(Você tem certeza que sabe o que é a Arqueologia?)
“O passado não reconhece o seu lugar… está sempre presente”
Mário Quintana
Olá!
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Aqui no centro de São Paulo há muita probabilidade de você
sair sujo, porque se há um fato inconteste é o pouco caso que se faz com a
higiene pública. Mas não é esperado que essa sujeira seja barro, porque quase
não há lugar onde haja terra exposta, cidade fria* e cinzenta que é a ex-Terra
da Garoa. Só que ultimamente é bem possível que você carregue belos cascões em
seus solados, como ocorria na infância das ruas periféricas e ainda não
asfaltadas. Isso porque a prefeitura decidiu trocar as tradicionais pedras
portuguesas das ruas do Triângulo** por placas de concreto. Há gente que gosta
da ideia, especialmente as mulheres de salto alto. Eu sou contra até a raiz da
medula, mas sou voto vencido e nada mais posso fazer que lamentar e narrar o
que tem acontecido pelo centro da metrópole da solidão.
A troca de pavimento exige que o piso anterior seja removido
e que a terra por baixo seja reassentada, e isso tem levado à descoberta de
elementos inesperados: artefatos históricos. Como a história desta terra sempre
foi muito mal contada, cada pedaço que se palmilha é um potencial sítio
arqueológico que se encontra. Na Rua José Bonifácio, encontraram-se os antigos
trilhos do bonde que por lá singravam. Na Paulo Egídio, vários fragmentos de
cerâmica europeia indicam a existência de conjuntos de residências. Mais
recentemente, na Quintino Bocaiúva, o achado mais impressionante: as antigas
galerias daquilo que foi provavelmente o primeiro aqueduto da cidade. Agora as
obras estão na Barão de Paranapiacaba, a conhecida Rua do Ouro. Vamos ver qual
vai ser a novidade que surgirá lá.
A pergunta que surge diante da circunstância é: por que há
tanta importância em manter buracos abertos em um local onde a movimentação já
é difícil? A resposta passa pela nossa incapacidade tão decantada em contar a
própria história, e qualquer caco de louça pode trazer informações preciosas
para quem tem muito pouca preservação. Daí, pagamos o nosso preço e
aproveitamos a rara ocasião da reforma para valorizar o que se localizou, ainda
que seja um grande transtorno trafegar pela lama inconsueta. Por isso, é vital
que tais sítios arqueológicos fiquem disponíveis pelo tempo necessário, ainda
que não gostemos deles.
Isso significa que os arqueólogos terão bastante trabalho
para fazer suas catalogações e verificações. Só que muitas vezes nos
perguntamos onde cabem esses estudos de velharias, e, por esta razão, tento
descrever agora o que é essa tal de Arqueologia.
A Arqueologia é indissociável da História. Ela é a ciência
que procura desvendar os acontecimentos passados relacionados diretamente aos
seres humanos através de fontes não escritas. Isso vai incluir um sem-número de
objetos, que vão desde simples fragmentos de pedra até elementos
surpreendentes, como a famosa Pedra
de Roseta, que levou à descrição da escrita do Egito antigo.
A Arqueologia, ao contrário do que faz crer as divertidas
aventuras de Indiana Jones, ou das violentas caçadas de Lara Croft, é muito
mais feita de estudos do que exploração de campo. Sim, é verdade que a parte
mais espetacular está nas descobertas e escavações, mas é no estudo
comparativo de épocas e culturas que está a maior parte do trabalho do
arqueólogo. Isso acontece porque normalmente não se encontram elementos
completos que se expliquem por si sós, mas pequenos fragmentos que precisam de
muito exercício de contexto para justificarem sua interpretação. Nunca poderá
ser negada a afirmação de que a Arqueologia é um grande quebra-cabeças.
O nome desta ciência faz forte ligação com a filosofia.
“Arché” é um termo especialmente caro para ambas, que vem do grego e significa
algo como origem, começo e, por extensão, antigo. Arché
era a busca dos primeiros filósofos, que queriam explicar as essências de todas
as coisas, seu substrato mais primordial, e a Arqueologia vai buscar origens
históricas através de vestígios culturais.
O grande sonho de qualquer pessoa interessada pelo passado é
encontrar fontes escritas múltiplas, para que um determinado fato seja descrito
por vários ângulos de visão e ajude a interpretar qual é mais confiável.
Entretanto, quanto mais nos afastamos no tempo, menor a possibilidade de
encontrá-las. Em primeiro lugar, porque os meios de registro são perecíveis:
papeis, papiros e pergaminhos são materiais extremamente deterioráveis, sendo
prejudicados por umidade, calor, bolor e tantos outros fatores. Mesmo os
registros em pedra estão sujeitos a erosão, a ruptura, a soterramento e assim
por diante. E isso ainda é pouco, porque embora cultura e linguagem possam ser
consideradas contemporâneas, a realidade é que o período em que essa última
esteve capacitada para ser registrada fora da fala vem de 5000 a 6000 anos
atrás, uma ínfima parcela do total da aventura na Terra dos bípedes implumes,
caniços pensantes, pó que retornará ao pó. Sendo assim, tudo o que vem antes só
é “legível” através de vestígios, e a reconstrução do passado se torna muito
mais complexa e incerta. Qualquer toquinho de pedra pode trazer informações
preciosas. Os indícios são a grande matéria-prima da Arqueologia, e é através
de complexas correlações que o seu trabalho anda.
Mas como podemos situar um vestígio no tempo? É bem verdade
que os cacos da Rua Paulo Egídio são muito próximos, e isso permite que
catálogos de objetos sejam os métodos mais simples para determinar
aproximadamente sua época, mas há coisas muito mais antigas que precisam lançar
mão da química para fazê-lo, em um processo comumente chamado de datação. Não
vou querer aqui ficar discutindo sobre processos que não conheço, mas, pelo bem
da informação, vou dar uma passadinha no assunto.
Os elementos químicos em geral possuem um marcador temporal
conhecido como meia-vida, que é a metade do tempo necessário para que os
componentes radioativos neles existentes se dissipem. A cada vez que o tempo de
meia-vida se completa, novamente se verificará que houve perda de conteúdo,
sempre decaindo pela metade. Isso significa que durante a meia-vida dos
elementos químicos, existe a possibilidade de modificações na sua composição
atômica, em especial a perda de nêutrons de seu núcleo. Alguns elementos são
mais estáveis, outros menos, mas o mais interessante é que há certas perdas que
se dão em um ritmo de tempo sempre igual. Isso é um relógio temporal
inigualável. Quando conseguimos determinar a existência desses elementos
instáveis em um artefato qualquer, podemos fazer a medição do quanto há nele do
átomo em questão e, com isso, aproximar a sua idade. O caso mais clássico é do
carbono-14, muito usado para medir a idade de matérias orgânicas, mas há outros
elementos que podem ser utilizados para períodos mais antigos, já que a meia
vida do carbono-14 é precisa para um máximo de 60 mil anos***. Isso não somente
serve para fósseis, mas para datar rochas e outros materiais. Um pedaço de
cerâmica pode ter sua idade indeterminável, mas outras informações do ambiente
podem dar essa resposta indireta.
Isso tudo comprova a multidisciplinaridade da Arqueologia,
que vai muito além de seu vínculo natural com a História. Ela interage com a Química,
como acabamos de dizer; com a Antropologia, que fornece informações de cultura,
enquanto recebe substrato das formações dessas culturas; interage com a Geologia,
porque aproveita dados de estratigrafia e datação indireta para decifrar os
períodos de seus achados; interage com a Arte, porque esta também carrega
consigo possibilidades de concluir épocas, e assim por diante.
É importante ressaltar aqui que a Arqueologia não pode ser
confundida com a Paleontologia, uma troca de atribuições muito comum de
acontecer. A primeira está para a História, assim como a segunda está para a Biologia.
Portanto, quando falamos de elementos culturais, estamos pensando na Arqueologia,
e quando falamos do contexto natural, pensamos na Paleontologia.
Evidentemente, ambas se cruzam, por tratar da mesma matéria prima: o passado. E
também pode ocorrer de uma fornecer informações para a outra, mas é bastante
comum alguém achar que a Arqueologia cuida de fósseis e a Paleontologia de
estátuas de deuses gregos. Não, crianças. A Arqueologia sempre se dirige para
seres humanos, essa é uma regra básica.
Não há dúvidas, nestes dias em que uma polêmica, porém já
iniciada reforma é aguardada para acabar com a perturbação, que haja muita
gente que se incomode com o fato de que aqueles buracos nas ruas sirvam para
propósitos caros e pouco práticos, mas isso é uma ilusão de ótica imediatista.
Como eu já disse neste link,
a história não se serve apenas como curiosidade, mas como substrato para
compreender a realidade atual, com suas benesses e controvérsias, e isso a
torna essencial. Isso tudo pode ser atribuído também à Arqueologia, pela
intrínseca relação que ambas possuem. Se a História é útil por parametrizar
decisões futuras, a Arqueologia vai no mesmo condão.
Mais ainda, a Arqueologia tem a missão antropológica de
demonstrar o quanto as diferentes culturas são iguais na sua utilidade para o
ser humano. Contar as histórias dos povos é, fundamentalmente, verificar como
eles deram diferentes respostas para os mesmos problemas encontrados aqui ou
nos confins do mundo. Todos as populações se defrontaram com questões práticas,
como a alimentação e a proteção das tribos, e com problemas abstratos, que vão
desde explicar seu próprio surgimento até discutir o que vai além da vida. A
forma presente como pensamos hoje depende, por cadeias causais, da
primeiríssima vez em que um problema colocado teve uma tentativa de solução, e
somente através dos indícios e vestígios que estão ainda escondidos, ou
guardados pelas mãos dos arqueólogos, que podemos formar algum tipo de noção
sobre essas origens. Isso não é importante?
Por fim, não existe limite para o estudo arqueológico.
Evidentemente, como já mencionei, é muito mais fácil identificar e
contextualizar os canais da Rua Quintino Bocaiúva do que sistemas de aquedutos
romanos de séculos anteriores ao tempo comum, mas há momentos em que, pela
nossa pobreza documental, nada mais reste do que apelar para os métodos
arqueológicos. Assim, um estudo pode ser voltado para coisas muito recentes, de
cinquenta anos atrás, embora sempre tenhamos em mente as difíceis expedições
que buscam o mais longínquo dos passados.
Em resumo, a Arqueologia é uma ciência humana que foge muito
do estereótipo que lhe é atribuído e muito mais importante do que faz crer o
primeiro olhar e o primeiro incômodo. Bons ventos a todos!
Recomendação de canal:
É difícil se desvencilhar de bobagens quando o objetivo é
achar bons vídeos sobre o tema no YouTube. Seja porque há muito sensacionalismo
em achados, seja porque há muito viés de caráter religioso, o fato é que o tema
fica muito poluído para quem quer conteúdo mais sério, e não no sentido de
sisudez, mas de obter informações relevantes e desapaixonadas. Mas há um bom
canal para isso, tocado pela especialista Márcia Jamille, a quem recomendo a
inscrição.
https://www.youtube.com/@ArqueologiapeloMundo
**Para quem não é de São Paulo, as ruas do Triângulo compõem
um conjunto de ruas com o trânsito impedido para veículos, repletas de
comércio. São locais que parecem ovos de tão cheios durante o dia, e
absolutamente vazios durante a noite, quando o comércio fecha. Levam esse
apelido pelo formato do mapa de suas principais vias (Direita, São Bento e
Quinze de Novembro):
*** A partir deste ponto, a quantidade de carbono-14 é tão
baixa que não permite fazer medições precisas.
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