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quarta-feira, 21 de julho de 2021

O café filosófico do quotidiano – a importância do vazio no pensamento de Demócrito

(Estamos sempre muito atentos às coisas que existem e que podemos tocar. Mas e a inexistência? Como o vazio possui importância no pensamento filosófico)

Olá!

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Corridos, os dias de mudança. É bem verdade que já faz dois meses que a filha mais nova se mandou para Taubaté, mas ela conseguiu um bom valor no aluguel porque a casa é meio antiga. Isso não é um problema em si, porque eu já morei em casas velhas, e, a bem dizer da verdade, tenho saudades delas, principalmente dos quintais. Acontece que o presente quintal estava mais esburacado do que o aceitável, e embora o custo para reformá-lo não seja exorbitante, dá um trabalho dos infernos. Se fosse só isso, estava bom. Mas há também um fundo com terra que a indigitada queria transformar em horta e galinheiro, e aí sim eu comecei a trabalhar que nem maluco. Mas ok.

Essa trabalheira toda não deixa de ter seu viés prazenteiro, já que o tédio da pandemia não tem dado folga, e ter coisas inauditas para fazer é altamente positivo para a saúde física e mental. Entretanto, estar fora de casa me trás uma subtração: meus métodos de preparo de café. Enquanto as coisas não vão definitivamente para seus lugares na casa nova, não temos muito como sofisticar o preparo. Observando a falta que faz o líquido, a patroa comprou umas garrafinhas de café pronto que, se por um lado não podem ser chamadas de café em um sentido estrito, por outro dão vazão aos meus sentidos progressistas, e me proponho a tomá-lo de alma aberta.

O resultado não é ruim. Tomado geladinho, o sabor não passa vergonha, embora esteja a milhas de um café percolado ou prensado. Vamos ponderar: eles não têm os mesmos propósitos. De fato, quem quer um café clássico, não vai procurar uma garrafinha dessas, mas quem precisa de um pouco de cafeína e refrescância, tende a ficar bem satisfeito. Vou passar as especificações só para não perder o padrão.

Nome do “utensílio”: cold brew

Tipo de técnica: comprado pronto

Dificuldade: nula

Espessura do pó: Não se aplica

Dinâmica: café engarrafado para ser tomado gelado.

Resíduos: nenhum, por se tratar de um produto industrializado.

Temperatura de saída: Baixa

Nível de ritual: nulo

Junto ao terreno, há uma escadinha que toma o muro de fora a fora, como se fosse uma arquibancada. Em determinado momento, fiquei lá sentado, tomando mais uma garrafinha dessas enquanto bolava minhas obras de arte. Via o grande vazio aberto para montagem das peças ao mesmo tempo em que o líquido chegava ao fim. Como naqueles desenhos animados, meti o olho dentro da garrafa e a chacoalhava para ver se não saía mais nada, mas de lá só vinha o ar, o nada, o vazio...

Usamos a palavra vazio mais em seu sentido metafórico do que propriamente físico. Como é uma alegoria para um lugar onde não há nada, representa muito bem a vida que vai perdendo suas perspectivas. Eu tenho vivido momentos assim, como já tinha prefigurado neste texto, cujas previsões todas se confirmaram, incluindo a saída dos dois filhos de casa. Estou lidando com a situação, e vêm mesmo momentos de vazio. Como exemplo, eu estava dando um tapa na louça, e sobrou a caneca que a menina mais moça usava para pegar água na talha. Ia pô-la na cantoneira, mas ficaria lá, inútil, como um troféu para a solidão. Então a coloquei dentro do armário, fácil de pegar, para quando ela quiser me visitar.

Mas, apesar do clima choroso que eu já botei na escrita, não é sobre esse tipo de vazio que eu queria falar, porque não foi disso que me lembrei quando olhei o interior vazio da garrafinha de café. Pensei que aquele tipo de vazio é ilusório, porque há bilhões e bilhões de moléculas lá dentro, devidamente invisíveis, como os resíduos das essências do café, algum microorganismo que pulou da minha boca e, principalmente, ar.

Uma das dificuldades que eu tinha quando era criança era pensar em um vazio absoluto. Realmente é muito estranho quando pensamos em um grande espaço sem nada como representação do vazio, mas logo nos tocamos de que lá há coisas. Por exemplo: quando estamos deitados quietos em um quarto, podemos olhar para o escuro e imaginá-lo equivalente a um espaço vuoto. Entretanto, basta uma pequena nesga de luz para observarmos milhares e milhares de partículas em suspensão no ar. Poeira, fuligem, pólen e outros pequenos resíduos quebram o encanto da sensação de ausência. Guardem essa informação.

Se eu tenho essa sensação, é normal que muitas pessoas também a tenham tido na nossa história de bípedes pernaltas e implumes. Os filósofos da primeira turma, conhecidos como pré-socráticos, tinham como intento comum descobrir a arché, e, para discriminá-los, redigi um texto que reputo bem completo. Mas, em acréscimo, posso dizer que havia uma busca não só no que estava no substrato da existência, mas também no que não estava – ser e não-ser, respectivamente. 

Todos os filósofos da physis, ou seja aqueles que buscavam a natureza do universo, de uma forma ou de outra coligam seu elemento primordial a alguma instância metafísica. Alguns deles, como o ápeiron de Anaximandro, o número de Pitágoras ou as homeomerias de Anaxágoras são puramente fundamentados em essências, que ganham formas de acordo com o "papel" que devem exercer no cosmos, enquanto os elementos físicos como a água de Tales ou o ar de Anaxímenes adotam suas formas pela ação de algo que está além da matéria. Outro exemplo são os quatro elementos de Empédocles que, apesar de materiais, têm suas mesclas governadas por amor e ódio, como se fossem seres que possuem sentimentos. Alguns diziam que as coisas todas estavam plenas de deuses, e isso era a anima que fazia com que elas assumissem formas e funções. Mas havia o lado de lá, ou seja, os intervalos que existiam entre os seres. Uma boa parte dos pensadores imaginava que tudo o que não é ser é não-ser. Outros diziam que isso é impossível. É com Demócrito que nasce essa noção de que os espaços onde não há nada de aparente seja correspondente à impressão: lá não há nada mesmo, nem deuses, nem plasma, nem éter, nem qualquer coisa que não seja o puro espaço. Vamos nos debruçar sobre essa questão.

Em primeiro lugar, vamos estabelecer uma padronização pedagógica. Sempre que eu falar em Demócrito, assuma-se que também estou falando em Lêucipo, seu mestre, tendo em vista que é muito difícil discernir o que vem de um e o que vem de outro, sendo certo unicamente que este último precedeu a relação de ambos. Como o filósofo risonho é mais conhecido, sendo bastante citado inclusive por seus contemporâneos, vamos didaticamente utilizar o seu nome, sem qualquer desprezo ao seu mentor, combinado?

Há uma série de enganos com relação a Demócrito. Era um pré-socrático sem realmente o ser, porque foi contemporâneo do célebre ateniense*. Tratou de inúmeros aspectos que foram além da sua tese cosmológica, com muitas predisposições éticas, que, no final, deram-lhe a fama de filósofo que ri, muito embora esse seu riso esteja longe de ser o reflexo de um temperamento, mas algo mais sardônico, zombeteiro, quase de maldizer, que vinha de sua maneira peculiar de encarar a miséria humana. Como, no entanto, meu objetivo aqui é falar do seu materialismo, não vou chegar a suas questões éticas.

Lembram da ideação do quarto vazio? Pois é, foi exatamente assim que ocorreu a Demócrito a noção dos átomos, partículas ínfimas que compõem tudo o que existe. Daquele turbilhão de partículas soltas no ar, Demócrito compreendeu que a matéria fica solta nos espaços vazios e que é a sua condensação que constrói tudo o que existe. O resto, que poderia ser preenchido por divindades, por uma substância indetectável, por uma quintessência, na verdade é composto de nada. Ou algo é a descontinuidade corpórea, ou a continuidade incorpórea. O cosmos é feito de átomos e vazio, nada mais. Nem mesmo instâncias metafísicas.

Toda a matéria que nos rodeia é composta de átomos. Elas surgiram pela agregação destas ínfimas partículas, e, quando desaparecem, é porque os átomos se pulverizaram e voltaram a ficar livres pelo vazio, quando voltarão a se colidir com outros átomos. Se eles não possuem afinidade entre si, simplesmente vai cada um para um lado; se possuem, vão se aglomeram e se chocar com outros semelhantes, até recompor novamente a matéria. Tudo no cosmos é cíclico.

Mas como é essa coisa de concluir que a arché era o átomo? É meio simples até. Pegue-se qualquer coisa, um fiapo de grama do campinho ao lado de sua casa, por exemplo. É possível facilmente parti-lo em dois, sem que a tal grama deixe de ser o que ela é materialmente. Prosseguimos partindo a pobre planta, até o limite do que nossas mãos são capazes de fazer. Daí por diante, cumprirá a um instrumento cortante de precisão prosseguir a secção, e daí partir para um corte a lazer, quando já teremos pedacinhos imperceptíveis de matéria, mas ainda assim grama, mesmo que precisemos de um microscópio para observá-los. Daí por diante, a divisão ainda pode prosseguir, no mundo do intelecto.

Essa divisão, apesar de matematicamente poder ser continuada, tem fim. É que há um determinado ponto em que um desmanchamento mais completo inviabiliza a reagregação das substâncias, tornando-as indistinguíveis do vazio, de tão diluídas que se tornariam pelo espaço. Esse ponto em que a matéria se torna indivisível é o que Demócrito chamou de átomo.

Uma curiosidade no pensamento atomista é que, apesar de não acreditar em instâncias metafísicas, eles criam em almas, que seriam tão compostas de matéria quanto qualquer outra substância. A alma aqui não se trata do sinônimo de espírito tão frequente nas religiões, mas na forma mais etérea da matéria, que teria o propósito de conter as atividades mentais e o caráter dos indivíduos, que, assim como todo o resto do corpo, desvaneceria com a morte.

O mais interessante é que a ideia de Demócrito concilia as duas escolas metafísicas da antiguidade anterior aos clássicos. Em rápidas linhas, tínhamos o confronto entre o devir de Heráclito e a permanência dos eleatas, Parmênides à frente. O primeiro dizia que a realidade é um eterno transformar, em constante movimento e consequente mudança, o panta rhei dos banhos que nunca são tomados no mesmo rio. Por outro lado, os parmenidianos diziam que todo movimento é meramente ilusório, e que o Ser se caracterizava justamente por sua imobilidade, por ser eternamente igual a si mesmo. Sendo assim, o turbilhão atômico que se desenrola no vazio, e que faz com que as partículas se encontrem e se condensem aleatoriamente representa o devir heraclitiano. Da outra parte, apesar de sua quase imperceptível pequenez, cada átomo é, em si mesmo, o Ser-uno, porque é eternamente igual.

Dessa forma, Demócrito concordava com a afirmativa eleática de que as transformações eram ilusórias, e que a aparência que o mundo transparece aos nossos olhos deriva unicamente desse eterno juntar e espalhar dos átomos. É em cada uma dessas partículas que está a eternidade e a imutabilidade, ou seja, o ser, a essência, a arché. O não-ser transparece no vazio, o espaço por onde o movimento e o devir se realiza. Desta forma, Demócrito concorda com Parmênides porque cada um dos átomos é eterno e imutável, e que tudo o que existe nasce de uma preexistência e encerra com uma desagregação de átomos que, individualmente, mantém a mesmíssima essência que tinham antes e sempre. Isso tudo, porém, sem inviabilizar Heráclito, que tem no vazio o campo para o devir.

Claro que a teoria atômica de Demócrito, criada puramente através de poucas observações empíricas e fortemente baseada em atividade intelectual, não era perfeitamente conciliável com as modernas hipóteses químicas, que dividem os átomos em partículas ainda menores, acomodadas em diversas camadas formadas pelos níveis de energia. Embora tenha introduzido o acaso na discussão da natureza da realidade, ele achava, por exemplo, que os átomos não se agrupavam de maneira absolutamente randômica, sendo que sua forma favorecia imensamente essa ligação. Eu poderia fazer algum tipo de contorcionismo para dizer que as quantidades de elétrons das camadas mais exteriores poderiam representar os “ganchos” que fariam as partículas encontrar suas afinidades, mas isso é coisa de quem quer acomodar mitologias com realidade, e não farei isso. Sua capacidade de predição já é admirável o suficiente, sem a necessidade desse tipo de coisa.

E isso porque há muitos acertos. De fato, tudo é feito de átomos, que se agregam e separam, sendo que o átomo que hoje forma um ser humano estará amanhã em um pedaço de carvão, e depois em uma calça de tergal. Eles são poucos, e suas combinações é que resultam em substâncias. Não são exatamente indivisíveis, como já descobriu a química moderna, mas a separação de seus elementos representa a sua destruição, guardando um sentido de indivisibilidade. E entre eles há só o vazio. A matéria não existe sem o vazio e ele é fundamental e inegável, indisputável e sempre presente, como diante de nós quando vemos toda a nossa vida ficando para trás, enquanto o mundo prossegue seu giro.

Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

Nada restou dos escritos de Demócrito a não ser alguns poucos fragmentos. De Lêucipo, nem o cheirinho. Neste caso, o melhor a fazer é se socorrer de coletâneas dos pensamentos, como na ótima obra mencionada abaixo:

SOUZA, José Cavalcante (org.). Os Pré-socráticos. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

* Há uma justificativa para enquadrar Demócrito como pré-socrático: o tema que o tornou célebre nos livros didáticos tem mais a ver com a fase dos antecessores de Sócrates do que propriamente como característica final de sua filosofia. Ele costuma ser enquadrado assim justamente por uma acomodação didática, e não temporal.

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