho da tragédia grega, com tudo o que ela carrega em si mesma, fica estranho achar que a esperança, ou seja, a vida vivida em seu limite, seja um mal. Pior ainda, o mal dos males. Na verdade, a questão é outra: Nietzsche se posiciona exatamente contra a ilusão da esperança, o que justamente impede de ver a vida como ela é. O amor fati não pode acontecer se ficar refreado por uma esperança que se fixa a um mundo ideal e infactível. Esse é o grande ponto de Nietzsche contra a esperança.

A própria palavra esperança explica esse sentido. Ela denuncia que ficamos à espera, que aguardamos sentados enquanto os navios passam ao longe, e nisso reside seu mal. É que ficamos muito acostumados às assertivas religiosas de que a esperança é o tempo de aguardar por um mundo eterno mais justo, mas isso acaba ocultando o quanto essa atitude é engessante. Quem espera nunca alcança, deveria ser o ditado popular, porque não se move, não busca, não combate, e, em resumo, não cai no fluxo da vida e a incorpora à sua própria existência. Basicamente, essa é a maneira com a qual Nietzsche encara o mito de Pandora.

Sendo assim, pisar na merda não deixa de ser um mal, e ficar na esperança de que o tempo vai limpar o corredor de entrada do prédio só vai fazer com que o fedor aumente. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como vários outros mitos, o de Pandora está espalhado em diversos escritos e na tradição oral. A obra abaixo é onde ele é tratado com uma versão relativamente bem detalhada.

HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Curitiba: Segesta, 2012.

* O Tártaro é uma espécie de inferno da cultura grega, um submundo onde há dor e punições àqueles que ousaram contra os deuses. Semelhante ao xeol judaico? Muito. Uma mera coincidência? Sei não.

** Ou vaso, ou caixa, dependendo da narrativa. Tem até um termo usado em Portugal que não cabe bem usar no Brasil, para evitar mal-entendidos.

terça-feira, 22 de julho de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: a injustiçada Portuguesa e os símbolos deixados de lado

(É bom se atualizar, mas sem que isso apague nossas origens)

“O senhor afasta muitos homens da velha tripulação para embarcar outros na outra margem: tenha cuidado para que não lhe aconteça perder os velhos sem encontrar os novos”.

Giovanni Guareschi

Olá!

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Quando eu era pequeno, morei por um brevíssimo tempo na vila do Manito, um imigrante português que veio para o Brasil em fuga da pobreza e das peripécias de Salazar, lá pela década de 40, em uma dessas travessas perdidas pela então semi-agrícola Vila Ema. Era um lugar curioso, porque não se tratava de um cortiço, mas de um beco sem saída em forma de “S”, todo feito de casinhas de cômodo e cozinha, iniciando pela venda do Manolo (outro português, ora pois), e terminando em uma pracinha onde ficava a casa maior, do próprio Manito. Uma passagem pela lateral garantia acesso à chácara do seo João, lindeira ao Córrego da Mooca, onde hoje reina o asfalto precário da Anhaia Melo. Bem ao fundo, havia um galpãozinho encimado por um tabique onde nosso herói criava pombos, e tudo isso ficava ao lado de uma fábrica de brinquedos, a Bandeirante. Acho que todo mundo já teve um brinquedinho de plástico dessa fábrica. Era evidente que sua intenção era ter uma vila de casas operárias com aluguel de baixo custo, para abastecer a tal fábrica.

Eu ainda era beeeeem criança, e, desse tempo, não lembro de quase nada. A questão é que minha nonna morava na rua paralela, e da laje de onde ela criava suas codornas e estendia suas roupas dava para ver todo o complexo do Manito, e, mais tarde, lá eu praticava uma rara atividade contemplativa: as revoadas dos pombos do nosso caro senhorio lusitano. Eles ficavam circulando toda a área que ia da fábrica à beira do córrego, por cima das chácaras. Faziam traçados que incluíam curvas suaves e repentinas, subidas e descidas, trocas de lideranças, em uma coreografia que me deixava dúvidas de seus motivos, mas que me encantava pela orquestração, que terminava com o pouso no barracão, todos juntos, como se fosse a esquadrilha da fumaça (sem fumaça). Ali, logo ao lado, um puxadinho permitia à dona Rosa, esposa do Manito, estender suas roupas, e daí ambos provavam suas origens e predileções: os coletes e bombachas do bailarico que participavam e as camisas da Portuguesa, a sua grande paixão.


A Portuguesa era, então, um dos grandes times de São Paulo. Uma mistura folclórica de azares inexplicáveis e má vontade arbitral fazia com que os títulos fossem raros, mas a Lusa estava sempre no topo das tabelas, formando esquadrões respeitáveis e, principalmente, disponibilizando muitos jogadores para o futebol brasileiro. Seus jogos contra os papa-títulos eram considerados clássicos, ou seja, a Portuguesa era um deles, um dos grandes, capaz de fornecer jogadores para a Seleção Brasileira e conquistar títulos mundiais, embora fosse atribuída a ela uma espécie de síndrome de Robin Hood: roubar pontos dos maiores para entregar aos pequenos. São pequenas coisas de um grande futebol, já diria Ary Silva.

Estranhamente, entretanto, as camisas que eu via nos varais do Manito não eram comuns de se ver por aí. Nos botecos que meu pai frequentava não se viam, nem na escola, nem nas ruas em que eu brincava. Nos jogos que meu avô me levava no Canindé, a torcida era sempre pequena, muitas vezes superada pelo adversário que a visitava. No Pacaembu, onde meu pai me levava, ela sumia, restrita a um cantinho do tobogã. E isso foi uma das perguntas que eu me fazia nos meus primórdios futebolísticos: por que ninguém gosta da Portuguesa?

Na verdade, a pergunta pós maturidade mudou um pouco, até mesmo porque eu gosto da Portuguesa, sempre fui bastante frequente em seus jogos, e vi gerações diferentes de ótimos jogadores, como Enéas, Toninho, Edu Marangon e outros, até mesmo em sua fase de derrocada, ocorrida após 2013. E, sim, já escrevi sobre ela. A pergunta passa a ser: por que a torcida lusa é tão pequena?

Eu tenho minhas teorias, muitas delas já pensadas por outras pessoas (poucos títulos, concorrência com times maiores, nicho imigratório), mas a principal delas diz respeito a uma contradição de identidade: ao mesmo tempo em que há um vínculo evidente com uma colônia específica, há também uma perda de tradições que faziam sua magia. Vamos detalhar.

As coisas são únicas não apenas porque se distinguem das demais, mas porque se mantêm assim ao longo do tempo. Mais: embora possa se compreender que a identidade é uma relação que se tem consigo mesmo, ela é rigorosamente necessária para que se estabeleça relações com os outros. Aquele que é único carrega consigo a característica de ser distinguível entre os demais, e oferecer justamente isso em suas relações. Afinal de contas, a maneira com a qual eu me apresento em uma relação já diz sobre mim. Pois bem.

A Portuguesa tem símbolos pesados, como as cores da bandeira portuguesa e seu próprio nome, mas que, volta e meia, pensa-se em mexer neles. Houve algumas vezes em que se pensou em mudar seu nome, ideia cretina na opinião deste pouco humilde escriba. Acabou não acontecendo, mas algo teria que sofrer respingos da tentativa de popularizar a equipe. A Lusa tinha como um de seus principais símbolos a Severa, sua mascote humana, coisa rara neste mundo que adota bichos e mais bichos para esta função. É uma dançarina de vira* com todos os trajes típicos, como o lenço na cabeça, o xale, o avental com o distintivo e as tamancas. Representa, portanto, uma das manifestações culturais mais típicas da comunidade portuguesa e mais distinguíveis dentre tantas etnias que temos em Terra Brasilis. Sempre que você for a uma festa das nações, é dessa forma que a comunidade portuguesa se apresentará, indefectivelmente. Sendo assim, a Severa é indubitável.

Acontece que a Portuguesa resolveu mudar sua mascote, passando a utilizar um prosaico, ordinário, trivial, corriqueiro, consueto, banal, comezinho leão, mais um dentre tantos. Há incontáveis times cuja mascote é um leão: Sport, Vitória, Fortaleza, Jabaquara, Remo, Bragantino, Mirassol, Avaí, Inter de Limeira, Cianorte, Comercial de Ribeirão, Villa Nova, Nacional de Manaus, Peñarol de Manaus, Baraúnas, Jacuipense, Hercílio Luz, Potyguar, Capivariano, Bandeirante, Taquaritinga, Inter de Lages, União Barbarense, entre tantos outros que não tive paciência para pesquisar. Fora os estrangeiros, como o Chelsea, Estudiantes, Bologna, dentre muitos outros. Nada contra os simpáticos leõezinhos, que representam força, reinado e tantos outros atributos associáveis ao futebol, até mesmo porque os motivos para a doação são diferentes para cada um deles, mas é que a Portuguesa trocou um elemento forte de identificação por outro muito menos concatenado às suas origens. A dançarina compartilhava unicamente seus dotes com sua coirmã do litoral, a Cachopa da Briosa, o que fazia todo o sentido do mundo. Com o leão, é um entre outros.

A ideia parece dupla: criar uma mascote popular e puxar o saco homenagear sua principal torcida, a Leões da Fabulosa. Essa organizada tem fama de ser pequena (quando comparada a uma Gaviões da Fiel da vida), mas extremamente engajada e, às vezes, meio brusca nas cobranças. Na verdade, conversando no miúdo, a ideia é tripla. Há também um fator muito mais doloroso, que já debati no texto sobre a coirmã santista. A Severa não é reconhecida por este nome pelas demais torcida, mas como “burra”, fruto do preconceito arraigado e tão conhecido contra os portugueses. Ou seja, o terceiro sentido está em uma ocultação, o que, se for verdade, é um erro desditoso. Mas vamos partir da premissa dupla, para não gerar polêmicas.

Ora (direis), símbolo é símbolo. O que resta de efetivo é o concreto, então é lícito que os símbolos sejam mudados e adequados a uma realidade distinta. Certo, interlocutor imaginário, símbolos mudam como a própria vida, mas a questão é que se mira a cabeça e não se acerta nem o pé se a escolha não for ponderada. Vemos milhares de leõezinhos tatuados em braços e pernas hoje em dia, demonstrando o quanto o símbolo de realeza e força é potente e popular**. Perguntado sobre o assunto, o tatuador que me traça rabiscos disse ser, de longe, a mais pedida de todas as figuras contemporâneas, a quilômetros de distância da segunda colocada. Portanto, leões são símbolos bem acolhidos sob vários aspectos. Mas o mascote não é um mero símbolo, e sim uma representação de uma marca com valor intrínseco, o que traz uma espécie de “promessa” fundamental, de que há algo nela que a distingue das demais. A marca marca, e é um elemento tão forte que, por vezes, é o ativo mais valioso que uma empresa possui. Pergunte à fábrica dos Sucrilhos© se você pode usar o tigre dela para fazer sua publicidade – você terá um sonoro “não” sucedendo uma gostosa gargalhada, ou, no mínimo, um orçamento impagável. Mascotes não são objetos que se trocam, como os bibelôs das estantes, porque carregam significados inapagáveis para quem os adota. A não ser em casos especialíssimos. E este não me parece um deles.

A mascote é um símbolo, e, como tal, traslada um sentido abstrato através de sua materialidade. Em outras palavras, seu valor concreto deixa provisoriamente de ser o que é para adquirir um novo significado. E nós não somos só nosso corpo material, mas também tudo o que nós queremos transmitir aos outros e a nós mesmos. Sentimos orgulho em vestir a camisa de nosso time e incorporar em nós toda a chuva de significados que ela nos traz, e dizer ao mundo que aqueles valores são nossos. Dizemos muito através dos símbolos, como a cruz pendurada no pescoço, o círculo pacifista dos hippies, as camisas pretas dos rockeiros. Tudo isso transmite uma mensagem ao mundo que nos rodeia, dizendo como gostaríamos de ser reconhecidos, e sua escolha, mesmo que feita de modo espontâneo, precisa de uma carga de intencionalidade. Até mesmo uma cruz gamada diz muito sobre o que alguém pensa.

É bem verdade que a Portuguesa vem tentando resgatar a Severa, mas não sei até que ponto pode ser tarde. Já há bastante problemas a resolver, embora a recente adoção do modelo SAF possa ser o sopro esperado para resolver o que parecia insanável. Eu faria fortes campanhas de reparação nesse aspecto simbólico também. Deixem o leão para a torcida, onde ele está em bom lugar.

Sendo assim, embora eu não me considere um conservador, tenho reservas a guinadas que, por um lado não conduzem a nada, por outro abandonam o que tínhamos de mais importante. A um mascote, é atribuído um poder semelhante ao de um talismã, ou seja, a atribuição de se trazer boas energias, de atrair sorte, e isso vai além da mera crendice. É o resumo de um sistema de valores e, sendo assim, não se troca assim como se muda de camisa. Não se muda de camisa de um time.

Mas, pensando aqui, um talismã, se atrai boa sorte, não atrairá seu oposto se abandonado? A se pensar***.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Esse eu tenho autografado. É um livro de rememoração da maior campanha dos tempos recentes da Portuguesa, que chegou à final do campeonato brasileiro de 1996, que levou consigo toda a torcida da cidade. Comprei em uma feira de camisas na estação São Bento, antes da pandemia, diretamente com o autor, colunista do site www.netlusa.com.br. Nem sei se fazem esses eventos ainda.

ZORZI, André Carlos. Para Nós és Sempre o Time Campeão. A Portuguesa de Desportos no Ano de 1996. São Paulo: Edição do Autor, 2017.

* Ao lado do fado, o vira é uma das expressões musicais mais típicas de Portugal. São como duas faces da mesma moeda: enquanto o fado é mais introspectivo, o vira é mais comemorativo, evocando as chegadas das épocas de colheita e abundância.

** E o quanto temos de evangélicos hoje em dia, especialmente com uma certa flexibilização do lastro moral que norteia a vaidade. A figura do Leão de Judá, uma das designações mais populares para Jesus nos meios cristãos, cresceu na mesma medida em que as referências explícitas à religiosidade do contribuinte se tornaram mais importantes. Quem sabe eu não escreva mais sobre isso?

*** Mera brincadeirinha. Não acredito em poderes metafísicos, mas não quis perder a oportunidade.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

O café filosófico do quotidiano – sobre não compensar mais ter filhos

(Ainda faz sentido ter filhos neste mundo cada vez mais ameaçado?)

“Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

Machado de Assis 

Olá!

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Esse episódio da minha “carreira” de barista já tem um tempinho, mas era inevitável que ele acontecesse. Eu posso me considerar experiente em passar um bom cafezinho, mas na hora do espresso eu não tinha lá muitos recursos. É bem verdade que eu tenho uma mini, mas é um brinquedinho quando comparado aos grandes conjuntos profissionais, e aproveitei uma belíssima promoção para fazer um treinamento e aprender como lidar com essas maravilhas da tecnologia a serviço da estética palatável.

Não foi exatamente perto, e sim na municipalidade de Itupeva. Ora (direis), moras em São Paulo e precisas ir longe assim? É que o preço valia a viagem, com todo o programa que estava incluso, e Itupeva está a uma hora de São Paulo. Então fui, vá cuidar de sua vida, interlocutor chato. O curso foi todo em uma cafeteira grande, uma Astoria, daquelas de dois grupos, e incluiu pesagem, moagem, descarte, limpeza do equipamento, regulagem de pressão, tudo o que é preciso para dominar o mundo dos baristas. Faltou só a experiência, mas isso fica para um dia qualquer.

É óbvio que esses cursos não vendem apenas o conhecimento, e não vejo nada de errado nisso quando o propósito não é apenas e tão-somente vender produtos. Havia grãos e utensílios também lá, para quem se interessasse em partir para aprofundamentos. Além disso, havia também a divulgação de artesanato temático, e me interessei por um método de filtragem, esse aí embaixo:


Ele tem uma cara meio industrial, meio laboratorial, por motivos óbvios: um bloco de cimento fundido em seção circular recebe um conjuntinho hidráulico, e neste, um funil de vidro faz as vezes de porta-filtro. Bastante simples e semelhante com a solução que montei para fazer cold brew, o trabalho pode ser posto para girar com a adição de um filtro V60 pequeno.

Daí para frente, é só colocar o pó e iniciar a percolação. Como não nasceu com o fim específico de ser um método pensado para a melhor extração possível, é preciso passar a água aos poucos, sob pena de transbordar a preparação. Usar um pó mais grosso ajuda na tarefa.

Nome do utensílio: Porta-filtro artesanal

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Grossa

Dinâmica: Como qualquer método de percolação. Cuidado com a carga de água, já que o funil tem bojo pequeno

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio

Vendo os últimos pingos cair no decanter, surge a pergunta na cabeça: evidentemente, vou criar um texto para este método também. Mas até quando isso vai se seguir? Todo santo dia surge alguma novidade, então minha tarefa será infinita. Se a cada cor de porta-filtro, ou a cada formato de bocal eu for criar um texto novo, nunca pararei de escrever. É contraditória essa nuvem pessimista sobre o que não é negativo, por vários motivos. Essa não é mesmo uma série finita, e eu escrevo sob inspiração, e não obrigação. O dia que eu não quiser escrever, eu não escrevo e pronto – não sou pago para isso. Mas fiquei pensando na multiplicação infinita e fiz um vínculo meio afetivo, meio consequencialista de que cada coisa que eu escrevo tem uma metaforização filial, o velho chavão de que pari cada um deles e que não sou só seu responsável, mas também seu admirador. Parece estranho tratar um texto como um filho.

Lembro das discussões na mesa da família sobre as quantidades adequadas de filhos, e de como o vinho e a idade tornavam as opiniões mais radicais. Hoje em dia, essa discussão traspassa a mera janta do sábado à noite e vai permear correntes filosóficas que dizem ser errado ter filhos. Fiquei com vontade de explorar esse tema. 

Primeiríssima coisa é fazer um disclaimer*. Não vamos tratar aqui da velha assertiva do senso comum de que os pobres se multiplicam como ratos. Ela é, em primeiro lugar, falaciosa, e também não cabe a mim discutir o que cada um faz de sua vida. Também não quero falar de uma modinha que tem por objeto uma ênfase nas desvantagens em ter filhos, que atrasam carreiras, desmancham corpos, detonam orçamentos, porque isso passa e, dialeticamente, vem uma corrente dizendo que devemos povoar o mundo. Minha ideia é falar de filosofia.

Em primeiro lugar, só conseguimos falar de vida quando passamos pelo rito iniciático do nascimento. É um momento que já carrega consigo uma simbologia, mas, em termos práticos, é traumático para o neonato: uma transição de um meio líquido, escuro e com temperatura controlada para o inverso disso. Seu próprio organismo passa a ter que dar conta de muitas das funções outrora exclusivas de sua mãe. O momento de sua primeira respiração é decisivo e não se processa sem dor, além de iniciar um processo de fome e sede. O próprio ato do nascimento consiste em uma passagem por uma fenda estreita somente possível dada a flexibilidade de suas articulações. A vida começa com o sofrimento.

Daí por diante, temos aquela velha certeza da morte, que pode ser próxima ou não. A segunda certeza vem deste intervalo – ele sempre será povoado de dores. Só não as temos vivas na memória cem por cento do tempo porque nossa própria sobrevivência psíquica depende de não estar permanentemente em sua expectativa.

Aí surge uma grande questão. O confronto entre a quantidade de momentos felizes e as dores e sofrimentos compõem uma equação em desequilíbrio. Em tese, nossa prole é aquela a quem mais amamos, a quem mais nos entregamos. Há inúmeras figurinhas de feicebuque enaltecendo a entrega das mães, que tiram da própria boca para dar aos filhos e que, tirando toda a pieguice, refletem uma verdade bastante abrangente – é rara a mãe que não dá o melhor que possui para seus filhos. E a eles que, ao dar a vida, damos a dor. Não seria essa uma atitude antiética?

A ideia de que a vida é ruim em si mesma não é nova. Jesus mesmo é um daqueles que diz não ser seu reino deste mundo, e que somente uma vida futura traria conforto aos que sofrem. É óbvio que o Cristianismo carrega em si a ideia ambígua de que a vida é sagrada, mas que necessita de muitas restrições para se chegar à vida autêntica, razão pela qual é somente com Schopenhauer que passamos a ter uma visão mais consagrada do desequilíbrio entre prazer e dor. Ele pontua a vontade como objeto metafísico do mundo (sintetizado no instinto de preservação) e a escravização que gera sua contínua ação. Dá algumas opções para solucionar a questão, como a ascese e a apreciação artística, mas deixa em aberto o valor de se preservar a existência como um fenômeno coletivo.

Uma das soluções que poderíamos pensar tem aquela famosa frase dos jovens rebelados contra os pais: “eu não pedi para nascer”. É uma assertiva que normalmente ocorre naqueles confrontos de gerações, mas que pode ir além do desabafo. Não pede para nascer porque pode sofrer e causar sofrimento e, sendo assim, torna-se questionável aquilo que é tomado como bênção. Será que é melhor não procriar? Não perpetuar a miséria, como diz o Machado da epígrafe?

Eu fui atrás dos argumentos antinatalistas e encontrei os principais fundamentos contemporâneos em dois autores: David Benatar e Júlio Cabrera, mas os pontos que o segundo levanta são bem mais complexos e intrigantes, razão pela qual vou tocar em sua filosofia em um segundo momento.

A questão encarada pelo filósofo sul-africano David Benatar é uma pergunta desafiadora. Não é crueldade perpetuar a vida pela via da procriação? É uma opção confortável hoje em dia, com tantos métodos contraceptivos. Ele trabalha a questão da vida que vale a pena através do valor que o prazer e a dor tem quando colocadas em uma balança. Desta forma, constrói uma tabela semelhante à que Pascal montou em sua famosa aposta, combinada com o pensamento agostiniano de ausência e presença. Ela funciona mais ou menos assim:

O prazer é bom;

O sofrimento é ruim;

A ausência de sofrimento é boa;

A ausência de prazer não é ruim

Percebam que a mancadinha desse argumento está no último item. Poderíamos raciocinar que a ausência de prazer é ruim, mas, de fato, não nos é mais doloroso passar o domingo sem a picanha do que com ela. Na verdade, é uma questão de expectativa: se eu nem espero ter a picanha, não me dói nem um pouco não a ter. Por isso, não faz sentido equiparar ausência de prazer com sofrimento. O mesmo não pode ser aplicado à equivalência adjacente. Não sofrer é sempre bom, sem a indiferença que pode ser causada pela ausência de prazer. Uma vez colocada em um esquema tabelado, temos a seguinte correlação:


Existência

Ausência

Sofrimento (ruim)

Sofrimento (bom)

Prazer (bom)

Prazer (não é ruim)

A conclusão é que existe um descompasso entre ambos, e Benatar deu a essa constatação o nome de assimetria do sofrimento. E ele caiu como uma luva para justificar uma causa contrária à procriação. Se nós nos propomos a amar nossos filhos, a melhor maneira de manifestar esse amor é não os ter, fadados à dor. Ter filhos é, essencialmente, um ato de egoísmo e de crueldade com quem mais deveríamos nos preocupar. É o antinatalismo pelo prisma filosófico.

Mas não parece muito simplista esse argumento? Benatar subdivide suas assimetrias em outras mais específicas para dar mais sustentação a ele. A primeira é a assimetria dos deveres procriativos, que diz ser eticamente obrigatório não criar pessoas infelizes, enquanto essa obrigatoriedade não se aplica a não criar pessoas felizes. Ou seja, quando temos filhos, é dever procurar a felicidade para eles, o que não é aplicável quando eles não existem. O segundo ponto é a assimetria da beneficência prospectiva, que consiste no seguinte: não há nenhuma questão moral na potencialidade de uma criança ser feliz, enquanto a potencialidade de que ela seja sofredora é um bom motivo para não a criar. O terceiro item é a assimetria retrospectiva da beneficência, que, trocada em miúdos, diz que podemos nos arrepender pelo sofrimento de uma pessoa que existe em função de uma decisão nossa, enquanto isso não acontecerá se esta pessoa nunca existir. E, por fim, a quarta assimetria é o sofrimento distante e as pessoas felizes ausentes, que se resume na tristeza que sentimos quando alguém existe e sofre, e sabemos que, se não tivessem existido, não teriam sofrido. A ausência de dor é boa mesmo quando existe a ausência de vida. Dessa forma, procura consolidar seu argumento e dar mais substância a ele. O antinatalismo conserta a assimetria pela abstenção de prazeres possíveis em confronto com sofrimentos certos. Melhor que remediar, é prevenir, parece nos dizer o pensador.

Eu, pessoalmente, parto de uma perspectiva meio nietzscheana para não ser aderente a esse conjunto de ideias. Penso que os grandes arrependimentos, quando estivermos em tempo de avaliar o frigir de ovos da nossa vida, são mais do que aquilo que não se fez, e não do que se fez. Tive três filhos, dois ainda com vida, e espero pelos netos com aquele mesmo espírito de reparação que tantos avós têm para viver com eles uma relação mais ilimitada, que o serviço pela educação dos filhos não permitiu. Entendo o posicionamento dos antinatalistas, e acho mesmo que são válidos seus argumentos, mas há limites em impor a cultura sobre a natureza. Ter filhos é natural do ser humano, ainda que tenhamos consciência de que a balança possa estar em desequilíbrio, numa posição que passa de qualquer fronteira pragmática. Benatar pode até acertar quando diz que há mais momentos de dor do que de prazer, mas a intensidade desses menores momentos aprazíveis pode superar os inúmeros pequenos momentos sofridos, e isso não está em sua balança.

No final, tudo isso me parece mais medo do que qualquer outra coisa. Paranoia? Talvez. Temos um mundo à beira de um colapso ambiental, e isso é um motivo aparentemente justo para não prolongar sofrimentos. Só que há lições que nos ensinam que o dia é feito para ser colhido, e o mesmo Nietzsche que citei tem uma assertiva que considero definitiva: a vida é um pacote que compramos pronto, sem controle de como virá a ser, e se preocupar com tanto excesso tolhe mais o que podemos ter de bom que o que podemos ter de ruim. Eu prefiro morrer afogado a morrer de sede.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não tem em português ainda. Melhor: exercitei meu italiano, que andava meio parado.

BENATAR, David. Meglio non essere mai nati. Il dolore di venire al mondo. Milão: Carbonio, 2018.

*Disclaimer do disclaimer: é bom dar uma posicionada sobre essas questões de anglicismos. Existem certos termos que, embora haja correspondentes na língua natal, traduzem tão bem o que se quer dizer que sou favorável ao seu uso. Neste caso específico, o termo disclaimer traz uma ideia de “deschamado” que inexiste em português. E antes de ser chamado de anglicismo, é preciso saber que o próprio termo é um galicismo dentro da língua inglesa, o que comprova que é preciso cuidado ao se considerar um purista, porque esse órgão chamado linguagem é uma das coisas mais complexas que temos na cultura humana.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

O café filosófico do quotidiano – uma frase não é o texto todo

(Às vezes pegamos uma pedra e esquecemos de olhar para a montanha inteira)

“Em política, os alemães pensam o que os outros povos fazem. A Alemanha era sua consciência teórica. A abstração e a arrogância de seu pensamento corriam sempre em parelha com a limitação e a mesquinhez de sua realidade”.

Karl Marx

Olá!

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Eu falo muito de café por essas bandas, mas a patroa é igualmente aficionada pelos derivados da rubiácea. Normalmente, trabalhamos em tabelinha, onde eu me fixo mais nos métodos, enquanto ela fica antenada nos grãos em si, achando aqui e ali algumas preciosidades. Acontece que o mundo não é assim tão rígido, razão pela qual ela também curte umas variaçõezinhas no preparo, o que vai desembocar em métodos diferentes. Com isso, também fica de olho nas novidades e faz acréscimos em nossa pequena coleção. Ela acabou trazendo uma peça curiosa, que mistura características de um filtro metálico com uma Clever. Seu nome é Handy Brew.

É um método mais declaradamente para chá, mas que é aplicável a café também, segundo as impressões de alguns baristas que acompanhamos. De fato, ele se acomoda muito bem a esse propósito, mas funciona, como eu já disse, com sistemas aplicáveis confortavelmente a café. Ele se assemelha muito à Clever, que permite reter a água antes da percolação, mas, no lugar de um filtro de papel, aqui se encontra um filtro metálico que faz o mesmo serviço, com a vantagem de coar mais óleos, mas com o deslize de deixar passar mais resíduos.

O resultado é que é possível obter mais de pós renitentes, pelo simples motivo de deixar mais tempo de contato com a água.

O escoamento é feito pelo seu fundo móvel, que libera a percolação assim que se pousa o conjunto em um decanter e ocorre o shut off, nome tucano para escoamento da água.

Nome do utensílio: Bule infusor

Tipo de técnica: infusão

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: De média para grossa

Dinâmica: O pó é depositado no fundo do utensílio, onde será preenchido com água fervente. Após o tempo desejado, o bule será colocado em um decanter para que ocorra o escoamento do líquido

Resíduos: Médios

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio

Eis um exemplo de uso diverso que acaba sendo distinguido em contextos específicos. A própria caixinha em que o objeto é comercializado indica seu uso para chá, mas nunca o utilizamos dessa forma em casa, sendo, para nós, um método de extração dentre outros. E, sim, gostamos também de chá.

Não é incomum, vou pensando enquanto aguardo meu café, que nossos usos e costumes tergiversem propósitos originais, com o proveito que achemos melhor, mas tem vezes que, de fato, miramos o pé e acertamos o olho.

Desta mesma forma, os usos mais evidentes de obras de filosofia nem sempre são aqueles para os quais elas nasceram. Às vezes a gente pinça uma simples frase e a consagra, e esquece de tudo o mais que foi dito pelo pensador. É exatamente o caso da obra “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, escrita por Karl Marx. Eu mesmo fiz esse exercício, porque quis elucidar o sentido da frase “a religião é o ópio do povo”, neste texto, e não comentei mais nada sobre o livro em questão. Aliás, provavelmente por ser um livro da primeira fase de Marx, publicado postumamente, houve aprimoramento de suas ideias em obras posteriores, o que explica bem ser relegado a um plano inferior, e que termina por ser mais lembrado pela frase famosa (e nem sempre bem compreendida).

Mas sempre há tempo, e eu vou dar um leve repassada nesta obra, que não é tão imatura ou desinteressante quanto pode parecer pelo fato de se ter tornado célebre por uma frase que, além de tudo, fica meio fora do contexto geral. Dispa-se de seus preconceitos e me acompanhe.

Hegel colocou toda a história em uma espiral dialética, como já expliquei aqui, em que a contraposição de um oposto fazia com que a realidade presente se encaminhasse para uma espécie de ponto de equilíbrio, o que consistia em uma nova instância da realidade. Esses ciclos eram contínuos, e sempre uma situação oposta à atual fazia um confronto, até ser resolvida através de uma nova síntese. Assim, do confronto da tirania com a liberdade, surgia uma monarquia constitucional. Só que, como a roda nunca parava de girar, a nova monarquia também é colocada contra uma oposição, e dela surgia uma democracia. Ocorre que, ao se atingir a sociedade burguesa, o ciclo se encerra, plenamente realizada no cume da racionalidade que conduz a história. Hegel considerava esse modelo de sociedade civil como a mais perfeita síntese desta racionalidade, e, com esse estatuto atingido, não há como caminhar para nada mais racional. 

Com o fim da espiral dialética, a sociedade teria atingido o Espírito Absoluto, que, no dizer de Hegel, é o momento de estabilidade em que não se justifica mais que as tensões entre tese e antítese venham a produzir novas sínteses. Tudo isso falando bem por cima.

Sabemos que Hegel usava e abusava do termo “Espírito”, que não tem o sentido místico de alma atribuído pelas religiões, mas do flutuar lógico que espelha as relações entre a consciência e a natureza. Além de difícil, Hegel é extremamente abstrato, distante da natureza própria, o que causa urticárias em um materialista como Marx, que concorda com essa mecânica em um único ponto – há um motor para a realidade. Ele não trata do assunto nessa obra, mas, no seu ponto de vista, este motor é completamente material: a luta de classes, como já discorri aqui, o que fixa o distanciamento sobre ambos os pensadores.

Sendo assim, tudo o que Hegel considerava como o ápice da civilização era, para Marx, resultado de condições históricas contingenciais. Prova disso é como o sistema de garantias constitucionais tão caro à burguesia poderia ser suspenso de acordo com os sabores das circunstâncias que se apresentavam no momento, mas vamos com calma nessa hora.

A sociedade burguesa emerge da falência dos absolutismos, os regimes onde reis (e o clero) governam de acordo com suas vontades, encontrando seu auge intelectual no Iluminismo. Seus ideais pregavam, essencialmente, a liberdade, o que garantiria um progresso maior para as sociedades. Em linhas bem gerais, os regimes absolutos se caracterizam por restrições que atendem interesses daqueles que estão sentados nos tronos, tanto reais, quanto clericais. Como a determinação dos ocupantes do poder se dava essencialmente por linhas sucessórias hereditárias ou colegiadas, tínhamos ferido um dos principais sustentáculos contratualistas, o consentimento dos governados, o que era um permanente fumante sentado no barril de gasolina. Isso acontece porque a concordância no estabelecimento do reinado vai se perdendo com o decorrer do tempo, e o mesmo não se renova com o suceder de gerações. Sendo assim, os conflitos vão se tornando inevitáveis, até que se estabeleça um sistema de garantias constitucionais que evitem a vontade exclusiva de um monarca, mas dos próprios governados: direitos humanos, liberdade de manifestação, laicidade do Estado, tolerância religiosa e política, dentre outros. Essa construção política atende perfeitamente os anseios da classe burguesa e é sob esse contexto que ela chega ao poder. Essa classe, formada especialmente pelos comerciantes que emergem do renascimento das cidades após o feudalismo medieval, passa a dominar cada vez mais os mercados e, para isso, cai como uma luva a ampla liberdade e manutenção de recursos em suas posses. Com o tempo, mais e mais desses meios ficam em suas mãos.

É esse estado de realidade social que Hegel enquadra como chegada ao ápice do Espírito, e que vai, daí por diante, se perpetuar no meio social como sistema perfeito. Contudo, é aqui que Marx aponta seus canhões. Marx define que a filosofia de Hegel nada mais faz do que inverter sujeito e predicado. Ele interpreta que Hegel, ao criar uma entidade mística como o Espírito Absoluto e derivar dele uma teoria de Estado, nada mais está fazendo do que interpretar a sociedade prussiana da época. A chegada da burguesia ao poder é uma das tantas instâncias da realidade dentre outras, regidas pelas circunstâncias históricas e sujeita a mudanças em novos processos dialéticos, porque seu motor continua em funcionamento. Não há um Espírito, há condições sociais.

Com a ascensão da burguesia, antes submetida à monarquia, surge uma nova classe, antes oculta – o proletariado. Eles têm menos meios, já que ao menos os burgueses tinhas recursos financeiros, mas são muito numerosos. Com o crescimento da indústria, os proletários vão se tornando cada vez mais necessários, mas cada vez menos valorizados, sendo que somente através de sua união se consegue construir uma ferramenta da resistência.

E o que temos aqui? Todo o sistema de garantias que os burgueses edificam para sua própria proteção é suspenso quando sua aplicação se volta ao proletariado. Aqui não vale mais a livre associação, quando os operários e camponeses tentam fundar sindicatos; não vale mais a liberdade de manifestação, quando os proletários querem distribuir panfletos; não valem mais os direitos humanos, quando as massas querem melhores condições de vida e trabalho. Se esta é a sociedade ideal hegeliana, qual é o lugar do operariado e do campesinato? Que estabilidade se pode esperar, ou que sociedade sem tensão se tenta conseguir com tal volume de descontentes? O próprio Hegel reconhece que é muito difícil uma solução via Estado moderno para os problemas do proletariado, incluindo a pobreza extrema. Por isso, Marx define que a teoria de Estado de Hegel é uma grande furada, uma tese fundada por e para burgueses.

Baseado na visão do Espírito, Hegel, segundo Marx, trata o Direito como uma entidade abstrata, que tem vida própria e independente da realidade histórica a quem deveria legislar. Mas é a sociedade civil, aquela que existe, que se move, que produz, que constitui a base do Estado e, por consequência, do Direito. Hegel propõe que toda massa proletária faça parte de um Estado alijado, sem direito a participação na sua própria defesa de interesses, um não-Estado dentro de um Estado que, no final das contas, nada tem de diferente com relação à monarquia. Eu lembro de um vizinho nosso que, conformista, sempre dizia que seja no Capitalismo, no Comunismo, na ditadura e fora dela sempre resta ao povo trabalhar, e pouco mais do que isso. Parece mesmo ser essa a ideologia defendida por Hegel, e que Marx tão duramente combate.

Quem está acostumado com a escrita marxista pode estranhar um pouco está obra. Isso se justifica pelo fato de ser um escrito de sua juventude, guardado por anos em uma caixa, e que só foi levado à publicação postumamente. Embora já esteja em acordo com seu ideário consolidado, ainda não tem um conjunto já tão bem apurado, como seria de se esperar em um jovem estudante. Ele vai retomar a temática em livros como A Ideologia Alemã e 18 Brumário de Luís Bonaparte, onde já temos um formato mais próximo ao pensamento final de Marx.

Ao fim e ao cabo, é um livro que perdeu sua força por conta das obras posteriores, mais completas e menos fragmentarias, mas que não deixa de ser um documento histórico digno de registro, que fala mais para nós do que apenas ficar perturbando a religião com uma frase de efeito. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como eu já citei este livro de Marx em outros textos, achei melhor indicar a obra criticada, do nada fácil Hegel:

HEGEL, Georg. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.