(Há dois lados na questão da vacina? Vamos analisar pelo viés das falácias)
Olá!
Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadasEu tomei todas as doses da vacina. Não tomei forçado, mesmo
com meu medo de agulhas. Tomei porque é um caminho consolidado, mesmo com toda
a urgência com as quais estes fármacos foram produzidos. Cumpri a rigor meu
calendário, as duas doses prescritas e a de reforço, todas nos primeiros dias
da janela para minha idade e comorbidade. Coloquei um avatar de Wally Gator no
Skype e fiz campanha com os meus parcos recursos.
Eu usei máscaras com todo o rigor possível, até mesmo na
porta do apartamento, para colocar o lixo no latão. Usei máscaras de pano no
começo, duas quando necessário, progredindo para as cirúrgicas e posteriormente
para as PFF2, raspando o bigode de décadas para melhor acomodá-las e resistindo
bravamente ao incômodo nas orelhas e a vontade de arrancá-las nos momentos de
maior esforço, quando você puxa o ar e não vem. Mantive-as cem por cento do
tempo em que pus o focinho para fora de casa, evitando a custo de colocar as mãos
nelas, mesmo com o nariz coçando a ponto de ficar vermelho. Não fiz estética –
sempre procurei usar máxima eficiência, fazendo inclusive o risonho teste do
palito de fósforo, para verificar possíveis vazamentos. Usei fita adesiva para
mantê-las no lugar e evitar os escapes, fáceis de notar quanto se usa óculos.
Enfiei a mão no bolso com gosto, e, mesmo com uma tristeza profunda vinda da
conta, dei pouquíssimo descanso aos artefatos usados, como se fossem
descartáveis.
Eu mantive o afastamento social, vivendo uma vida quase
eremítica até tomar as primeiras duas doses da vacina. Após isso, poucas idas a
lugares essenciais, sem festas de fim de ano, sem receber ninguém em casa, sem
aceitar nenhum convite e, quando saísse, cumprindo todas as normas de segurança
até com excesso.
Eu usei sabão para as mãos, álcool para esterilizar qualquer
produto vindo de fora, usei Lysoform© nas roupas, cloro nos vegetais, revi
todas as condutas de higiene que eu tinha até hoje, criando calçados exclusivos
para sair e para ficar em casa, tomei banho imediatamente após qualquer
saidinha que fosse para buscar uma Aspirina© na farmácia.
Eu cheguei ao descuido em nome do cuidado. Desmarquei todas
as consultas que eu tinha, inclusive as periódicas, utilizando serviços remotos
em qualquer lugar onde ele fosse possível. Afinal de contas, os serviços
médicos, os laboratórios e os hospitais eram onde a coisa mais fervia.
Fiquei com gastrite e otite até se curarem sozinhos. Não é a melhor forma, mas
sempre que eu punha as coisas na balança, pendia para o risco de uma doença sem
cura, com resultados inesperados.
Eu acompanhei a evolução
da pandemia pela TV e pela internet, aprendi termos novos e velhos, morri de
raiva com a atitude dos mandatários e suas poções mágicas, acompanhei a
evolução gráfica dos casos e das mortes, mesmo com as sabotagens públicas.
Cuidei por mim, pelos filhos, pela patroa. Pelos velhinhos
deste prédio de gente doida. Pelos parentes e amigos, pelos sogros já idosos e
por gente que eu nunca vi na vida, porque ser responsável é isso: cuidar de
quem se gosta é fácil. Se dizemos que amamos país, estado e cidade, é preciso
cuidar do povo destes mesmos lugares.
No entanto, ela veio. No
domingo passado acordei com a rouquidão típica dos fumantes exagerados, só que
eu não fumo há décadas. "Deve ser refluxo", disse a patroa. Devia ser
mesmo, pensei eu, diante da ausência de qualquer outra moléstia, e segui meu
dia normalmente. Segunda e terça amanheci da mesma forma, o que foi me deixando
bolado, e fui atrás de fazer um teste, já que a semana seguinte estava sujeita
a ser de açodada escala presencial. Só consegui fazê-lo na quarta à noite,
diante da explosão de consumo dos kits. O cotonete me fez morrer de coceira,
uma sensação de desconforto pior que uma picada. Fiquei do lado de fora da
farmácia, ainda cioso das minhas responsabilidades e dos meus cuidados. A patroa
e a filha mais nova confessadamente achavam que era manha minha, e ficaram mais
surpresas que eu com o diagnóstico.
Como um todo, meu grande sintoma foi a tal rouquidão, que ainda persiste, mesmo com um novo exame já declarando o término do perrengue. É bem verdade que na sexta-feira eu passei bem mal, com enjoo o dia inteiro, culminando no vômito que eu tanto odeio. Depois disso, fiquei com uma febrinha baixa que durou pela madrugada, com a cara-metade pacientemente me velando, sem querer saber de isolamento, a louca. A coisa terminou no clássico suador. E ça tout.
A questão, portanto, é sobre
vacinas. Se você pegou a doença, você acha que valeu a pena se ocupar tanto de tomá-las
conforme o prescrito?
Bem, se por valer a pena
você quiser dizer que eu deveria estar protegido conforme me foi assegurado
pela imprensa e pelos órgãos governamentais, e que eu poderia viver comumente,
como se a pandemia tivesse acabado tão logo passassem as duas semanas de
preceito após as doses recomendadas, e que eu poderia prescindir de vida tão
regrada quanto a que eu descrevi logo acima, eu diria que não, não valeu a pena.
Afinal de contas, a doença se instalou em mim em qualquer vacilo ainda
desconhecido.
Agora, se por valer a
pena você quiser dizer que obtive uma proteção maior do que teria pelos meus
anticorpos pegos de surpresa, com sintomas muito mais graves e sequelas bem
mais pesadas, que meus familiares mais próximos não foram contaminados por estarem
igualmente vacinados, que as pessoas com as quais tive contato involuntário
estando vacinadas igualmente continuam no planetinha azul, que meu tempo de
recuperação foi muito mais curto e permitiu tornar indetectável a contaminação
em poucos dias, neste caso podemos dizer que valeu a pena, porque a promessa da
vacina não vai somente no bloqueio à doença, mas também na amenização dos
efeitos.
Não preciso nem dizer que
estamos diante de um novo tópico do Pequeno Guia das Grandes Falácias, a
coleção de argumentos capengas que eu mantenho neste humilde espaço já por um
bom tempo. Estamos diante de um tipo especial do falso
dilema e da falácia
relativista, de descrição bastante recente, conhecida pelo irônico nome de If by
Whiskey, ao que caberá uma bela explicação.
Sua origem está em um
discurso do deputado norte-americano Noah “Soggy” Sweat Jr., diante da
continuidade ou extinção ao veto a bebidas alcoólicas no estado de Mississipi. Como
bem se sabe, os EUA tiveram momentos no século XX onde foi implantada a Lei
Seca, uma ideia furada para mitigar o consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
Em uma das mais célebres inversões
de causa e efeito de que temos notícia, acreditava-se naquele país que o
álcool era motivador de miséria e violência, como se a primeira não visse nas
bebidas uma válvula de escape e a segunda não fosse agravada pela atividade do
comércio ilegal. Mesmo após o término das restrições pelo governo federal, e
levando em conta que os EUA formam uma federação de verdade, alguns estados
mantiveram por mais algum tempo suas restrições particulares. Como se vê, é matéria
polêmica, com visões antagônicas dos moralistas antibebida e dos liberais
antiproibição, o que fazia ser delicadíssima de se lidar para quem tinha
contínuas pretensões eleitorais. Tal qual vemos hoje em dia, os ânimos estavam
acirrados e qualquer posição adotada poderia representar munição para os lados
contrários.
Instado a se posicionar, Soggy
proferiu o seguinte discurso, do qual faço livre tradução:
“Meus amigos, eu não pretendia discutir esta controvérsia neste
momento. Entretanto, eu quero que vocês saibam que eu não irei evitá-la. Pelo
contrário, eu tomarei uma posição sobre qualquer assunto em qualquer momento,
por mais controversa que possa ser. Vocês me perguntam o que eu penso sobre
whiskey. Pois bem, aqui está o que eu penso sobre whiskey.
Se quando vocês falam whiskey, querem dizer a poção do diabo, o flagelo
envenenado, o sangue do monstro, que profana a inocência, destrona a razão, destrói
os lares, cria miséria e pobreza, literalmente tira o pão da boca de muitas
criancinhas; se vocês querem dizer a bebida maligna que derruba os homens e
mulheres cristãos do topo da vida justa e cheia de graças no poço sem fundo da
degradação, e do desespero, e da vergonha, e do desamparo, e da desesperança,
então certamente eu sou contra.
Porém, se quando vocês falam whiskey, querem dizer sobre o óleo da
conversação, o vinho filosófico, a cerveja que é consumida quando bons amigos
estão juntos, que coloca uma canção em seus corações e sorriso em seus lábios,
e o brilho quente do contentamento em seus olhos; se vocês querem dizer a
alegria natalina; se vocês querem dizer a bebida estimulante que coloca a
primavera nos passos dos velhos cavalheiros nas manhãs gélidas; se vocês querem
dizer a bebida que permite a um homem ampliar sua alegria, e sua felicidade, e
a esquecer, mesmo que por um instante, as grandes tragédias da vida, as mágoas
e as tristezas; se vocês querem dizer aquela bebida cuja venda traz ao nosso
tesouro milhões de dólares, que são utilizados para providenciar cuidados
carinhosos para nossas pequenas crianças deficientes, nossos cegos, nossos
surdos, nossos tolos, nossos pobres idosos e enfermos; para construir estradas,
hospitais e escolas, eu certamente sou a favor.
Essa é a minha posição. Não vou me retratar dela. É o meu compromisso.”
Dá para perceber todo o
sabor de sabão neste pequeno discurso. Tomam-se duas posições para não se tomar
posição nenhuma, e, dessa forma, tentar passar-se incólume por qualquer lado
que venha a se por em questionamento. É atitude típica de políticos, que buscam
não marcar tão fortemente suas posições a ponto de inviabilizar a recepção de
votos por grupos concorrentes.
Por conseguinte, o grande
propósito desta falácia é contingenciar um determinado argumento à opinião do
seu interlocutor. Com o meneio retórico, o argumentador coloca uma bifurcação à
sua proposição, como se fosse possível responder com “sim” e “não” à mesma
pergunta objetiva. Isso claramente fere o princípio
da não-contradição, que enuncia não ser possível a uma sentença ser
verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Por outro lado, e derivado do fato de se
tratar de questionamentos objetivos (você é a favor ou contra a venda de
bebidas alcoólicas), não se pode dizer impunemente que “a beleza está nos olhos
de quem vê”. Sim, é verdade que cada um pode ter uma opinião sobre qualquer
assunto, mas nessa falácia temos uma inversão. O danadinho, ao invés de se
situar e dar uma posição, relativiza as possibilidades de resposta e se põe em
situação neutra a todas elas, justamente atendendo a todas elas, notaram?
Claramente há
possibilidade de se aventarem duas posições sem que tenhamos uma falácia. O que
faz com que este argumento seja falacioso é sua objetividade. Se a causa em
questão é carregada de subjetivismo, então poderemos não ter um erro. Em um
exemplo para lá de boçal, posso dizer que gosto de azul desde que não esteja
sobre um campo verde, quando aí não gostarei do azul. É juízo de gosto, e não
uma declaração objetiva sobre um assunto objetivo. Também a declaração de
ausência de opinião formada tira a falta de lógica da declaração. Outro ponto é
onde se coloca a situação temporalmente. Um argumento como o abaixo não é falacioso:
“Se houver disposição orçamentária, sou favorável à implantação de
praças esportivas na cidade; entretanto, não é razoável que se desloquem
recursos de áreas mais urgentes caso não haja recursos suficientes”.
Notem que aqui não há
tergiversação, mas um condicional. Isso não é um ensaboamento, como na forma
canônica do whiskey, e sim um contingenciamento para que se delibere a favor ou
contra uma causa, o que me parece mais justo.
Com relação a mim e à
minha posição com relação às vacinas, não vou me colocar tucanamente em cima do
muro. Eu já dei meu parecer sobre a loucura que se criou em
cima das vacinas e continuo achando que há muito de fundo moral na atual
discussão, só que a coisa acabou por se pulverizar tanto que acabou ficando
invisível. Para quem não tiver paciência de ler, vou resumir aqui. O Brasil
sempre teve uma cultura de vacinação. Lá no começo, a coisa ia goela abaixo da
população, que mesmo por vias tortas acabou tomando consciência da importância
que tinha para sua saúde. Acontece que uma das campanhas foi para vacinação
contra HPV em meninas pré-adolescentes. A principal via de introdução deste
vírus no corpo é através do ato sexual (mas não só), e os moralistas de plantão
vieram com suas habituais maluquices, do tipo “estão estimulando as meninas a
uma sexualidade precoce”. Foi a primeira grita de real impacto que eu percebi
na sociedade brasileira dos tais antivax, toda permeada do tal discurso
catastrofista contra os bons costumes – ora, como se uma vacina fosse estimular
ou impedir os impulsos de uma sociedade cada vez mais sexualizada a partir das
elites.
Desde então, a doideira
se disseminou, mas meio que se perdeu essa origem. Agora, fala-se em coisas
como invasão ao direito ao próprio corpo, impedimento à liberdade de escolha, transformação
de humanos em cobaias e, claro, implantação de chips para que governos,
milionários, illuminatis ou marcianos
controlem seu cérebro ou te matem quando bem entenderem.
Vacinas são boas para todos e foram boas para mim também. A
desgraça só não está maior porque a grande maioria dos brasileiros está fazendo
valer sua tradição de se vacinar, sem dar tanto ouvido para as bazófias da
galera maluca, só que esse é o tipo da coisa que tende a crescer. Tem gente que
absorve essas coisas porque não conhece a dinâmica social que tem uma campanha,
e se deixa levar pelos casos que vê mais de perto, ou pelo o que ouve dos
barulhentos, que se tem essa ferramenta para contradizer o bom senso. Só que é
uma ferramenta muito eficaz.
A variante atual é muito contaminante, e pega de bobeira. A
vacina é boa, mas não é milagrosa. Milagres não existem.
Cuidem-se bem. Bons ventos a todos.
Recomendação de audição:
O endereço abaixo contém a gravação de uma reprodução do
famoso discurso do whiskey de Soggy Sweat:
https://en.wikipedia.org/wiki/File:Whiskey.ogg
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