(Um ano é uma coisa... três anos são outra, totalmente diferente)
Olá!
Neste último dia do ano da graça de 2023, além das habituais
revisões de ações e omissões, tenho uma efeméride de pequena monta para o
universo, mas que faz todo o sentido para este espaço cada vez menos
frequentado: há três anos que adotei a disciplina do nulla dies sine linea,
ou seja, todo santo dia ou dia santo escrever alguma coisinha que fosse, para
dar andamento neste meu humilde trabalho. Não deixei de falar sobre o fenômeno
por ocasião do seu primeiro aniversário, como pode ser lido aqui.
Uma nova análise parece ser necessária, decorrido o tempo e das coisas que não
são mais como eram.
Se eu estou levantando o questionamento, é sinal de que
existe algum tipo de controvérsia nele. Como em tudo na vida, há mais de um
lado. O bom, eu já disse naquele texto de dois anos atrás: um regramento sempre
induz uma produtividade mais alta e dá um sentido de responsabilidade na
execução da tarefa. Credo! Está parecendo aqueles consultores de
empreendimentos, e esse já me coloca do lado ruim, onde tudo fica forçado,
longe da espontaneidade que sempre gostei de pôr nos meus textos. Nunca caí na
armadilha do truque sujo de escrever somente por escrever, como se fosse uma
superstição, aquela coisa de desvirar o chinelo para a mãe não morrer, mas
houve longos trechos que eu precisei reescrever inteiros, dada a ojeriza que me
causava sua leitura posterior, seja pela escrita açodada, seja pela precariedade
das ideias ainda mal nascidas. Será que não acaba sendo o próprio paradoxo do
método que me impus?
Voltando para o lado positivo, nunca é ruim fazer uma
revisão. Isso porque deixamos escapar ideias mal expressas e erros de português
mesmo. Claro que não sou um conservador castiço, daqueles que invalidam todo um
conjunto filosófico em nome de uma vírgula mal colocada, mas é sempre bom
lembrar que um texto é composto não só das linhas das quais é escrito. Muito do
que está nele vem de uma conjunção de inspiração e conhecimento. Isso acontece,
vejam vocês, até com o mais técnico dos textos, justamente porque é preciso
saber transmitir ideias e conhecimentos, e nisso consiste a arte do texto bem
escrito.
Só que a coisa vai de mal a pior. Com a modéstia escondida
no baú, não falo de mim mesmo, mas do mundo que me cerca. Vejo os cursos que o
pessoal de capacitação do meu serviço acham importantes, e os conteúdos ficam
entre o risível e o soporífero. Mas há outras pessoas que enfrentam alguma
dificuldade naquela coisa de coesão, coerência, concisão e congêneres. É muito
raro encontrar alguém que efetivamente saiba o que está escrevendo, e os tempos
de escrita e abreviaturas zapzapeanas agravam a dificuldade linguística. Um
texto começa sua beleza por um ponto muito mais simples do que estilo, criatividade
ou rebuscamento. Começa pela sua correção. E isso tem se perdido cada vez mais.
É bem verdade que perpassa em mim momentos de arrogância,
que são finalizados por insights dolorosos, que me põe para baixo em alguns
momentos, numa longa cadeia de causas e consequências que por vezes me
desarmam, e só uma disciplina quase religiosa me repõe no caminho.
Vou dar uma amostra. Quando eu ainda escrevia letras de
músicas, lá pelo início da década de 90, criei o seguinte verso…
“É espremer o sumo 'inda antes dos sarmentos”
… com o delambido apóstrofo e tudo. A música se chamava
“Levógiro”, que, em atomística, significa o elétron que gira no sentido da
esquerda, o lado errado, o anti-horário, que é imprescindível na relação das
forças, mas justamente por fazer força ao contrário. Aí um belo dia veio a
centelha: quem sabe que porra é um sarmento? Quem saberá o que é levógiro e,
mesmo sabendo, quem conseguirá estabelecer a relação entre o giro para esquerda
e a vida torta, principalmente porque o título não é mencionado nenhuma vez na música?
Para quem eu quero falar além de mim mesmo?
Compus pouquíssima coisa depois disso, pouca mesmo, mais
para finalizar alguns textos que eu tinha começado do que para trazer poesia a
novas ideias. Teve seu lado bom, porque minha cabeça migrou para a filosofia,
mas o reconhecimento da inutilidade de suas obras é sempre doloroso, e a coisa
foi ficando tão para escanteio que, de repente, não me vi mais escrevendo nada,
para que ninguém pudesse entender. Escrever letras de música
sertaneja eu deixo para os especialistas na área.
Parte dessa conclusão, entretanto, não vem de uma assunção
de meu pernosticismo, mas do duplo fator desconhecimento-preguiça que eu sei
existir nesse nosso Brasil varonil, Terra Papagalia que judia de seus filhos
lhes negando o alimento intelectual. É muito comum por estas plagas que a
dificuldade de um texto já seja motivo para que se desista dele de bate-pronto,
o que é péssimo, tanto para compreender quanto para se fazer compreender.
Emerge que alguma coisa seja feita. Não se trata de mero
purismo, mas conseguir uma comunicação a mais próxima possível da realidade que
se busca espelhar começa por um domínio mínimo do código. E isso tem se
demonstrado difícil de conseguir. Vou dar um exemplo bem próximo a mim.
Trabalho com especificação de requisitos. Isso significa que
eu vou pegar informações com o cliente para descrever o que um módulo de
informática qualquer deve fazer. Eu trabalho com a fase mais macro, mais
grossa, gerando documentos que o cliente possa entender, e repasso esses
artefatos para que um analista os refine e transforme em uma linguagem mais
técnica, para que os desenvolvedores possam realizar seu trabalho. Trocando em
miúdos, eu trabalho mais do lado do cliente, enquanto o analista trabalha mais
do lado dos desenvolvedores. Minha linguagem está mais para a regra de negócio;
a do analista, para a regra de sistema.
Acontece que, ainda que o conhecimento técnico do analista
não esteja sendo colocado em questão, o fato é que por vezes parece que o gajo
esqueceu que ele precisa escrever em português. Não se trata de pugnar por
questões de estilo, mas de algo mais básico: a inteligibilidade dos textos. Um
texto que não pode ser bem compreendido não cumpre sua função, e sempre gera
entendimentos dúbios, o que pode ser fatal na área de sistemas. Depõe contra o
próprio analista, já que o cliente sempre poderá afirmar que não era aquilo o
que queria, e um texto cheio de ambiguidades abre margem para essa escapadela
marota. Portanto, embora gerundismos e repetições de palavras possam geram
textos feios, porém inteligíveis, não são ainda o que há de pior. O problema
está na ambiguidade que se obtém a partir da escrita deficitária, e, num campo
onde sempre estamos inferiorizados (quem trabalha em informática sabe do que
estou falando), damos ao verdugo a peia que será aplicada em nossas costas.
Na equipe com a qual trabalho, temos doze analistas de
requisitos. São todos bons na área, bons mesmo, mas poucos se salvam no aspecto
que mencionei acima (já peço desculpas a algum deles que vier a ler este texto,
mas eles sabem o quanto eu sou chato). Eles alegam que precisam lidar com
muitos textos em inglês, o que é verdade, mas é a base sólida na língua mãe que
te dá a salvaguarda. Quando eu faço as revisões, vira um festival de rabiscos
vermelhos, como se fosse a correção de uma prova colegial. Às vezes, o nível de
incompreensão é tal que preciso chamar o analista para entender o que ele quis
dizer. Em geral, a ideia central está certa, mas tão mal redigida que perde
todo seu sentido. E isso me enche de desgosto.
Dei uma recomendação ao chefe geral: faça uma estante com
livros de autores clássicos, do tipo Machado de Assis, Aluísio de Azevedo e
outros, e disponibilize para os analistas. Quem for "pego" lendo um
desses livros, não terá nenhum tipo de desconto, porque seu valor será
considerado o mesmo de um curso técnico. Parece jocoso, mas não é. É uma
maneira de induzir algo que já deveria ter sido feito no processo educacional.
Aprender a escrever bem passa pela etapa de aprender a selecionar as leituras. Não
se pode esperar conseguir de um livro de piadas aquilo que está disponível em
um clássico da literatura. É só isso.
Eu procuro, sinceramente, exercitar o melhor português
possível nas minhas escritas. Ele não é perfeito, porque, justamente por ser
rica, é uma língua complexa, cheia das mumunhas e macetes. Em média, meus
leitores conhecidos dizem que escrevo bem, que me faço claro e não cometo
grandes bobagens ortográficas e gramaticais. Certo: há muita escrita que eu
coloco no coloquial, para dar algum tempero de conversa, mas a grande chave
está na capacidade de se fazer compreender. Se eu te falo e você me entende,
está cumprida a tarefa. É disso que eu estou falando.
À parte disso, e voltando ao assunto principal, a eficácia
do método se mostrou declinante no transcurso do triênio. O mundo perfeito
seria amplificar o grito de guerra para nulla dies sine eidos, em
flagrante maçaroca que mistura latim e grego, mas para sintetizar a ideia de
que não basta a linha, que, por si só, pode ser mera perfumaria, mas um
desenvolvimento mais inteiro, mais coerente, que expresse uma ideia mínima. Só
que, se no primeiro ano eu bati recordes de produtividade, a partir do segundo
eu voltei à mesmíssima vaca fria de sempre, inclusive com muito declínio nos
últimos tempos. Este ano, por exemplo, tive um belo de um vazio nos últimos
meses, que deram uma triste machucada nas estatísticas. É que a gente é vítima
das circunstâncias, inevitavelmente. Tem horas em que os miolos viram tripas, e
não é muita coisa boa que se consegue pensar nesses termos. Enquanto eu comecei
o processo durante a pandemia, e havia de fato algum tempinho sobrando, a vida
que se aproxima da normalidade nos afasta desse mesmo tempinho. A pandemia, se
é que podemos chamar de lado positivo, trouxe uma chance de nos tornarmos mais
organizados, na melhor acepção dessa palavra. Uma vez absorvidos os benefícios
de achar espaços e horários, poderíamos levar para todo o restante da
existência uma organização, com margem, é bem verdade, mas com uma espécie de
guia.
Mas, que nada. A partir do momento em que você se encontra
de novo com a vida, ela volta a te dominar, empurrando velhos hábitos goela
abaixo, e tudo volta como antes, com suas novas programações virando um tempo
bonito na memória, no más. É bem certo que nossa inércia ajuda a
atrapalhar, e pouco lutamos para não se deixar levar pelo arrastão, mas isso é
um bom tanto pelo cansaço. Eu já estou meio de saco cheio da vida, admito. Há
momentos que o nulla dies sine linea vira nulla dies sine cruce,
lema de uma ordem cristã que propugna que carregar cruzes diariamente é a
essência de sua fé. Eu vejo o lado espinhoso da frase, e em nada isso me
agrada.
Só que continuo gostando de escrever, e isso, por enquanto,
não vou deixar para trás. Tenho prazer legítimo em retomar antigos textos,
verificar quais estão devidamente expressos, quais necessitariam de melhorias,
e até de quais eu me arrependo, porque sempre há tempo (enquanto há vida) de
revisá-los, de acrescentar coisas, de atualizá-los para o momento atual. Essa é
a magia do formato blog: te dar uma precisão cronológica. É possível ter um
espelho do seu pensamento no decorrer do tempo, e isso é muito bom.
A questão agora é se, afinal, vou abandonar a estratégia do nulla
dies sine linea ou se pretendo mantê-la. Isso vou decidir amanhã,
dependendo até mesmo do meu estado etílico. Bons ventos a todos e um bom ano
novo!
Recomendação de leitura:
O termo nulla dies sine linea foi criado por Plínio,
o Velho, conforme contei há três anos. Entretanto, seu registro na pedra só
veio na Idade Média, pelas mãos do sacerdote e literato Polidoro Virgílio.
Segue indicação do livro em que o faz, em espanhol.
VIRGÍLIO, Polidoro. Libro de Proverbios. Madri: Akal,
2007.
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