(Estamos sempre muito atentos às coisas que existem e que podemos tocar. Mas e a inexistência? Como o vazio possui importância no pensamento filosófico)
Olá!
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Corridos, os dias de mudança. É bem verdade que já faz dois
meses que a filha mais nova se mandou para Taubaté, mas ela conseguiu um bom
valor no aluguel porque a casa é meio antiga. Isso não é um problema em si,
porque eu já morei em casas velhas, e, a bem dizer da verdade, tenho saudades
delas, principalmente dos quintais. Acontece que o presente quintal estava mais
esburacado do que o aceitável, e embora o custo para reformá-lo não seja
exorbitante, dá um trabalho dos infernos. Se fosse só isso, estava bom. Mas há
também um fundo com terra que a indigitada queria transformar em horta e
galinheiro, e aí sim eu comecei a trabalhar que nem maluco. Mas ok.
Essa trabalheira toda não deixa de ter seu viés prazenteiro,
já que o tédio
da pandemia não tem dado folga, e ter coisas inauditas para fazer é
altamente positivo para a saúde física e mental. Entretanto, estar fora de casa
me trás uma subtração: meus métodos de preparo de café. Enquanto as coisas não
vão definitivamente para seus lugares na casa nova, não temos muito como
sofisticar o preparo. Observando a falta que faz o líquido, a patroa comprou
umas garrafinhas de café pronto que, se por um lado não podem ser chamadas de
café em um sentido estrito, por outro dão vazão aos meus sentidos
progressistas, e me proponho a tomá-lo de alma aberta.
O resultado não é ruim. Tomado geladinho, o sabor não passa vergonha, embora esteja a milhas de um café percolado ou prensado. Vamos ponderar: eles não têm os mesmos propósitos. De fato, quem quer um café clássico, não vai procurar uma garrafinha dessas, mas quem precisa de um pouco de cafeína e refrescância, tende a ficar bem satisfeito. Vou passar as especificações só para não perder o padrão.
Nome do “utensílio”: cold brew
Tipo de técnica: comprado pronto
Dificuldade: nula
Espessura do pó: Não se aplica
Dinâmica: café engarrafado para ser tomado gelado.
Resíduos: nenhum, por se tratar de um produto industrializado.
Temperatura de saída: Baixa
Nível de ritual: nulo
Junto ao terreno, há uma escadinha que toma o muro de fora a
fora, como se fosse uma arquibancada. Em determinado momento, fiquei lá sentado,
tomando mais uma garrafinha dessas enquanto bolava minhas obras de arte. Via o
grande vazio aberto para montagem das peças ao mesmo tempo em que o líquido
chegava ao fim. Como naqueles desenhos animados, meti o olho dentro da garrafa
e a chacoalhava para ver se não saía mais nada, mas de lá só vinha o ar, o
nada, o vazio...
Usamos a palavra vazio mais em seu sentido metafórico do que
propriamente físico. Como é uma alegoria para um lugar onde não há nada,
representa muito bem a vida que vai perdendo suas perspectivas. Eu tenho vivido
momentos assim, como já tinha prefigurado neste
texto, cujas previsões todas se confirmaram, incluindo a saída dos dois
filhos de casa. Estou lidando com a situação, e vêm mesmo momentos de vazio. Como
exemplo, eu estava dando um tapa na louça, e sobrou a caneca que a menina mais
moça usava para pegar água na talha. Ia pô-la na cantoneira, mas ficaria lá,
inútil, como um troféu para a solidão. Então a coloquei dentro do armário,
fácil de pegar, para quando ela quiser me visitar.
Mas, apesar do clima choroso que eu já botei na escrita, não
é sobre esse tipo de vazio que eu queria falar, porque não foi disso que me
lembrei quando olhei o interior vazio da garrafinha de café. Pensei que aquele
tipo de vazio é ilusório, porque há bilhões e bilhões de moléculas lá dentro,
devidamente invisíveis, como os resíduos das essências do café, algum
microorganismo que pulou da minha boca e, principalmente, ar.
Uma das dificuldades que eu tinha quando era criança era
pensar em um vazio absoluto. Realmente é muito estranho quando pensamos em um
grande espaço sem nada como representação do vazio, mas logo nos tocamos de que
lá há coisas. Por exemplo: quando estamos deitados quietos em um quarto, podemos
olhar para o escuro e imaginá-lo equivalente a um espaço vuoto. Entretanto, basta uma pequena nesga de luz para observarmos
milhares e milhares de partículas em suspensão no ar. Poeira, fuligem, pólen e
outros pequenos resíduos quebram o encanto da sensação de ausência. Guardem
essa informação.
Se eu tenho essa sensação, é normal que muitas pessoas
também a tenham tido na nossa história de bípedes pernaltas e implumes. Os
filósofos da primeira turma, conhecidos como pré-socráticos, tinham como
intento comum descobrir a arché, e, para discriminá-los, redigi
um texto que reputo bem completo. Mas, em acréscimo, posso dizer que havia
uma busca não só no que estava no substrato da existência, mas também no que
não estava – ser e não-ser, respectivamente.
Todos os filósofos da physis,
ou seja aqueles que buscavam a natureza do universo, de uma forma ou de outra
coligam seu elemento primordial a alguma instância metafísica. Alguns deles,
como o ápeiron de Anaximandro, o número de Pitágoras ou as homeomerias de
Anaxágoras são puramente fundamentados em essências, que ganham formas de
acordo com o "papel" que devem exercer no cosmos, enquanto os
elementos físicos como a água de Tales ou o ar de Anaxímenes adotam suas formas
pela ação de algo que está além da matéria. Outro exemplo são os quatro
elementos de Empédocles que, apesar de materiais, têm suas mesclas governadas
por amor e ódio, como se fossem seres que possuem sentimentos. Alguns diziam
que as coisas todas estavam plenas de deuses, e isso era a anima que fazia com
que elas assumissem formas e funções. Mas havia o lado de lá, ou seja, os
intervalos que existiam entre os seres. Uma boa parte dos pensadores imaginava
que tudo o que não é ser é não-ser. Outros diziam que isso é impossível. É com
Demócrito que nasce essa noção de que os espaços onde não há nada de aparente
seja correspondente à impressão: lá não há nada mesmo, nem deuses, nem plasma,
nem éter, nem qualquer coisa que não seja o puro espaço. Vamos nos
debruçar sobre essa questão.
Em primeiro lugar,
vamos estabelecer uma padronização pedagógica. Sempre que eu falar em
Demócrito, assuma-se que também estou falando em Lêucipo, seu mestre, tendo em
vista que é muito difícil discernir o que vem de um e o que vem de outro, sendo
certo unicamente que este último precedeu a relação de ambos. Como o filósofo
risonho é mais conhecido, sendo bastante citado inclusive por seus
contemporâneos, vamos didaticamente utilizar o seu nome, sem qualquer desprezo
ao seu mentor, combinado?
Há uma série de
enganos com relação a Demócrito. Era um pré-socrático sem realmente o ser,
porque foi contemporâneo do célebre ateniense*. Tratou de inúmeros aspectos que
foram além da sua tese cosmológica, com muitas predisposições éticas, que, no
final, deram-lhe a fama de filósofo que
ri, muito embora esse seu riso esteja longe de ser o reflexo de um
temperamento, mas algo mais sardônico, zombeteiro, quase de maldizer, que vinha
de sua maneira peculiar de encarar a miséria humana. Como, no entanto, meu
objetivo aqui é falar do seu materialismo, não vou chegar a suas questões
éticas.
Lembram da ideação
do quarto vazio? Pois é, foi exatamente assim que ocorreu a Demócrito a noção
dos átomos, partículas ínfimas que compõem tudo o que existe. Daquele turbilhão
de partículas soltas no ar, Demócrito compreendeu que a matéria fica solta nos
espaços vazios e que é a sua condensação que constrói tudo o que existe. O
resto, que poderia ser preenchido por divindades, por uma substância
indetectável, por uma quintessência, na verdade é composto de nada. Ou algo é a
descontinuidade corpórea, ou a continuidade incorpórea. O cosmos é feito de átomos
e vazio, nada mais. Nem mesmo instâncias metafísicas.
Toda a matéria que
nos rodeia é composta de átomos. Elas surgiram pela agregação destas ínfimas
partículas, e, quando desaparecem, é porque os átomos se pulverizaram e
voltaram a ficar livres pelo vazio, quando voltarão a se colidir com outros
átomos. Se eles não possuem afinidade entre si, simplesmente vai cada um para
um lado; se possuem, vão se aglomeram e se chocar com outros semelhantes, até
recompor novamente a matéria. Tudo no cosmos é cíclico.
Mas como é essa
coisa de concluir que a arché era o átomo? É meio simples até. Pegue-se
qualquer coisa, um fiapo de grama do campinho ao lado de sua casa, por exemplo.
É possível facilmente parti-lo em dois, sem que a tal grama deixe de ser o que
ela é materialmente. Prosseguimos partindo a pobre planta, até o limite do que
nossas mãos são capazes de fazer. Daí por diante, cumprirá a um instrumento
cortante de precisão prosseguir a secção, e daí partir para um corte a lazer,
quando já teremos pedacinhos imperceptíveis de matéria, mas ainda assim grama,
mesmo que precisemos de um microscópio para observá-los. Daí por diante, a
divisão ainda pode prosseguir, no mundo do intelecto.
Essa divisão,
apesar de matematicamente poder ser continuada, tem fim. É que há um
determinado ponto em que um desmanchamento mais completo inviabiliza a
reagregação das substâncias, tornando-as indistinguíveis do vazio, de tão
diluídas que se tornariam pelo espaço. Esse ponto em que a matéria se torna
indivisível é o que Demócrito chamou de átomo.
Uma curiosidade no
pensamento atomista é que, apesar de não acreditar em instâncias metafísicas,
eles criam em almas, que seriam tão compostas de matéria quanto qualquer outra
substância. A alma aqui não se trata do sinônimo de espírito tão frequente nas
religiões, mas na forma mais etérea da matéria, que teria o propósito de conter
as atividades mentais e o caráter dos indivíduos, que, assim como todo o resto
do corpo, desvaneceria com a morte.
O mais interessante
é que a ideia de Demócrito concilia as duas
escolas metafísicas da antiguidade anterior aos clássicos. Em rápidas
linhas, tínhamos o confronto entre o devir de Heráclito e a permanência dos
eleatas, Parmênides à frente. O primeiro dizia que a realidade é um eterno transformar,
em constante movimento e consequente mudança, o panta rhei dos banhos que nunca são tomados no mesmo rio. Por outro
lado, os parmenidianos diziam que todo movimento é meramente ilusório, e que o
Ser se caracterizava justamente por sua imobilidade, por ser eternamente igual
a si mesmo. Sendo assim, o turbilhão atômico que se desenrola no vazio, e que
faz com que as partículas se encontrem e se condensem aleatoriamente representa
o devir heraclitiano. Da outra parte, apesar de sua quase imperceptível
pequenez, cada átomo é, em si mesmo, o Ser-uno, porque é eternamente igual.
Dessa forma, Demócrito concordava
com a afirmativa eleática de que as transformações eram ilusórias, e que a
aparência que o mundo transparece aos nossos olhos deriva unicamente desse
eterno juntar e espalhar dos átomos. É em cada uma dessas partículas que está a
eternidade e a imutabilidade, ou seja, o ser, a essência, a arché. O não-ser
transparece no vazio, o espaço por onde o movimento e o devir se realiza. Desta
forma, Demócrito concorda com Parmênides porque cada um dos átomos é eterno e
imutável, e que tudo o que existe nasce de uma preexistência e encerra com uma
desagregação de átomos que, individualmente, mantém a mesmíssima essência que
tinham antes e sempre. Isso tudo, porém, sem inviabilizar Heráclito, que tem no
vazio o campo para o devir.
Claro que a teoria
atômica de Demócrito, criada puramente através de poucas observações empíricas
e fortemente baseada em atividade intelectual, não era perfeitamente
conciliável com as modernas hipóteses químicas, que dividem os átomos em
partículas ainda menores, acomodadas em diversas camadas formadas pelos níveis
de energia. Embora tenha introduzido o acaso na discussão da natureza da
realidade, ele achava, por exemplo, que os átomos não se agrupavam de maneira
absolutamente randômica, sendo que sua forma favorecia imensamente essa
ligação. Eu poderia fazer algum tipo de contorcionismo para dizer que as
quantidades de elétrons das camadas mais exteriores poderiam representar os
“ganchos” que fariam as partículas encontrar suas afinidades, mas isso é coisa
de quem quer acomodar mitologias com realidade, e não farei isso. Sua
capacidade de predição já é admirável o suficiente, sem a necessidade desse
tipo de coisa.
E isso porque há
muitos acertos. De fato, tudo é feito de átomos, que se agregam e separam,
sendo que o átomo que hoje forma um ser humano estará amanhã em um pedaço de
carvão, e depois em uma calça de tergal. Eles são poucos, e suas combinações é
que resultam em substâncias. Não são exatamente indivisíveis, como já descobriu
a química moderna, mas a separação de seus elementos representa a sua
destruição, guardando um sentido de indivisibilidade. E entre eles há só o
vazio. A matéria não existe sem o vazio e ele é fundamental e inegável, indisputável
e sempre presente, como diante de nós quando vemos toda a nossa vida ficando
para trás, enquanto o mundo prossegue seu giro.
Bons ventos a
todos!!!
Recomendação de leitura:
Nada restou dos
escritos de Demócrito a não ser alguns poucos fragmentos. De Lêucipo, nem o
cheirinho. Neste caso, o melhor a fazer é se socorrer de coletâneas dos
pensamentos, como na ótima obra mencionada abaixo:
SOUZA, José
Cavalcante (org.). Os Pré-socráticos.
Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
* Há uma
justificativa para enquadrar Demócrito como pré-socrático: o tema que o tornou
célebre nos livros didáticos tem mais a ver com a fase dos antecessores de
Sócrates do que propriamente como característica final de sua filosofia. Ele
costuma ser enquadrado assim justamente por uma acomodação didática, e não
temporal.
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