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segunda-feira, 22 de setembro de 2025

O super-homem de Nietzsche vai além da capa e da cueca por cima das calças

(Super-homem é, para a maioria das pessoas, um personagem do universo HQ. Mas, em filosofia, não só)

“O super-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade proclame: que o super-homem seja o sentido da terra. Eu vos conclamo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis naqueles que vos falam de esperanças sobrenaturais”.

Nietszche

Olá!

E lá vai mais uma edição do Super-Homem, ou Superman, como acabou virando consenso entre os novos cinéfilos. Seu subtítulo é Legacy, o que para mim, indica já uma questão que mistura continuidade e infinitude – novas versão, por certo. Em algum lugar, eu já falei para vocês sobre minha pouca afinidade com cinema, embora não seja propriamente um detrator. Apenas não tenho lá aquela sanha por lançamentos, em especial nessas séries que giram em torno de uma mesma temática. Não tenho também paciência em pagar um saco de pipoca mais caro que o ingresso, nem enfrentar filas para entrar no shopping, para comprar o ingresso, para desistir da pipoca, para acessar meu lugar. Estar naquele tempo em que não há o entusiasmo da juventude nem os direitos da velhice dá nisso.

É pior quando se trata desses filmes que desafiam a capacidade de suspender a descrença. Embora a tela grande amplifique as sensações visuais, esse tipo de filme perfura facilmente a barreira que nos faz sublimar a consciência de que não se trata de uma realidade posta à nossa frente, porque tudo é incrível demais, espetacular demais, infactível demais, e isso acaba atrapalhando a capacidade de extrair alguma coisa de substrato na estória (o que nem existe, por vezes). Além disso, embora eu tenha sido um leitor assíduo do universo Marvel na juventude, o fato é que criei um ranço idiota com heróis da DC, onde pontua o personagem em questão. Mas, nem só por isso, filmes de herói me provocam a incômoda sensação de porre sem bebida. Não se trata de pedir para que mudem de canal em casa alheia, mas é mudança na certa na minha. Não me chamem de chato, pode ser que Freud explique.

Acontece que eu milito informalmente na filosofia e esse nome tem outro significado para mim. Muito mais voltado para a ética, este personagem não é um ser concrescível, mas uma espécie de tipo ideal que nos faz exercitar a mente em busca de uma existência mais legítima. Se pensarmos no herói dos quadrinhos, que tem um desenho de justiça bem definido por regras morais, chega a ser seu oposto. Embora haja controvérsias, estou falando do decantado super-homem de Nietzsche. Não é algo que se explica em dois minutinhos. Portanto, sentem-se, crianças, e me acompanhem.

O super-homem (übermensch em alemão) nietzscheano é um conceito que indica um objetivo a ser perseguido, e que só é alcançado por aquele que se coloca acima dos limites impostos pela moral dos ressentidos. E isso começa pela maneira com a qual esse mundo é construído.

Há estudiosos que preferem a tradução além-do-homem, que agrega elementos à interpretação do termo, como a ideia de que a humanidade é algo a ser ultrapassado em objetivos que vão além das regras de rebanho, e que tira um pouco do ar elitista e eugênico dessa história de super, mas gosto mais do uso que faço aqui, porque é mais fiel à origem que Nietzsche foi buscar em Helvetius, o homme supérieur. A palavra super, tão usada na cultura ianque para designar os mais fortes, os mais rápidos, os mais poderosos, tem origem no latim superus, que significa aquele que está mais ao alto, mais acima. Desta forma, super seria uma apócope da palavra “superior”. Um super-homem seria, portanto, um homem que está acima dos outros homens, e o personagem dos quadrinhos é, de fato, mais forte e mais poderoso do que todos os demais homens. Para além da criação ficcional, entretanto, o super-homem de Nietzsche possui um sentido menos ligados aos bíceps, e mais à moral.

Nietzsche entende que a moral praticada através dos tempos é construída a partir de uma lógica do mais fraco. Quando defrontado com aqueles que são mais capacitados, este homem se ressente e lança mão da única estratégia que tem à sua disposição: a linguagem. Através da manipulação hábil dos discursos, ele consegue desvirtuar as qualidades positivas da vida em defeitos, e o que era bom, passa a ser considerado ruim. Isso vai se imbricando no substrato de nosso pensamento de modo a ser vergonhoso quando temos alguma característica virtuosa. Parece que não? Então pense em quantas vezes você mesmo colocou sua modéstia à parte, quase se desculpando por fazer algo com maestria. Ou quando alguém te elogia você diz que “é bondade sua”? Isso é sinal de que você também é afetado por essa lógica. Um jogador vence uma partida e o primeiro agradecimento vai para deus, que não mandou aquela canhotinha no ângulo. Esse mérito é tirado de si mesmo e colocado para o outro, para alguém fora dessa virtude. Notou como ser bom em alguma coisa é quase vexatório, é inferiorizante, é uma inversão de valores?

Notem que a ferramenta do mais fraco então é inverter a lógica do benefício da força, transformando-a através da linguagem em defeito. Através de construções de discursos da piedade, tudo o que é virtuoso, intuitivo e criativo fica colocado no erro, através da extensa criação de regras feitas sob medida para inferiorizar o que seria vantajoso.

Este uso linguístico denuncia que o mais fraco constrói uma realidade que não é a nossa. São criados ídolos que passam a ser perseguidos como se eles fossem objetivos a serem seguidos, porque a realidade é ruim em si mesma, e, dessa forma, os mais diferentes idealismos são colocados em seu lugar. Não se trata de ideal naquele sentido de fazer uma viagem no ano que vem, mas de criar um afastamento entre o real e o ideal, de tornar o mundo impalpável em mais importante do que o mundo tangível. Os homens buscam ideais e fogem do real.

Os mundos ideais são formados por criações em que as forças próprias do universo não mais atuam, e são substituídas por convenções que se acomodam a essa moral bipolar do certo e errado, uma espécie de caminho para escapar do que é corpóreo, do que é físico, do que é material, onde as forças reais atuam. Praticamente toda a moral tradicional se baseia nessa ideia.

Embora a atitude escapista possa parecer simplória, o fato é que ela moldou grandes sistemas filosóficos e religiosos, que acabam por formatar a vida da maior parte das pessoas. Nietzsche começa falando do Platonismo, um sistema de pensamento que retira a perfeição das coisas reais e a coloca no imaginário mundo do intelecto. Um exemplo que gostei de ouvir em algum lugar é o da coxinha, que tem formato cônico, ou da esfiha, que é triangular, o esférico bolovo ou o cilíndrico croquete. Você vai no boteco e olha para um croquete de carne, e sabe que ele é cilíndrico, mas, se vê-lo bem, mesmo a olho nu, verá que ele é todo irregular, amassadinho aqui, saliente acolá. Só que as coisas não são assim tão prosaicas. Mesmo se você produzir o mais brunido cilindro na mais avançada oficina, verá que, no micrômetro, ele não é a perfeita combinação de retidão e circularidade. Ainda que a tecnologia vá sendo aperfeiçoada, no nível atômico não se conseguirá uma forma perfeita, havendo pouco milhares de angstroms para lá do que para cá. Elas, as formas perfeitas, só existem em um lugar: no intelecto. Lá, pela via da matemática, teremos o cilindro perfeito, a esfera perfeita, o triângulo perfeito, o cone perfeito. Sabemos que o bolovo se assemelha a uma esfera porque temos essa noção partindo do nosso intelecto. A forma esfera “doa” a sua esfericidade, por aproximação, ao delicioso e indigesto acepipe.

Ora, de que serve essa noção se nós não a encontramos na realidade? Pugnamos por uma perfeição que não existe, e enquanto nos preocupamos em baixar o bolovo a fórmulas, esquecemos do que realmente importa, que é fruir da delícia, ainda que a custo do consequente Sonrisal®. O mesmo se aplica ao Cristianismo, que faz sonhar com o paraíso em troca da aceitação de uma enciclopédia de regras, que punem o que temos de mais nosso: o corpo e o pensamento. Dos sete pecados capitais, gula, luxúria e preguiça são atentados contra o corpo, são atos puníveis porque são manifestações da nossa própria natureza que clama pela concretização de sentido. Isso se ainda não incluirmos o orgulho do corpo bem feito e da mente prolífica. Só se chega ao paraíso pela negação das súplicas de nossos corpos.

Essa ideia se aplica a qualquer forma de idealismo, a qualquer ideia de que há um mundo lá fora que melhora a vida que temos ao nosso dispor. Isso passa pelo político e pelo científico: o Comunismo é o idealismo em uma sociedade onde há igualdade de posses, onde não há miséria, onde os próprios trabalhadores colhem diretamente o fruto de seus trabalhos e não há uma elite dominante para fruir do suor alheio; o Nacionalismo é o idealismo de que existe a pátria perfeita, que congrega as idiossincrasias de um povo e o impulsiona para o progresso e destacamento entre as nações; o cientificismo é a crença de que a ciência trará a todos condições de vida ideais, onde o conforto e a saúde serão obtidos ao toque de um botão virtual do celular. O mundo real continua mostrando a desigualdade entre classes, a nação débil diante do dinheiro dos bancos, a doença formatada por um vírus inesperado, e recusamos esse mundo feio, onde nós mesmos não nos encaixamos. Platonismo, Cristianismo, Comunismo, Patriotismo, Cientificismo... são todos inatingíveis e escapam daquilo que entendemos por realidade em si mesma. É exatamente isso a que Nietzsche dava seu peculiar conceito de niilismo, conforme já ensaiei neste texto, a negação do mundo onde agem as potências reais.

Nietzsche então lança o desafio do eterno retorno. Você está satisfeito com sua vida a ponto de repeti-la eternamente? Gostaria que tudo fosse exatamente igual, nos seus mínimos detalhes? Incluiria todos os erros, vergonhas, decepções? Se a resposta é não, alguma coisa está errada com a sua vida. Seus valores e suas escolhas estão te levando a negar sua própria existência, a estar entre os fracos, a estar na fase do camelo, que carrega em suas costas todo o peso de uma moral que o exclui da realidade.

É aqui que nasceu o super-homem. Ele é aquele que compreende que as amarras morais os desvinculam de seus próprios potenciais e vai além delas, produzindo o novo, o criativo, o superior. O super-homem não é aquele que subjuga ou que é necessariamente cruel, que quer superar os outros. É aquele que busca superar a si mesmo, fazer de sua vida, aqui na Terra, uma obra de arte, privado de falsas ilusões de que é fora daqui que está existência. O super-homem aceita a vida como ela é, com tudo o que tem de bom e mau, pacote completo, justamente porque transcende esses valores éticos.

O super-homem, portanto, não precisa ser alguém que seja um senhor dos exércitos, mas alguém que ri na cara dos valores prevalentes, moldados pela moral de rebanho que procura igualar todos os homens. O super-homem é dado ao êxtase e à criatividade, e, por isso mesmo, Nietzsche o sintetiza no artista, capaz de gerar um mundo novo a partir de sua própria consciência. O super-homem é uma postura, um modus vivendi e uma oposição à sociedade produtora de escravos.

É preciso dizer que o conceito não é tão bem fechadinho assim, abrindo interpretações ambíguas que foram desembocar em apropriação pelo regime nazista, mas a questão é muito complexa para ser tratada aqui. Vamos deixar para breve.

De vez em quando, ouço alguém dizer que “nunca se arrepende do que fez, mas do que não fez”. Adoto e acho uma das mais nietzschianas de todas as frases. E já me perguntaram como eu poderia exemplificar o super-homem. Propus um exercício mental: imaginem que há duas filas de entrega de alimentos na Praça da Sé, uma perto da Catedral, outra pelos lados do Marco Zero. Ambas atendem cem pessoas, com o mesmo cardápio. A diferença fundamental é que uma é composta por um grupo que atua por uma igreja qualquer, enquanto o outro age sozinho, tentando provar a si mesmo e aos outros que consegue dar conta de alimentar toda essa gente. O grupo se move pelo propósito caritativo, o outro pela sua própria vontade de potência. Notem que a diferença não está no resultado, mas na motivação que os leva a praticar a ação: enquanto o grupo busca conciliação com a divindade que os move, age não por si mesmos, mas para cumprir o mandato de seu senhor; o homem sozinho busca um propósito só seu. Notem que ele não age por outro além dele, que age por conta de seu próprio impulso vital, procura se superar e se afirmar como um primado do mudo real. Percebam que isso não tem nada a ver com força no sentido porrada, mas de superação. O super-homem não é aquele mais marombado, com o abdômen mais riscado, com as panturrilhas mais definidas ou com mais cuecas por cima das calças, mas aquele que age segundo seus impulsos vitais. ESSE é o Super-Homem.

Perguntando a quem me levantou a questão quem fazia a superação de si mesmo, recebi a resposta de que o ato verdadeiramente correto é o do grupo religioso, porque atuava com amor. E eis que me senti como o louco do mercado, fabulado pelo próprio Nietzsche na definição da morte de Deus: “eu venho cedo demais, ainda não é dado meu tempo”. Ensinar é didático para os dois lados. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Eu teria muitos livros de Nietzsche para recomendar, mas sua escrita é tão fragmentaria que fica difícil de apontar onde ela está mais completa. Vamos de Zaratustra mesmo, porque lá, embora bastante romanceado, o conceito é explorado com mais quantidade de citações.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Um Livro para Todos e para Ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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