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sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Pequeno guia das grandes falácias – 64º tomo: o if by whiskey

(Há dois lados na questão da vacina? Vamos analisar pelo viés das falácias)

Olá!

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Eu tomei todas as doses da vacina. Não tomei forçado, mesmo com meu medo de agulhas. Tomei porque é um caminho consolidado, mesmo com toda a urgência com as quais estes fármacos foram produzidos. Cumpri a rigor meu calendário, as duas doses prescritas e a de reforço, todas nos primeiros dias da janela para minha idade e comorbidade. Coloquei um avatar de Wally Gator no Skype e fiz campanha com os meus parcos recursos.

Eu usei máscaras com todo o rigor possível, até mesmo na porta do apartamento, para colocar o lixo no latão. Usei máscaras de pano no começo, duas quando necessário, progredindo para as cirúrgicas e posteriormente para as PFF2, raspando o bigode de décadas para melhor acomodá-las e resistindo bravamente ao incômodo nas orelhas e a vontade de arrancá-las nos momentos de maior esforço, quando você puxa o ar e não vem. Mantive-as cem por cento do tempo em que pus o focinho para fora de casa, evitando a custo de colocar as mãos nelas, mesmo com o nariz coçando a ponto de ficar vermelho. Não fiz estética – sempre procurei usar máxima eficiência, fazendo inclusive o risonho teste do palito de fósforo, para verificar possíveis vazamentos. Usei fita adesiva para mantê-las no lugar e evitar os escapes, fáceis de notar quanto se usa óculos. Enfiei a mão no bolso com gosto, e, mesmo com uma tristeza profunda vinda da conta, dei pouquíssimo descanso aos artefatos usados, como se fossem descartáveis.

Eu mantive o afastamento social, vivendo uma vida quase eremítica até tomar as primeiras duas doses da vacina. Após isso, poucas idas a lugares essenciais, sem festas de fim de ano, sem receber ninguém em casa, sem aceitar nenhum convite e, quando saísse, cumprindo todas as normas de segurança até com excesso.

Eu usei sabão para as mãos, álcool para esterilizar qualquer produto vindo de fora, usei Lysoform© nas roupas, cloro nos vegetais, revi todas as condutas de higiene que eu tinha até hoje, criando calçados exclusivos para sair e para ficar em casa, tomei banho imediatamente após qualquer saidinha que fosse para buscar uma Aspirina© na farmácia.

Eu cheguei ao descuido em nome do cuidado. Desmarquei todas as consultas que eu tinha, inclusive as periódicas, utilizando serviços remotos em qualquer lugar onde ele fosse possível. Afinal de contas, os serviços médicos, os laboratórios e os hospitais eram onde a coisa mais fervia. Fiquei com gastrite e otite até se curarem sozinhos. Não é a melhor forma, mas sempre que eu punha as coisas na balança, pendia para o risco de uma doença sem cura, com resultados inesperados.

Eu acompanhei a evolução da pandemia pela TV e pela internet, aprendi termos novos e velhos, morri de raiva com a atitude dos mandatários e suas poções mágicas, acompanhei a evolução gráfica dos casos e das mortes, mesmo com as sabotagens públicas.

Cuidei por mim, pelos filhos, pela patroa. Pelos velhinhos deste prédio de gente doida. Pelos parentes e amigos, pelos sogros já idosos e por gente que eu nunca vi na vida, porque ser responsável é isso: cuidar de quem se gosta é fácil. Se dizemos que amamos país, estado e cidade, é preciso cuidar do povo destes mesmos lugares.

No entanto, ela veio. No domingo passado acordei com a rouquidão típica dos fumantes exagerados, só que eu não fumo há décadas. "Deve ser refluxo", disse a patroa. Devia ser mesmo, pensei eu, diante da ausência de qualquer outra moléstia, e segui meu dia normalmente. Segunda e terça amanheci da mesma forma, o que foi me deixando bolado, e fui atrás de fazer um teste, já que a semana seguinte estava sujeita a ser de açodada escala presencial. Só consegui fazê-lo na quarta à noite, diante da explosão de consumo dos kits. O cotonete me fez morrer de coceira, uma sensação de desconforto pior que uma picada. Fiquei do lado de fora da farmácia, ainda cioso das minhas responsabilidades e dos meus cuidados. A patroa e a filha mais nova confessadamente achavam que era manha minha, e ficaram mais surpresas que eu com o diagnóstico.


Como um todo, meu grande sintoma foi a tal rouquidão, que ainda persiste, mesmo com um novo exame já declarando o término do perrengue. É bem verdade que na sexta-feira eu passei bem mal, com enjoo o dia inteiro, culminando no vômito que eu tanto odeio. Depois disso, fiquei com uma febrinha baixa que durou pela madrugada, com a cara-metade pacientemente me velando, sem querer saber de isolamento, a louca. A coisa terminou no clássico suador. E ça tout.

A questão, portanto, é sobre vacinas. Se você pegou a doença, você acha que valeu a pena se ocupar tanto de tomá-las conforme o prescrito?

Bem, se por valer a pena você quiser dizer que eu deveria estar protegido conforme me foi assegurado pela imprensa e pelos órgãos governamentais, e que eu poderia viver comumente, como se a pandemia tivesse acabado tão logo passassem as duas semanas de preceito após as doses recomendadas, e que eu poderia prescindir de vida tão regrada quanto a que eu descrevi logo acima, eu diria que não, não valeu a pena. Afinal de contas, a doença se instalou em mim em qualquer vacilo ainda desconhecido.

Agora, se por valer a pena você quiser dizer que obtive uma proteção maior do que teria pelos meus anticorpos pegos de surpresa, com sintomas muito mais graves e sequelas bem mais pesadas, que meus familiares mais próximos não foram contaminados por estarem igualmente vacinados, que as pessoas com as quais tive contato involuntário estando vacinadas igualmente continuam no planetinha azul, que meu tempo de recuperação foi muito mais curto e permitiu tornar indetectável a contaminação em poucos dias, neste caso podemos dizer que valeu a pena, porque a promessa da vacina não vai somente no bloqueio à doença, mas também na amenização dos efeitos.

Não preciso nem dizer que estamos diante de um novo tópico do Pequeno Guia das Grandes Falácias, a coleção de argumentos capengas que eu mantenho neste humilde espaço já por um bom tempo. Estamos diante de um tipo especial do falso dilema e da falácia relativista, de descrição bastante recente, conhecida pelo irônico nome de If by Whiskey, ao que caberá uma bela explicação.

Sua origem está em um discurso do deputado norte-americano Noah “Soggy” Sweat Jr., diante da continuidade ou extinção ao veto a bebidas alcoólicas no estado de Mississipi. Como bem se sabe, os EUA tiveram momentos no século XX onde foi implantada a Lei Seca, uma ideia furada para mitigar o consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Em uma das mais célebres inversões de causa e efeito de que temos notícia, acreditava-se naquele país que o álcool era motivador de miséria e violência, como se a primeira não visse nas bebidas uma válvula de escape e a segunda não fosse agravada pela atividade do comércio ilegal. Mesmo após o término das restrições pelo governo federal, e levando em conta que os EUA formam uma federação de verdade, alguns estados mantiveram por mais algum tempo suas restrições particulares. Como se vê, é matéria polêmica, com visões antagônicas dos moralistas antibebida e dos liberais antiproibição, o que fazia ser delicadíssima de se lidar para quem tinha contínuas pretensões eleitorais. Tal qual vemos hoje em dia, os ânimos estavam acirrados e qualquer posição adotada poderia representar munição para os lados contrários.

Instado a se posicionar, Soggy proferiu o seguinte discurso, do qual faço livre tradução:

“Meus amigos, eu não pretendia discutir esta controvérsia neste momento. Entretanto, eu quero que vocês saibam que eu não irei evitá-la. Pelo contrário, eu tomarei uma posição sobre qualquer assunto em qualquer momento, por mais controversa que possa ser. Vocês me perguntam o que eu penso sobre whiskey. Pois bem, aqui está o que eu penso sobre whiskey.

Se quando vocês falam whiskey, querem dizer a poção do diabo, o flagelo envenenado, o sangue do monstro, que profana a inocência, destrona a razão, destrói os lares, cria miséria e pobreza, literalmente tira o pão da boca de muitas criancinhas; se vocês querem dizer a bebida maligna que derruba os homens e mulheres cristãos do topo da vida justa e cheia de graças no poço sem fundo da degradação, e do desespero, e da vergonha, e do desamparo, e da desesperança, então certamente eu sou contra.

Porém, se quando vocês falam whiskey, querem dizer sobre o óleo da conversação, o vinho filosófico, a cerveja que é consumida quando bons amigos estão juntos, que coloca uma canção em seus corações e sorriso em seus lábios, e o brilho quente do contentamento em seus olhos; se vocês querem dizer a alegria natalina; se vocês querem dizer a bebida estimulante que coloca a primavera nos passos dos velhos cavalheiros nas manhãs gélidas; se vocês querem dizer a bebida que permite a um homem ampliar sua alegria, e sua felicidade, e a esquecer, mesmo que por um instante, as grandes tragédias da vida, as mágoas e as tristezas; se vocês querem dizer aquela bebida cuja venda traz ao nosso tesouro milhões de dólares, que são utilizados para providenciar cuidados carinhosos para nossas pequenas crianças deficientes, nossos cegos, nossos surdos, nossos tolos, nossos pobres idosos e enfermos; para construir estradas, hospitais e escolas, eu certamente sou a favor.

Essa é a minha posição. Não vou me retratar dela. É o meu compromisso.”

Dá para perceber todo o sabor de sabão neste pequeno discurso. Tomam-se duas posições para não se tomar posição nenhuma, e, dessa forma, tentar passar-se incólume por qualquer lado que venha a se por em questionamento. É atitude típica de políticos, que buscam não marcar tão fortemente suas posições a ponto de inviabilizar a recepção de votos por grupos concorrentes.

Por conseguinte, o grande propósito desta falácia é contingenciar um determinado argumento à opinião do seu interlocutor. Com o meneio retórico, o argumentador coloca uma bifurcação à sua proposição, como se fosse possível responder com “sim” e “não” à mesma pergunta objetiva. Isso claramente fere o princípio da não-contradição, que enuncia não ser possível a uma sentença ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Por outro lado, e derivado do fato de se tratar de questionamentos objetivos (você é a favor ou contra a venda de bebidas alcoólicas), não se pode dizer impunemente que “a beleza está nos olhos de quem vê”. Sim, é verdade que cada um pode ter uma opinião sobre qualquer assunto, mas nessa falácia temos uma inversão. O danadinho, ao invés de se situar e dar uma posição, relativiza as possibilidades de resposta e se põe em situação neutra a todas elas, justamente atendendo a todas elas, notaram?

Claramente há possibilidade de se aventarem duas posições sem que tenhamos uma falácia. O que faz com que este argumento seja falacioso é sua objetividade. Se a causa em questão é carregada de subjetivismo, então poderemos não ter um erro. Em um exemplo para lá de boçal, posso dizer que gosto de azul desde que não esteja sobre um campo verde, quando aí não gostarei do azul. É juízo de gosto, e não uma declaração objetiva sobre um assunto objetivo. Também a declaração de ausência de opinião formada tira a falta de lógica da declaração. Outro ponto é onde se coloca a situação temporalmente. Um argumento como o abaixo não é falacioso:

“Se houver disposição orçamentária, sou favorável à implantação de praças esportivas na cidade; entretanto, não é razoável que se desloquem recursos de áreas mais urgentes caso não haja recursos suficientes”.

Notem que aqui não há tergiversação, mas um condicional. Isso não é um ensaboamento, como na forma canônica do whiskey, e sim um contingenciamento para que se delibere a favor ou contra uma causa, o que me parece mais justo.

Com relação a mim e à minha posição com relação às vacinas, não vou me colocar tucanamente em cima do muro. Eu já dei meu parecer sobre a loucura que se criou em cima das vacinas e continuo achando que há muito de fundo moral na atual discussão, só que a coisa acabou por se pulverizar tanto que acabou ficando invisível. Para quem não tiver paciência de ler, vou resumir aqui. O Brasil sempre teve uma cultura de vacinação. Lá no começo, a coisa ia goela abaixo da população, que mesmo por vias tortas acabou tomando consciência da importância que tinha para sua saúde. Acontece que uma das campanhas foi para vacinação contra HPV em meninas pré-adolescentes. A principal via de introdução deste vírus no corpo é através do ato sexual (mas não só), e os moralistas de plantão vieram com suas habituais maluquices, do tipo “estão estimulando as meninas a uma sexualidade precoce”. Foi a primeira grita de real impacto que eu percebi na sociedade brasileira dos tais antivax, toda permeada do tal discurso catastrofista contra os bons costumes – ora, como se uma vacina fosse estimular ou impedir os impulsos de uma sociedade cada vez mais sexualizada a partir das elites.

Desde então, a doideira se disseminou, mas meio que se perdeu essa origem. Agora, fala-se em coisas como invasão ao direito ao próprio corpo, impedimento à liberdade de escolha, transformação de humanos em cobaias e, claro, implantação de chips para que governos, milionários, illuminatis ou marcianos controlem seu cérebro ou te matem quando bem entenderem.

Vacinas são boas para todos e foram boas para mim também. A desgraça só não está maior porque a grande maioria dos brasileiros está fazendo valer sua tradição de se vacinar, sem dar tanto ouvido para as bazófias da galera maluca, só que esse é o tipo da coisa que tende a crescer. Tem gente que absorve essas coisas porque não conhece a dinâmica social que tem uma campanha, e se deixa levar pelos casos que vê mais de perto, ou pelo o que ouve dos barulhentos, que se tem essa ferramenta para contradizer o bom senso. Só que é uma ferramenta muito eficaz.

A variante atual é muito contaminante, e pega de bobeira. A vacina é boa, mas não é milagrosa. Milagres não existem.

Cuidem-se bem. Bons ventos a todos.

Recomendação de audição:

O endereço abaixo contém a gravação de uma reprodução do famoso discurso do whiskey de Soggy Sweat:

https://en.wikipedia.org/wiki/File:Whiskey.ogg

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