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quinta-feira, 7 de março de 2024

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – Epílogo: sobre café e objetos de culto que não são sagrados

(Chegando ao fim, com um brinde na forma de um cafezinho)

“Se os deuses, cada um em seu momento, saem do templo e se tornam profanos, vemos que o relativo à própria sociedade humana entra no templo progressivamente”

Marcel Mauss

Olá!

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Este é o texto em que fecho a série sobre mais uma viagem que realizo. Desta vez, procurei todas as cidades em que, de uma forma ou de outra, estive muito perto de vir em outras jornadas, mas que acabaram não acontecendo. Desta forma, dei cabo daquela sensação de incompletude que temos ao olhar para um álbum de figurinhas e o vemos com lacunas, sendo que inclusive tratei do tema em um dos posts. É uma mania que peguei da minha mãe. Ela sempre tratava suas tarefas com esmero, por vezes exagerado. Lembro, por exemplo, de quando ela confeitava bolos. Dava umas onze da noite e a peça estava ótima, dez com louvor. Mas ela ficava ainda por toda a madrugada, buscando detalhes impensáveis, como as manchinhas nas costas das renas de Natal. “Existem renas sem manchinhas nas costas?”, questionava a genitora. Sei lá, dizia eu, na minha insensibilidade valiam muito mais as horas de sono perdidas. É claro que não se compara o que fiz agora, mas parece ter a mesma matriz, e, agora, respiro aliviado, livre da sensação de ter perdido oportunidades em outros momentos. Com isso eu fechei todo o território? Não, sempre falta alguma coisa. Mas quando eu passar por Dom Viçoso, Olímpio Noronha, Natércia, Heliodora, Piranguçu ou mais alguma, acrescento a esta lista e vida que segue.

O mais curioso é que, apesar de ter passado por oito cidades diferentes (e mais uma rápida passada em Caxambu para rever amigos), não me hospedei em nenhuma delas. Viajei em um feriado, imprudentemente, mas consegui uma daquelas promoções de desistência, do tipo pegar ou largar, e fiquei em um chalezinho muito bonito em São Lourenço. Como já fiz um belo texto sobre esta cidade, não vou me repetir, obviamente.

Isso não significa que eu não tenha feito nada pela cidade, muito pelo contrário. Estamos no Sul de Minas, a terra onde se produz o melhor café do Brasil nos dias de hoje, e é natural que, em uma cidade com quase 50.000 habitantes e um tanto grande de turistas, haja bons lugares para se sorver um café como se deve. Bons, não… dos melhores.

Não se trata de fazer propaganda, até porque não estou ganhando um único trocado com isso (mas não seria nada mau). É apenas mais uma maneira de relatar para vocês minhas experiências pessoais e entrecruzá-las com filosofia, o legítimo motor deste espaço. E, no caso, é mandatório que eu relate minhas preferências e o que elas têm a dizer ao mundo. Isso passa pela devoção aos bons cafés, que tanto aprecio, e pelo fato de que estou perto de autênticos templos desta arte.

É que a Unique é uma espécie de Vaticano do café especial, um dos top of minds quando o tema é esse, como é Omo para sabão em pó, Coca-Cola para refrigerantes, Aspirina para comprimidos. Para qualquer pessoa do ramo, essa é uma referência de ponta da língua. A Unique é mais um negócio no mundo do capitalismo, mas que oferece o que esperamos: produtos de alta qualidade com preço razoável.

Só que, para além de produzir seus cafés, a Unique tem uma cafeteria, que, no final das contas, representa esse templo a que me referi. Eu não viria para São Lourenço perdendo a oportunidade de prestar meu culto, sintetizado nas xícaras de arábica de 80+ pontos. 

Aqui nós temos um pacote completo, que inclui explicitamente as etapas de produção, sem que nada fique fora do âmbito da compreensão do cliente. Talvez não tenha tanta relevância para quem se ocupa unicamente de tomar algumas xícaras, mas para quem quer compreender a si mesmo como apreciador, é muito relevante que haja um didatismo desse nível, incluindo o processo de torra e o sensorial que ele causa. Já ouvi falar de muita gente que não suporta o sabor do café, mas ama seu aroma, especialmente quando está sendo torrado. Aqui, é possível ter a experiência definitiva.

Nem só de Unique São Lourenço viverá. A cafeteria CWC vem com outro conceito, menos rastreador de origens e processos, mais voltado à seletividade. Yirgacheffe, sudan, laurina, gesha, starmaya, pacamara e outros grãos de nome difícil estão disponíveis em versões requintadas, servidas em taças e feitos com a água mineral local, para garantir mínima interferência nos sabores.

CWC significa Coffee Work Club, e consiste em um espaço de coworking, um modelo de negócio que se fortaleceu muito a partir da pandemia de COVID, baseado no compartilhamento de espaços para necessidades transitórias, como reuniões de negócios, realização de trabalhos mútuos ou trabalho remoto ocasional. É normal que haja formas de comer alguma coisinha nesses locais, mas aqui a coisa foi levada tão a sério que acabou se tornando o mote, e não o acessório.


Como trabalha com grãos seletos, é irremediável que se queriam estabelecer parâmetros e fazer comparações. Para tanto, eles criaram uma espécie de menu degustação onde são oferecidas três bebidas distintas, para serem tomadas em uma ordem predeterminada e entremeadas por goles de água, para limpar o paladar. É muito bom para conhecermos cafés que são produzidos em outras partes do mundo, e traçar um paralelo com os produtos que tomamos aqui.

Aí vem aquele meu velho e chato interlocutor imaginário (uma espécie de má consciência nietschena com influências de Bilac?) e vem com suas perguntas metidas a embaraçosas: Ora (direis), como um morador da cidade de São Paulo, com seus inúmeros cafés para todos os tipos e gostos, com ambientes instagramáveis, adoção de gatos, métodos e grãos do mundo inteiro, se surpreende com uma cidade do interior? Minha resposta se dá em duas camadas. A primeira é semelhante à intuição de Bergson, de quem tratei há pouco tempo (aqui). Neste exato momento, eu estou cercado de milhares de pés de café por todos os lados, bastando andar três ou quatro quilômetros a qualquer direção que eu vá para dar de frente com eles. Aliás, não. Basta pôr a cabeça para fora da cafeteria que eu já os vejo.


É possível haver conhecimento sem esse contato e consequente apreensão direta? Pode ser que sim, não nego. Afinal de contas, há médicos que não operam, advogados que não vão a tribunais, mas que, de uma forma ou de outra, tiveram o contato mais íntimo possível com seu objeto de estudo. Por que seria diferente com o café? Aqui, há a fusão entre o ponto natural de surgimento com o ponto final do consumo, e isso enriquece a bagagem do apreciador, nem que seja pelo puro prazer de conhecer ou comparar suas tatuagens com um cafeeiro de “carne e osso”.

A segunda é que tanto Unique, quanto CWC sintetizam duas formas de lidar com o café que são ambas interessantes e igualmente válidas. A Unique percorre o ciclo completo do grão, começando da própria terra e chegando até a xícara, cumprindo, dessa forma, todas as etapas da produção. Já a CWC explora outro aspecto: a integração do café à produtividade de outras áreas, a partir do momento em que oferece um lugar onde você pode passar o dia inteiro, inclusive os úteis. São modelos inovadores e que, por isso, guardam encantos especiais como seus cafés.

É normal que a apreciação faz com que tenhamos mais cuidado com os costumes que temos. Onde trabalho, há a indefectível garrafa térmica de café, mas são daqueles produtos que tornam peremptórias as adições, seja de açúcar ou adoçante, dada a baixa qualidade da beberagem. Isso faz com que eu apele a recursos, como um coador que percolará grãos moídos no dia, ou um drip coffee maroto, que exige apenas um pouco de água quente. Mas o ato do preparo chama a atenção dos colegas, e, uma vez interpelado, eu abro a torneirinha mesmo: porque o grão tal, porque o método xis, porque a moagem ypsilon, e assim vai. Nem todos acham isso bonito, muitos, inclusive, observando um certo pernosticismo de minha parte, o que não é mentira. A grande pergunta que me fazem quando começo a falar empolgadamente de café é porque tanta deferência com momento tão fugaz. Tem café na garrafa, para que perder tempo e pagar caro? Bem…

Quem pugna pela utilidade das coisas, geralmente está segregando interesses. Pergunte para um defensor do útil se ele torce para algum time de futebol. Que utilidade tem o futebol? E as novelas? Dificilmente alguém pratica somente coisas úteis, mas aí temos uma questão de parcialidade. Meu lazer é útil, o do outro não é.

Não estou aqui falando do pragmatismo como escola de pensamento filosófico, mas como visão de vida. O pragmatismo filosófico é a corrente de pensamento que pugna por uma visão prática da filosofia, para que a mesma sempre procure resolver problemas, e não se perder em divagações infinitas de pouco aspecto efetivo. Essa é uma visão como qualquer outra, concordemos com ela ou não, e é muito levada em consideração dentro da filosofia estadunidense, apenas para dar um exemplo. Minha questão é com uma certa má vontade com quem quer enxergar além do propósito empírico das coisas do mundo, lembrando que uma das grandes características do ser humano é justamente ser abstrato, transformar fatos em significados, e trabalhar sentido onde ele, aparentemente, não existe.

Quando alguém fala dessas “inutilidades” tira de relevo as coisas que dão colorido para a vida. Basta que se pensem nos sentidos. Não me basta ouvir, mas ouvir boa música; não basta ver, mas ver belos quadros, sentir cheiro de bons perfumes, sabor de ótimos cafés. Se os sentidos só servem para a utilidade, onde estamos sendo diferentes dos demais animais?

É com o nascedouro da apuração dos sentidos que vem um dos melhores designativos da raça humana: sua capacidade de abstração para dar significado a coisas que, em um sentido prático, não teriam valor algum. E isso desemboca, inclusive, em todo o bojo cultural de um grupo, com seus cultos e celebrações inclusos.

Na verdade, há que se compreender um pouco melhor o conceito de lugar de culto. É óbvio que ele sugere a ideia de espaço religioso, mas nem sempre é preciso criar esse vínculo. Existe uma espécie de cola social que faz com que até o mais empedernido dos ateus tenha laços sociais, e ele pode ocorrer de vários modos, sem que haja uma objetividade concreta e palpável. O exemplo mais próximo é o do futebol. Quantos estádios já receberam o epíteto de templo? Wembley, Santiago Bernabeu, Camp Nou, Giuseppe Meazza/San Siro, Maracanã, até mesmo a Rua Javari para a comunidade da Mooca. Aliás, peguemos este último, que costuma lotar nas manhãs de domingo, antes da macarronada na nonna. O pessoal não se reúne naquele pequeno campo simplesmente porque gostam do futebol à moda antiga. Eles estão lá porque há todo um conjunto de representações simbólicas que somente se materializam lá: primariamente, a união em torno de causas comuns, o pertencimento ao tradicional bairro, a resistência da agremiação que o representa, e (por que não?) o prelúdio do faustoso almoço, ele mesmo uma continuação mais particularizada de cada grupo do culto. 

Essa cola social não é tangível, mas é fartamente explicável pela nossa boa e velha necessidade gregária. Talvez seja um pouco cruel com nossas romantizações, mas há uma razão muito prática para que gostemos de estar juntos: a sobrevivência. É claro que tal característica está lá no fundo do desenvolvimento de nossa espécie, e não é crime algum fazer algumas ilações de fundo metafísico sobre essa tendência à reunião.

Já nos primórdios das formações das comunidades, havia algum tipo de especialização baseada em divisão de tarefas, enfatizadas pelas necessidades específicas. Assim, a turma que precisava caçar fazia seu preparo e orava para suas divindades da caça. Estando todos juntos, faziam essas ações com coesão, de modo a fixar ritos. Extensivamente, esse comportamento foi se estendendo para outras atividades, resultando em espaços de culto cada vez mais sofisticados, e que foram desembocar nas atuais igrejas.

Mas uma casa de café pode ser considerada um local de culto? Vai depender do que consideramos como tal. Se é necessária uma transcendência, ela está na importância estética que se dá aos aromas e sabores. Em termos materiais, tomar um café nada mais é do que uma atividade alimentícia, partindo da premissa de que se trata de uma bebida estimulante, e não meramente nutritiva. A partir do momento em que se pensa na questão da experiência íntima com o grão, a coisa atinge níveis de subjetividade que vão para além da mera imanência. A importância da experiência faz com que se saia da prosaica atitude de se tomar um café só para pegar ânimo ou acompanhar um pãozinho, e ganha aspecto ritualístico.

Aí é que está a importância de se conhecer as origens e os processos do café. Alguém é cristão sem conhecer Cristo? Maometano sem conhecer Maomé? Budista sem saber quem é Buda? O mesmo se aplica ao time do coração, ao músico favorito, ao café. É quase o ensinamento de Epicuro: obter prazer em tudo significa simplificar o conceito de prazer. Ora, ora, direis (novamente), o prazer simples, no caso, não seria beber teu café e ponto final? Não é contraditório ter que se aprofundar em um assunto para dele extrair contentamento? É que meu inconveniente interlocutor se esquece de que prazer simples não é sinônimo de prazer preguiçoso. Em um mundo onde a internet nos leva a qualquer lugar em segundos, buscar informações é fácil e completa a experiência. Só que nem isso é necessário. Basta que se pegue a embalagem do café para aprender muita coisa, como o grão que se sorve, as notas que o q-grader indica, o perfil de torra, a origem que lhe explica o terroir e tantas outras informações que não são vitais, mas que dão esse colorido que eu falei e que tiram alguma coisa de seu lugar comum, de sua profanidade. E é assim que temos a cafeteria transformada em ponto de culto: ao reunir em si o ânimo celebrativo de conjuntos de pessoas que compartilham desse mesmo interesse ou, melhor dizendo, dessa mesma paixão.

É assim que se formam novos laços. Quando realizamos uma ação qualquer aqui dentro, estamos não só realizando trocas de dinheiro por produtos, mas de elementos simbólicos. Não estamos apenas comprando e vendendo, mas estabelecendo alianças que se consubstanciam no interesse comum. Eu não dou só meu dinheiro ao vendedor, dou minha confiança de que terei para mim um bom atendimento - uma retribuição. Também quem me recebe espera de mim o reconhecimento pelo bom atendimento - outra retribuição. A cadeia social não se dá somente no comprar e no vender, no dar e no receber, na troca de elementos palpáveis. Dá-se na retribuição. Dessa forma, o café não é mais uma mera mercadoria, mas um compartilhamento, porque, novamente, não há só o material, mas o símbolo: o café que eu tenho nas mãos, e que veio das mãos da garçonete, e que foi feito pelo barista tem um significado de aliança. Estamos todos aqui em seu nome.

É como dizia o antropólogo francês Marcel Mauss: há algo de dádiva em cada ato social que cometemos. Isso significa algo divino? Não, mas sim que em todas as relações humanas não se bastam somente no que há de interesse em jogo, como o café que se compra e o café que se vende, mas aquilo que vai além dessa mera relação comercial. O sorriso ao passar a xícara é dado, não é vendido. Idem com o “obrigado” que é devolvido, não é recebido. É nessas dádivas que as relações sociais se fixam e se intercambiam no interior de cada uma dessas tribos, de modo a lhes dar coesão.

É meio que a prova de que as sociedades provavelmente nunca serão cem por cento secularizadas. A sacralidade não se vincula unicamente a divindades, mas sobre isso, já discorri neste texto, a quem recomendo a leitura.

E vou ficando por aqui. Não sei quando volto a fazer uma nova viagem nesse estilo turnê, mas o fato é que minha pauta está cheinha e preciso correr para não perder o controle. Bons ventos a todos e até a próxima!

Recomendações:

Primeiro, o artigo de Marcel Mauss que trata do conceito de dádiva nas relações sociais.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003


Depois, especificamente com relação a este texto, seguem os endereços das duas cafeterias mencionadas. Se eu tivesse que indicar uma sequência, vá primeiro na Unique e depois na CWC, para pegar balanço e ir se acostumando com esse universo:

Unique: Via Othon de Carvalho, 1020 - Vale dos Pinheiros, São Lourenço - MG

CWC: Av. Comendador Costa, 669 - Centro, São Lourenço - MG


Por fim, a relação de cidades por onde passei, com sua distância calculada a partir do centro da cidade de São Paulo, mais especificamente da Sé, onde moro:

Campanha 285 Km

Soledade de Minas 312 Km

Virgínia 299 Km

São Sebastião do Rio Verde 284 Km

Aiuruoca 357 Km

Águas de Contendas 327 Km

Alagoa 317 Km

Itanhandu 266 Km


Já o chalé em que fiquei hospedado fica na Pousada Campestre, que, embora esteja em área rural, fica muito perto da própria Unique. Recomendo bastante, pela qualidade das instalações, pelo preço convidativo e pela gentileza de seus atendentes.

Pousada Campestre (Loisana e Vlamir): Estrada da Bomba, S/N - Palmela, São Lourenço - MG


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