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quarta-feira, 28 de julho de 2021

Pequeno guia das grandes falácias – 62º tomo: a resposta do cortesão

(Será que nós só podemos tratar de assuntos nos quais somos especialistas? Somos obrigados a conhecer as minúcias de cada coisa das quais queremos falar?)

Olá!

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Poucas vezes eu falei sobre meu trabalho neste espaço, em mais de 300 textos. O motivo é óbvio: eu não ligo para ele. Não chega a ser um desgosto completo, daqueles de pavimentar depressão, mas tem aquele monte de coisa – não é criativo, carrega muita pressão, envolve muita paciência. Não é aquela coisa aprazível, que gostamos de ficar contando aos netos que não tenho ou na mesa do jantar, que tenho. Enfim, eu trabalho com informática, mais especificamente na área de levantamento de requisitos.

Esse é o meu ganha-pão, e por isso eu o aturo. Minha porção professor, eu a exerço de maneira bissexta hoje em dia, mas já trabalhei em escolas públicas e privadas, além de preparar e ministrar cursos e até mesmo treinamentos. É o que eu gosto de fazer de verdade, e projeto retomar a atividade com afinco quando eu me aposentar. E se.

Ora (direis), se te comprazes com a atividade docente, e é-lhe pesado carregar o fardo do exercício incômodo, por que não mudas de emprego? – questionar-me-á meu habitual interlocutor imaginário. Porque já é preciso ganhar o pão, e este é mais caro aos professores do que aos informatas. Fui para a faculdade de Filosofia já velho, e nunca a tive como atividade principal, como já discorri neste texto. Não é tempo de chorar, e lido bem com a coisa, não fiquem aflitos.

Acontece que há fatores ingratos neste ofício que me sustenta. O propósito primário é levantar as necessidades de um cliente, analisá-las à luz dos recursos e dos dados disponíveis e melhorar a vida da freguesia. O grifo se dá porque nosso natural conservadorismo faz com que as especificações de requisitos sejam documentos do ódio, que visam modificar a vida dos cidadãos ao ponto de dizerem que se tratam de burros que nunca souberam trabalhar. Não é nada disso, naturalmente.

Acompanhem meu raciocínio. Digamos que uma rotina qualquer inclui uma conferência dos documentos produzidos por certa equipe. Esta conferência existe porque há possibilidade de falha humana, por óbvio. Quando desenhamos um sistema, uma das etapas é averiguar a fiabilidade das informações, através de processos de cruzamento de dados, de batimento, de fórmulas matemáticas e via discorrendo. Estando todos conformes, a análise propõe a eliminação de tal conferência, o que é uma garantia de rebuliço. “Não é você que vai assinar”, dirá um usuário mais exaltado. “É para isso que serve uma etapa criteriosa de homologação”, costumamos responder. Ou seja, não deixa de ser uma maneira marota de você se esquivar de futuros problemas, mas também não dá para ter coração de mãe e costas de pai. Cada um que assuma sua responsabilidade.

Mas há um ponto invariável em que sempre chega um levantamento. Como o documento final será sempre uma peça contra a qual serão lançados olhares tortos de reprovação, alguém sempre arremessa o argumento peremptório: “Esses caras acham tudo fácil porque não conhecem nada do serviço e não comem do pão que nosso diabo amassou”.

Dupla mentira. Uma das fases de qualquer levantamento é sentar do lado dos diferentes membros de uma equipe justamente para aprender seu processo de trabalho e enchê-los de perguntas intermináveis, para saber passinho por passinho o que é feito para obter o resultado final. Há documentos para espelhar isso e que são validados com os futuros usuários. Desta forma, aprendemos bastante sobre o trabalho realizado. E a segunda é que essa afirmação carrega um ar de desautorização, como se fôssemos obrigados a ser formados na área em que se busca desenvolver um sistema.

Ledo engano, triste ilusão. Eu não preciso saber engenharia para desenvolver sistemas de engenharia. Não preciso saber de recursos humanos para desenvolver sistemas de recursos humanos. Não preciso saber contabilidade (eu sei) para desenvolver sistemas de contabilidade. Eu preciso conhecer os processos de trabalho e especificar requisitos que façam com que a sua informatização devolva algum benefício para os usuários. Por “algum benefício”, nem sempre quero dizer menos trabalho. Esta é uma das vantagens possíveis, mas do resultado das análises podem ocorrer tarefas que aumentem o controle, a precisão das informações, a disponibilidade de serviços, etc e que acabem por demandar mais trabalho. Por isso, o argumento de que precisamos manjar indistintamente de uma área para desenvolver sobre ela é falacioso. É a falácia da resposta do cortesão. Nome curioso, que vamos esmiuçar a partir de agora.

A resposta do cortesão é uma espécie de magister dixit às avessas. A alegação é que o interlocutor não possui conhecimento suficiente para sustentar determinado argumento e, portanto, não está autorizado a falar sobre o assunto. O insólito nome foi criado em razão de uma historinha meio comprida, que vou tentar resumir abaixo.

Acho que todos aqui ao menos ouviram falar sobre o conto do dinamarquês Hans Christian Andersen chamado A Roupa Nova do Imperador. Esse fabulista, assim como Esopo e irmãos Grimm, ficou conhecido por recolher histórias populares e dar a elas um colorido literário, transformando-as em opúsculos universais. Neste caso específico, trata-se da lenda de um império cujo líder era extremamente vaidoso, e suas demonstrações de opulência eram mais expressivas que seu governo em si. Dois vigaristas resolveram tirar proveito da situação e ofereceram ao monarca uma roupa sem igual, que seria admirada por todos, especialmente porque somente os mais sábios teriam conhecimento suficiente para conseguir enxergar seu tecido e suas sofisticadas tramas, que misturariam seda, prata e ouro. Essa característica daria ao rei não só a oportunidade de vestir uma roupa magnífica, mas de saber com precisão quais seriam os funcionários do palácio verdadeiramente capacitados para suas funções. Mas o custo era caríssimo.

O rei não titubeou. Mandou entregar aos pseudocostureiros todo o dinheiro necessário para a confecção da peça, que foi devidamente embolsado pelos ladravazes. Ambos se puseram em seus teares para iniciar o "trabalho", que demoraria um bom tempo para ficar pronto. De tempos em tempos, o rei mandava um emissário do palácio para verificar o andamento da costura, mas invariavelmente ninguém conseguia enxergar nada. Temendo ser julgados néscios, todos diziam que a obra ia às mil maravilhas, embora nada fosse visível. Até mesmo o próprio rei, tomado de curiosidade, foi averiguar o trabalho dos patifes, com o mesmo resultado: nada ver e alegar maravilhamento. Afinal, essa era a aposta dos dois - como um rei tão vaidoso iria admitir sua incapacidade?

Terminada a peça, algum palaciano teve a ideia de que a roupa nova do imperador deveria ser mostrada a todo povo em um desfile, o que foi feito. À vista de todo o povo, o rei desfilava em praça pública e, embora todo povo visse que estava peladão, ninguém tinha coragem de afrontá-lo ou admitir a própria estultícia. Até que uma criança, uma das meninas mais simples, gritou a plenos pulmões: "o rei está nu! O rei está nu!!!" Apesar do crescente murmúrio do povo, o rei prosseguiu o seu desfile impassível, porque achava que o mesmo tinha que prosseguir.

É daquelas histórias feitas para crianças, mas dirigidas a adultos, como aquelas que mencionei neste post. Aqui, temos a medida da vaidade humana, que turva até mesmo as impressões mais reais, e também uma boa dica sobre subserviência, quando preferimos absorver a impressão do maioral a ter as nossas próprias. Mas vamos entender o que tudo isso tem a ver com o tema em tela, que é a origem da falácia.

Na primeira década do século XXI, um grupo de pensadores ateus começou a se destacar no ambiente intelectual com uma crítica muito contundente ao papel das religiões na vida das diferentes sociedades. Os principais eram chamados de "quatro cavaleiros do não apocalipse" ou "quatro cavaleiros do ateísmo": Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris e Christopher Hitchens. O primeiro (de quem já falei aqui, aqui e aqui) era o mais popular e virulento de todos, o que fez com que ele tomasse muita pedrada de toda a comunidade religiosa. A principal alegação era de que ele não tinha como desenvolver argumentos consistentes, tendo em vista a ausência de conhecimentos sofisticados em Teologia. Por isso, não possui autoridade alguma para versar as críticas que faz.

Tomando a defesa de Dawkins, o biólogo e divulgador científico Paul Zachary Myers traçou uma analogia. Em linhas gerais, ele ironicamente afirmou que a contraposição com base no argumento da falta de autoridade assemelha-se a um cortesão que afirma que a criança que bradou a nudez do rei não tem conhecimentos suficientes em alta costura para argumentar sobre a ausência de roupas do dignitário.

Onde está o cerne da crítica? Dawkins afirma a inexistência de deus, assim como a menina afirma a inexistência da roupa. Não há necessidade de conhecimento daquilo que não existe, ora essa. Para os ateus, todo e qualquer estudo teológico, por mais aprofundado e requintado que seja, é um estudo sobre nada. Por isso, definir que não há autoridade sobre o assunto é uma afirmação falaciosa. É uma forma velada de argumentum ad hominem, inclusive, porque trata o lado oposto como incapaz de produzir uma crítica.

Colocando agora em um contexto menos histórico e mais quotidiano, podemos notar que a resposta do cortesão funciona como qualquer outro tipo de apelo: dispersa do foco principal e introduz material irrelevante na conversa. Isso acontece porque discutir as especialidades de quem profere uma proposição tira da mira o argumento em si, que seria quem, de fato, deveria ser atacado. A ausência de especialização formal não é motivo suficiente, de per si, para que uma pessoa não possa ser ouvida.

Menciono como exemplo o canal Space Today, conduzido por Sérgio Sacani. De formação, ele é geofísico, e trabalha diretamente com a indústria petrolífera. Entretanto, sendo um apaixonado por astronomia, dedica todo seu tempo livre ao estudo da cosmologia, da astronáutica, da astrofísica e traz novidades constantes sobre esse universo de conhecimento. Sua pesquisa é irrepreensível, combinando fontes confiáveis e conhecimento acumulado em anos, o que lhe dá um gabarito em nível dos melhores mestres. Levando em conta ainda sua capacidade de comunicação e traquejo na divulgação científica, podemos considerar que temos um canal ideal para quem curte a área. Ora (direis de novo), mas ele não é astrônomo. Neste caso, o primeiro a ser feito é comprovar que ele fala abobrinhas, e depois podemos desautorizá-lo. Não faz sentido algum desmerecer um argumento unicamente pelo fato de não ter sido proferido pelo doutor Fulano.

Mas há modos de afirmar legitimamente que uma posição não especializada está errada por carecer de autoridade. Posso citar como exemplo o remexer de teses antigas, que já se encontram superadas nos dias de hoje pela falta de atualização do argumentador. Qualquer pessoa que, como eu, tenha estudado os primeiros anos no século passado ainda deve ter razoavelmente fresco na cabeça que Plutão era o nono planeta do sistema solar. Ora, não é mais. A academia sopesou todas as características que levam um corpo celeste a ser considerado um planeta e ponderou que há uma não abrangida pelo astro em questão. Segundo a União Astronômica Internacional, é um planeta o corpo celeste que:

  1. Gira em torno de uma estrela;
  2. Possui equilíbrio hidrostático, o que lhe dá formato arredondado;
  3. Tem sua órbita livre, não sendo influenciado diretamente pela gravidade dos demais planetas.

É nesse último critério que Plutão fura com o conceito. Junto dele, há uma miríade de objetos celestes que chegam a ter quase seu tamanho. Além disso, sua órbita é tão excêntrica que, de tempos em tempos, chega a invadir o perímetro da órbita de Netuno, seu gigantesco vizinho mais próximo, o que leva alguns cientistas a especular que o ora rebaixado tenha sido uma lua escapadiça deste último. Por isso, foi rebaixado para a categoria de planeta-anão a partir de 2006. Em casos como estes, recomendar que uma pessoa se atualize não é uma resposta do cortesão.

Com isso, podemos concluir que é melhor pensar um pouco antes de dizer que uma pessoa não afirma coisas corretas sobre uma área na qual ele não tem vivência. Ou que analistas de requisitos só querem incomodar a vida dos outros porque não sabem o que estes sofrem. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Vamos lá porque serão um bocado. Comecemos por uma coletânea de contos de Hans Christian Andersen, onde podemos encontrar a famosa fábula mencionada neste humilde cantinho.

ANDERSEN, Hans C. A Roupa Nova do Imperador. In: Os 77 Melhores Contos de Hans Christian Andersen. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.

Depois, indico o canal do YouTube Space Today, do mencionado Sergio Sacani:

https://www.youtube.com/c/SpaceTodayTV/about

Por último, segue o endereço atual do blog Pharyngula, de P. Z. Myers, ainda ativo nesta brava internet:

https://freethoughtblogs.com/pharyngula/

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