(Medo e angústia não são a mesma coisa, e não é gostoso sentir nenhum dos dois. Mas qual deles tem um sentido ontológico mais consistente?)
”Um homem verdadeiramente sábio não é aquele que persegue cegamente uma verdade... Um saber superior (e todo saber é superioridade) só é concedido àquele que experimentou o ímpeto alado do caminho para o Ser, que não estranhou o espanto do segundo caminho para o abismo do Nada, e que aceitou, como constante necessidade, o terceiro caminho, o da aparência” - Heidegger
Olá!
Eu sempre me coloquei em uma posição extremamente ambígua
com relação a voar de avião. Por um lado, era um daqueles quase mitos
inatingíveis, viajar de forma rápida e eficaz, sem os transtornos do asfalto e
se aproximando da tecnologia de ponta. Por outro, um medo de altura que passa
do irracional. Mas as voltas que a vida dá nos levam aos becos do destino, e
decidi comprar um par de bilhetes para chegar rapidinho em Cascavel, que
consome mais de 12 horas de viagem pelo chão, mas uma hora e meia singrando os
ventos. Fi-lo com um bocado de antecedência para pegar preços melhores. E aí
veio a pandemia… sempre ela. Precisei adiar a viagem, o que fiz para agorinha
há pouco, na semana passada, já devidamente convertidos em jacarés, eu e a
cara-metade. Só que, daí, o moleque já tinha se mandado da Metrópole do
Mercosul para a Cidade Sorriso, mais conhecida como Curitiba, tudo no estado do
Paraná. Isso me deu novas dores de cabeça, com o desajuste que ficou nos preços
das passagens. Passons, isso são contingências da vida e vamos tocando
do jeito que é possível. Acontece que eu não pude deixar de filosofar mesmo
estando em um aeroporto, e eu queria dividir meus pensamentos com vocês.
Eu nunca tinha voado anteriormente, embora vontade não houvesse me faltado. Ainda tenho uma pontinha de memória de quando meu avô pegava a mim e levava na laje do aeroporto de Congonhas, para ver as aeronaves pousarem e decolarem. Parece um divertimento ingênuo, mas que era bastante comum nos idos dos 70. O tamanho dos aviões era totalmente discrepante daquele que víamos nos desenhos animados, tipo Esquadrilha Abutre. Isso tudo causava uma grande impressão, mas à pergunta “quando nós vamos pegar um avião?”, a resposta era aquela do operariado: não é para nós.
E não era mesmo. Voar era coisa para quem tinha dinheiro,
especialmente para viajar. Nosso espectro incluía ir para a Baixada Santista,
para o interior paulista ou norte do Paraná, onde moravam os parentes, e isso
era plenamente atingível por ônibus. Mesmo que pensássemos em ir para mais
longe, a diferença de preços entre viação e aviação era absolutamente
proibitiva. Desta forma, pegar um avião necessitava de condições especiais.
A mais provável era viajar a trabalho, já que eu comecei
carreira nos escritórios da vida. Havia uma ocasião frequente: eu trabalhava em
uma fábrica de máquinas, e o meio mais comum de se financiar um caro
equipamento industrial era através do Finame*. Os recursos deste dispositivo
eram gerenciados pelo BNDES, que ficava situado no Rio de Janeiro. O roteiro já
era bem escrito. Não havendo e-mails, nem certificações digitais, o contrato
era enviado de malote até a entidade bancária onde seria liberado o dinheiro, o
que podia levar até dez dias. Para acelerar o processo, a gerência metia um
contínuo na ponte aérea, para ir à Avenida República do Chile - RJ, pegar a
papelada, voltar a Congonhas, chamar um táxi e desembocar na Cidade de Deus,
bairro de Osasco onde se situava a sede do banco onde minha empregadora
desembaraçava seus cobres. Nunca calhou de ser eu o escolhido, e, com isso, não
foi por esse caminho minha oportunidade.
O voo veio por conta das novas políticas das empresas
aéreas, que diminuíram os luxos e os custos para poder oferecer viagens mais em
conta. Não se trata ainda de artigo em conta, mas o abismo que existia entre um
bilhete aéreo e uma passagem de busão não é mais tão descompassado, e acabei
fazendo a compra que já descrevi anteriormente. Só não foi em Congonhas, foi em
Cumbica.
Conheci este distrito de Guarulhos ainda criança, por vias
do mesmo avô do passeio no aeroporto, mas por um motivo muito mais infeliz. Ele
já estava bastante adoecido do seu câncer
na garganta, e como se recusava a realizar tratamentos, meus familiares
tentaram aqueles velhos
paliativos que não resolvem nada, a não ser ativar o efeito
placebo. No caso, vínhamos à casa de uma acupunturista, uma moça japonesa
bastante jovem, que sabia que não o curaria, mas ao menos tentava mitigar suas
dores.
A área era composta por uma base aérea e por uma certa
quantidade de casas térreas espalhadas pelo seu perímetro. Na maioria delas,
havia protestos colados nas janelas pela construção do novo aeroporto, que
viria a desafogar o velho aeródromo da capital, já rodeado de prédios e sem a
menor possibilidade de expandir seu território. Não adiantou nada, como se pode
ver.
O aeroporto de Cumbica é gi-gan-tes-co. É um sem-fim de
pistas, contendo um sem-número de aviões, a ponto de necessitar de transporte
interno através de ônibus para dar mais fluxo aos passageiros.
Preocupava-me a minha proverbial paura diante
da altura. Meu medo essencialmente não era de um acidente, mas do puro
cagaço mesmo. Sei lá… palpitações, ânsia, um vergonhoso desfalecimento, essas
coisas. Mas o fato é que tudo foi tranquilo, mesmo com o trechinho de
turbulência que pegamos. A coisa parece tão irreal vendo aquelas casinhas que
ficam cada vez menores que entendo haver uma mudança de parâmetro mental, e a
sensação se torna muito diferente do que acontece na borda de uma laje.
É bem verdade que assistir vídeos do canal Aviões e Músicas,
que mencionei neste
texto, ajudaram-me a compreender melhor a dinâmica aeronáutica e me
tranquilizar quanto a chacoalhos e cheiros, mas o fato é que o medo é
desconfortável e incomoda um tanto. Mais que isso… acompanha-nos do raiar ao
pôr do sol, metáforas do nascimento e da morte. Pensar nessas coisas dá uma
certa crise existencialista, e quem juntou as duas coisas foi Martin Heidegger.
Heidegger é muito complicado, então eu vou tentar explicar
beeeeeeem cuidadosamente o que ele quer dizer. Ele é cheio de termos próprios,
o que às vezes mais confunde do que ajuda, mas vamos tentar compreendê-lo.
A pergunta sobre o Ser é muito antiga e difícil de definir,
até mesmo pela pouca importância que damos a ela em nosso quotidiano. Entretanto,
há momentos em que paramos para pensar e nos questionamos de certos porquês. Um
dos possíveis é perguntar porque algo existe, e não o Nada, ou, em outras
palavras, o que é esse algo que existe? Heidegger dizia muito sobre a
dificuldade de se encontrar o Ser das coisas, e sobre isso eu já falei neste
post. Mas o que é o Ser do próprio homem? Havia a mesma dificuldade
ôntica/ontológica aqui também, porque conhecemos os entes, que são
"aplicações práticas" do Ser, e não o Ser em si. Conhecemos cada
homem pelo que ele é, e não pelo que ele tem de comum com o restante da
humanidade. Pensemos assim: olhamos uma pessoa andando na rua e contemplamos a
sua individualidade, e não a sua essência. Ela pode ser bonita, magra, puxar de
uma perna, mascar chiclete e usar roupas descoladas, e é esse ente que
enxergamos. Não vemos seu Ser.
As coisas pioram quando olhamos para as velhas explicações
sobre a Metafísica. A essência do homem é colocada do lado de fora, como se
pudesse se destacar do mesmo. Isso funciona muito bem quando pensamos nos
dualismos, do tipo corpo-alma, corpo-mente, res
cogitans-res extensa. Acontece que há um ponto fundamental que esses
filósofos não levavam em consideração: nada disso tem nenhum valor se essa
essência não é concretizada. Em outras palavras, a essência de um ser humano
não é nada se ele não existir. A existência é a essência.
Tudo isso soa a Existencialismo,
e, embora não fosse intenção direta de Heidegger, esse modelo de pensamento
acabou mesmo dando origem ao movimento inaugurado, aí sim, por Sartre. A
Metafísica do ser humano, pelo que nos diz Heidegger, vem de sua presença no
mundo, de sua interação com as coisas e com os demais seres, e ele deu nome de Da-sein
para esse fenômeno, ser-aí. Aí onde? No mundo, sempre em relação com um
contexto e uma situação.
O homem não é mera presença, como qualquer outro objeto. Um
abajur, uma caneca e mesmo um avião estão cagando se estão servindo ao seu
propósito. Essas sim são simples presenças, mas o da-sein não é assim: é para
ele que todas as demais coisas estão presentes.
É por isso que o da-sein aplica-se unicamente ao ser humano.
Ele tem consciência de si e pergunta sobre si mesmo. Segundo Heidegger, o da-sein
é o Ser que se pergunta sobre o Ser. Uma codorna não faz isso, porque se
preocupa só com sua sobrevivência. Uma planta, nem isso. Um ser inanimado,
menos ainda. Se há pergunta sobre o sentido da vida, essa só é feita pelo
próprio homem.
O da-sein, é, portanto, uma concretização do Ser que se
pergunta pelo Ser, o próprio homem, cuja principal característica é a sua
existência no mundo. Sendo assim, o ser humano enquanto ente, ou seja, cada um
de nós individualmente, é uma das infinitas possibilidades de existência. O
homem é, portanto e fundantemente, escolha. Guardem bem essa informação.
Pois bem. Sendo o da-sein uma concreção, existente,
palpável, não é possível que se pense nele isoladamente. O homem, quando nasce,
vem a um ambiente por onde ele fará transcorrer sua existência, que, no caso, é
o mundo. Isso tem um significado muito direto: nós nunca nos apartamos do
mundo, estamos eternamente (enquanto dure) em uma situação, porque a história é
escrita em situações e não vivemos fora da história, como se fôssemos almas
eternas. Ela pode ser favorável ou não, agradável ou não, duradoura ou não, mas
estamos sempre enfiados em alguma situação, ainda que não queiramos. E isso é
eterno porque se trata de um continuum - quando termina uma situação, já
começa outra. Isso tudo é óbvio, mas nos dá o corolário de que sempre teremos
que nos colocar em relação, ora com o ambiente, ora com os outros homens, ora
com ambos. O da-sein não é um ponto isolado, repito, mas um Ser que se
relaciona. Portanto, ele também é um ser-no-mundo (in der welt sein) e um
ser-com-os-outros (mit-sein), porque não existe um sujeito sem mundo e nem um
sujeito único, solipsista, cujas sensações são a única realidade existente.
Temos, portanto, o ser humano se relacionando com o seu
ambiente (ser-no-mundo), com os demais homens (ser-com-os-outros) e consigo
mesmo (da-sein). Mas existe ainda uma outra dimensão que, no final das contas,
vai contribuir com a autenticidade da existência que lhe é peculiar. Heidegger
pensa que os homens são livres para fazer suas escolhas, e, por conta disso, se
veem de frente a um mar de possibilidades. É evidente que a quantidade de
escolhas que cada ser humano pode fazer possui limites, e, com isso, a
existência nada mais é do que projeção. É muito fácil de pensar nisso quando
imaginamos o que seria nossa carreira profissional, por exemplo. Se opto por
lecionar Filosofia, atiro-me nos estudos das diferentes teorias e das técnicas
didáticas, eventualmente acrescendo um perfil de pesquisa para enriquecer meus
conhecimentos. Fazendo isso, dificilmente conseguirei concomitantemente virar
piloto de aviação comercial. Entretanto, e esse é um grande problema para
Heidegger, ainda que nossas possibilidades de escolha fossem ainda maiores, há
uma projeção que quase ninguém faz e que é o máximo horizonte de todas as
possibilidades de nossas escolhas, que é a morte. Para além dela, cessa tudo,
incluindo nossa metafísica, ao contrário do que pensaria a filosofia e as
religiões de até então. O dasein se complementa e se finda com o ser-para-a-morte.
É aqui que começamos a chegar onde eu queria. O ser-para-a-morte
não é terceirizável: ninguém pode morrer pelos outros. Isso acontece porque o da-sein
é vivido em cada uma das individualidades, e que não é experienciável, pelo
simples fato de que, sendo a existência a verdadeira essência, seu término
encerra o da-sein. No ser-aí, a morte finda o "aí", representativo do
nosso ponto de relações, e se não as temos mais, nossa vida vai junto, perde
seu objeto e encerra nossa existência e essência. Como nós não podemos
experienciar a própria morte, tendemos a fazê-lo pela morte dos outros, que
acaba por se banalizar e perder seu significado, tirando boa parte da
importância e magnitude que tem o ser-para-a-morte, ou a noção de finitude,
para todos nós. Mas ainda assim, sabendo-nos seres-para-a-morte, reconhecemos o
horizonte final.
Temos aí a raiz do medo. O medo sempre é a reação a uma
ameaça à nossa permanência. Ocorre que a morte é uma possibilidade como as
outras, cuja diferença é ser própria, incondicionada e insuperável. Ela é
própria porque somente o homem tem a perspectiva da morte, e todos os demais
seres, apesar de conviverem com ela, não tem consciência disso, e que, mesmo
ainda sendo existência, coloca o fim à existência. É incondicionada porque,
como eu já disse, a morte pertence ao indivíduo e não pode ser vivida por
procuração, devendo cada um viver sua própria experiência, e é insuperável
porque ela põe fim ao da-sein. Vivemos para a morte, e isso consiste em nossa
existência autêntica.
A diferença entre ter medo e ter angústia está justamente na
aceitação da finitude. O próprio medo já é, antes do próprio fato, ter medo da
angústia. A angústia é o prenúncio do aniquilamento, e não necessita de nenhum
objeto. Por isso, quando temos medo de alguma coisa, temos medo extensivamente
de encarar a angústia da morte. Só que é justo essa angústia que Heidegger diz
ser o elemento de autenticidade da vida, porque a aceitação da finitude é
indissociável da vida completa. A existência banal exclui o encarar da morte,
que somente se dá pela angústia.
É por isso que ter medo de avião é uma bobagem. Diante de
tantas as possibilidades na vida, uma delas embutirá necessariamente o
ser-para-a-morte, e a angústia é válida como expectativa, e não como
paralisação. Se o fim não chega pelo avião, chega pela doença, pelo
assassinato, pela velhice... Sentir
angústia pelo fim que se aproxima não é sinal de fraqueza, nem nada que
exclua nossa normalidade, pelo simples fato de que ela não deslegitima a vida.
Portanto, o medo é uma coisa feita para ser superada, especialmente aquele que
é tão antirracional com relação a um uso tão seguro. Talvez de hoje em diante
eu tenha medo só dos preços das passagens. Bons ventos a todos!!!
Recomendações:
Como eu já mencionei a principal obra de Heidegger por aqui,
cito outro livro, um pouco mais amigável e que trata do mesmo tema:
HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.
E, se você quiser viver a experiência com os seus filhos, há
um bom terraço no Aeroporto para ver as naves comendo um bom saquinho de
pipoca.
Rodovia Hélio Schmidt, sem nº
Cumbica
Guarulhos/SP
* Finame é uma sigla que significa algo com Financiamento de
Máquinas e Equipamentos, um programa público federal que existe desde os anos
1960, para promover a aquisição de insumos fabris.
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