(A esfera mítica está no nosso dia-a-dia, nas pessoas que admiramos. Mas muitas vezes polarizam interiormente nossa capacidade de absorver o mundo divergente).
Olá!
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Não sou muito chegado em compras, apesar de morar a menos de
um quilômetro da 25 de Março, rua de quinquilharias de São Paulo conhecida em
todo o Brasil. Principalmente quando a compra é inespecífica, aquela coisa de
andar para um lado e para o outro procurando promoções, pechinchas e descontos.
Nestes casos, costumo procurar ser ainda mais objetivo do que se fosse a
passeio, e fico de bode quando forçosamente acompanho a patroa nesses
empreendimentos. No entanto, se a busca é gastronômica, a coisa muda de figura.
Disse tudo isso porque minha parada anterior, em Borda
da Mata, teve muito da barganha precitada, e achei por bem dar uma
sequência mais enfiada na ruralidade, sem tantas "oportunidades" e,
para isso, Tocos do Moji é uma belíssima pedida.
Tocos do Moji tem esse curioso nome com origem incerta, mas a verdade parece estar no mais óbvio: os pedaços de troncos de araucária que se depositavam nos fundos do Rio Moji-Guaçu, o que providenciava algumas passagens naturais pela água. É pequenininha de tudo, quase limitada ao que é possível ver do morro da igreja matriz.
Aliás, mesmo pequena, tem muita religiosidade espalhada pela cidade de 4000 habitantes, começando pela Igreja Nossa Senhora Aparecida, que fica no cimo do morro de onde tirei a foto anterior. Nos degraus da escadaria central, há uma oração semelhante a um rosário, conhecida como Terço da Alegria de Nossa Senhora.
Uma grande imagem da padroeira do Brasil pontua no lado da entrada da paróquia, como se estivesse na mesma posição que eu tomo ao tirar minha foto.
Logo na entrada da cidade, outra marca cristã está na igreja dedicada a Santa Luzia, tida como protetora da visão, dada a narrativa do seu martírio, onde os romanos, bonzinhos, arrancaram seus olhos para forçá-la à apostasia.
Pela área rural, tem uma porção de capelinhas, algumas delas muito bem cuidadas.
E, no alto do morro que faz caminho para Bom Repouso, tem um Cristo Redentor, um dos raros que está pintado em cores variadas.
Passamos pela área rural, em busca de cachoeiras para dar
uma molhada nas costas. A primeira foi a cachoeira do Zé Rita, que, na verdade,
é um salto no rio Moji Guaçu.
Depois, mais adiante, um pulinho na Cachoeira das Pedras.
No pequeno centrinho, quase como um daqueles botecos perdidos em qualquer cidadezinha que visitemos, tem uma portinha que esconde um grande tesouro: a pastelaria do Zé Bastião.
Neste minúsculo estabelecimento, produz-se uma iguaria que virou um símbolo de Tocos do Moji. Um pastel de angu, daqueles que é feito tradicionalmente em toda a região da Mantiqueira, dos quais já comi vários, alguns muito bons, como o do Mercadão de Paraibuna e os das porções do Mai Será o Binidito, de São Luiz do Paraitinga. Mas sabe aqueles casos em que há um não-sei-o-que que diferencia algo de tudo o mais parecido? É o caso que temos à nossa frente.
O patriarca, infelizmente, não vive mais. Morreu com outros
familiares em um acidente automobilístico, mas deixou essa receita que virou
patrimônio cultural da cidade.
Geralmente, um pastel de angu é mais macio do que um de feira. A diferença você vê no banco em que você se senta para comer, incólume no primeiro caso, pleno de migalhas no segundo. Por padrão, mesmo que esteja bem sequinho, o pastel de angu, dada sua porosidade, retém mais óleo do que seu congênere feirante. O milagre do Zé Bastião está no fato de que ele conseguiu manter a crocância de seu pastel sem multiplicar as casquinhas que se desprendem, chegando a uma espécie de mundo ideal da massa, que vem recheada na medida certa. Por isso ganhou o estatuto de mito nesta pequena região.
Por falar nisso, nos últimos tempos, as respostas rápidas
que as redes sociais ofereceram fez nascer o termo "mitada", que
consiste em dar contrarrespostas incisivas ou humilhantes a supostos
interlocutores. Admiradores do presidente recém-saído desgastaram o termo ao
máximo, porque qualquer respostinha atravessada que o cidadão dava, lá vinha
sua camarilha: "mito, mito, mito". Mas há algo que faz sentido
filosófico no termo, especialmente antes de sua corrosão.
Eu já falei sobre mitologia neste blog por várias vezes,
especialmente neste
aqui, e meu objetivo aqui não será repisá-lo, mas tentar entender como se
dá o processo de mitificação, ou seja, de retirar um ser humano normal de seu
lugar e colocá-lo em um campo sacralizado, e como de lá ele gera adeptos
inamovíveis. Mas é impossível não passar pela origem do termo.
Mito, apesar de parecer estar relacionado a mentira, na
verdade indica uma história contada. Os primeiros homens já criaram suas
mitologias quando faziam sua busca por respostas às questões menos explícitas
da natureza que os cercava. O surgimento do universo, a criação da vida, as
aparições dos ciclos, o irrompimento dos fenômenos, tudo isso não tinha
explicação clara e evidente como o nascimento de uma criança específica tem,
por exemplo. Para esse caso, pode-se claramente descrever o passo-a-passo
geracional de um parto, ainda que certas sutilezas não sejam conhecidas. No
entanto, quanto eu mais recuar no tempo, menos elementos eu terei para explicar
aquelas coisas mais distantes. Como sou humano e quero explicações, passo a
fazer suposições, e delas nascerão narrativas que demandarão novas narrativas e
assim por diante, formando um corpus que poderá ser coligido em um conjunto que
forma uma mitologia.
Muitas das narrativas mitológicas incluem um componente heroico,
e é simples de entender isso. Como os mitos incluem fenômenos que influenciam a
vida de toda uma comunidade, podendo se estender à humanidade toda, é suposto
que derivem de feitos extraordinários. Não é da ação prosaica de uma pessoa
qualquer que brotará um acontecimento digno de ser repassado às gerações, mas
de algum feito a que poucos é dada a capacidade de fazer. O ato heroico põe seu
protagonista em risco, ou chegando em locais inimagináveis, ou ainda em números
inconcebíveis, e o coloca em distinção aos demais homens.
Os mitos, nesse sentido, expressam o desejo do ser humano de
ser algo mais sublime do que sua vida ordinária faz entrever. Como não é dado a
qualquer um sair do círculo vicioso da vida quotidiana, os homens que realizam
algum tipo de ato heroico representam o sonho de alcance da comunidade como um
todo. Quando um herói realiza seu feito, este é de toda a sua comunidade, e não
somente de si. Por outro lado, como ele tem todo o poder do símbolo desse
conglomerado de pessoas, acaba se tornando um totem: seu valor simbólico acaba
se tornando maior que o concreto.
Quando dizemos que um artista, esportista, religioso ou até
mesmo político é um herói, colocamo-lo na condição de mito. As histórias dos
seus feitos suplantarão, em muito, sua história geral, de modo a lhe colocar em
pedestais que, aos olhos de seus admiradores, fazem com que sejam extraídos da
humanidade comum. A esfera da racionalidade vai aos poucos sendo abandonada,
com o nascedouro de contradições, como o abandono de sua condição humana. O
mito é posto em lugar santificado, sacralizado. E aí acontece o estranho
fenômeno do retrocesso à realidade: o de que os mitos também morrem, e, por extensão,
não deixaram de ser humanos. E isso pode fazer a narrativa mítica se
multiplicar ainda mais. Vou mencionar alguns exemplos.
O primeiro é Ayrton Senna. Eu já falei sobre ele sobre uma
perspectiva bastante filosófica (aqui),
mas não custa mencionar esse exemplo maior dos brasileiros. Senna é, fácil, um
dos melhores pilotos de todos os tempos. Sua aura mítica se deve à colocação
como herói nacional, já que trazia um orgulho ao brasileiro por desfilar
ostensivamente com a bandeira a cada vitória. Em tempos difíceis, era a grande
esperança concreta que empunhava o símbolo do brasileiro vitorioso, tão raro
desde sempre. Dessa forma, tornou-se uns dos grandes totens do imaginário
tupiniquim, tão significativo que não pode ser contestado, já equivalendo esse
ato a uma ofensa. Se alguém coloca em dúvida a sua posição de melhor piloto de
todos os tempos, ainda que o faça com números e dados sólidos, não é bem-visto.
Isso ocorre sem dúvida porque afeta diretamente as convicções pessoais e
indiretamente as identidades comunitárias.
Continuemos, agora falando do Pelé. Ele está à baila, por
dois motivos: sua condição de saúde terminal* (pelo menos no momento em que
digito este texto) e o final recente da Copa do Mundo, onde o conjunto de
atuações do argentino Lionel Messi coroou sua vitoriosa carreira. Eu,
pessoalmente, só vi o Pelé jogando pelas reprises da televisão. Isso traz dois
problemas: o primeiro é que tanto meus avós, quanto meu pai em particular
sempre me disseram que as verdadeiramente grandes atuações do Rei foram pelo
Santos, que não estão registradas em sua totalidade. O segundo é que as coletas
televisivas sempre se resumem aos melhores momentos, e o que temos é um estrato
que desconsidera atuações apagadas e jogos ruins. Eles existiram, existem na
vida de qualquer jogador. Mas suas atuações foram tão extraordinárias para sua
época que ergueu o mito, especialmente no Brasil. Eu não posso dizer que vi o
Pelé jogando futebol e, entre os que vi, Messi é o melhor. Ponto. Se alguém
coloca o reinado do Pelé em questão, mesmo que o faça respeitosamente e com
critérios os mais objetivos possíveis, vai levar pedrada. Porque a mitificação
inclui esse elemento religioso: o fanatismo.
Mais um exemplinho, fora do âmbito esportivo: Michael
Jackson. Ele foi, de fato, um sucesso estrondoso na década de 80. Efetivamente
talentoso, transformou o modo como se faziam videoclipes, trazendo uma produção
super apurada e enfatizando o duplo talento de cantar e dançar, ambos com a
mesma importância. O transcurso de sua carreira, entretanto, foi permeado de
polêmicas, a ponto de sua produção musical ficar obscurecida e deixada em
segundo plano. Os movimentos negros acusavam-no de embranquecimento, no que
eram respondidos evasivamente e com um mal explicado acometimento de vitiligo.
Sobraram acusações de tentar se tornar uma eterna criança e, pior ainda, de
crimes de pedofilia. Suas aparições passaram a ser cada vez mais bissextas,
envolvendo sua vida com uma aura de mistério e, de certa forma, de
esquecimento. No entanto, sua morte repentina reacendeu todos os seus atributos
e sepultaram as polêmicas, alçando-o à condição de mito como nunca aconteceu
antes. O título "rei do pop" foi para a crista da onda como nunca
havia acontecido, e mesmo gente que não tinha idade para reverenciá-lo como tal
passou a ser "testemunha ocular" de seu sucesso. Dizer que outros
artistas na mesma época se aproximaram de seu patamar virou uma ofensa para fãs
e neo-fãs, mas eles existiram, como a Madonna. Só que como ela nunca se afastou
dos palcos e, principalmente, ainda está viva, a aura mítica não lhe é tão forte.
É até um pouco difícil de deduzir porque isso acontece.
Chamar um fã de idiota não é uma boa resposta, porque há gente verdadeiramente
inteligente que entra na defesa irracional do mito.
A resposta passa pela Psicologia, certamente. Parece existir
alguma barreira que impeça a cognição de dados concretos e de informações
conflitantes com nosso conteúdo conviccional. Não se trata de pura dissonância
cognitiva, porque não é uma questão de coerência de informações. As
contraposições aos mitos podem ser muito boas, e, mesmo assim, não serem
aceitas. O caso parece mais o que o velho pensador alemão Johann Herbart
chamava de estado de tendência.
O estado de tendência foi um conceito que, a partir de
Freud, foi substituído pelo inconsciente, tendo ficado ainda válido no campo da
Filosofia. Segundo Herbart, a apreensão de conteúdos na mente funciona pela
experiência e contínuas associações, que criam representações de valor
cognitivo. Essas associações funcionariam com um esquema de forças semelhantes ao
magnetismo. Quando uma nova ideia é obtida no mundo exterior, penetra em nossa
mente com uma determinada energia. Essa energia, como se fosse um ímã, possui
uma polaridade, que pode ser positiva ou negativa. Quando é positiva, ela se
une às ideias preexistentes e aumenta seu potencial energético, tornando o
conjunto cognitivo mais forte. Por outro lado, se a polaridade da cognição nova
é inversa em relação à anterior, ocorrerá uma mútua repulsa. Esse processo fará
com que a ideia mais energética repila a menos potente, e seu destino é ser
expulso da consciência. Seja a ideia nova ou a velha, no entanto, não será
meramente esquecida, porque Herbart dizia que as ideias não podem ser
destruídas. Ela ficará reclusa em um segundo plano, uma espécie de depósito
mental. De lá, ela poderá ser resgatada em algum momento da vida, a não ser que
esteja lá a tanto tempo que se torne esmaecida, mas reavivada por algum fator
que a leve de volta a nível consciente. Esse é o estado de tendência.
Este parece ser o confronto que o pensamento mítico tem
quando se vê confrontado com ideias que o desafiam. Sua polaridade e energia
mental são muito fortes para simplesmente ser substituído pela nova proposta. É
potente, especialmente, pela significação que adquire no imaginário pessoal e
coletivo.
É algo que acontece em algum nível com todos. Ninguém vai
jamais me convencer que o Corinthians não é o melhor time do mundo, porque é
como Fernando Pessoa se referia ao rio de sua aldeia: é o mais belo do mundo
porque é o rio de minha aldeia, mesmo que o Tejo seja maior e mais
deslumbrante. O mesmo se aplica ao pastel do Zé Bastião, mito dos
tocos-mojienses. Até porque eles podem ter razão. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
A tradução da obra de Herbart em português é somente voltada
para a pedagogia. É preciso buscar em outras línguas para pesquisar sobre sua
filosofia.
HERBART, Johann. Manuale di Psicologia. Roma: Armando
Editore, 1982.
*Antes de publicar este texto, a morte do Pelé ocorreu. Resolvi manter a íntegra para dar ideia de continuidade, porque publiquei um texto sobre o assunto logo em seguida.
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