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terça-feira, 13 de julho de 2021

Em defesa de Pascal (mas não de sua aposta)

 (Todos nós falamos bobagens algumas vezes, isso é inevitável. O problema está quando uma delas marca tudo o mais que tenhamos dito de maneira a nada mais ter valor. Isso acontece com Pascal).

Olá!

“O homem nada mais é do que um caniço, o mais fraco da natureza – mas é um caniço pensante. Não é necessário que o universo todo se arme para esmagá-lo: um vapor ou uma gota d’água bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem ainda seria mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre e sabe da superioridade do universo sobre ele; já o universo, ao contrário, não sabe de nada. Toda a nossa dignidade, portanto, consiste no pensamento. É com o pensamento que devemos nos nobilizar e não com o espaço e o tempo que podemos preencher” - Pascal

Têm vezes que a gente lembra de cada coisa… estava remexendo no armário em busca de qualquer coisa, quando achei uma tubinho cheio de dados, daqueles de jogar. Imediatamente, veio à cabeça uma história velha como um relógio-cuco. Eu tinha alguns parentes que eram testemunhas de Jeová. Eles eram muito sérios, mas se casavam e faziam festas, o que parece meio incompatível. O fato é que estas nunca eram de arromba, mas um tanto comedidas, mais na base da roda de conversa do que na dança, música alta e outras coisas pecaminosas. Numa delas, estávamos eu e meus primos Maurício e Plínio, discutindo algo sobre futebol ou política do alto de nossa adolescência. De repente, um dos convivas, desconhecido para nós, chega nesse último e lhe brada, em um tom de voz que da Lapa seria ouvido na Penha:

– Irmão Jeremias, que bons ventos o trazem?

O Plínio não era Jeremias, e também não tinha sido trazido por bons ventos. Respondeu com a secura que lhe era peculiar:

– Não me chamo Jeremias, e também não sou seu irmão.

Diante de um rinoceronte desse porte, o irmão desconhecido fez o que de melhor havia a fazer: pulou de banda, buscando vizinhança menos agitada. Eu, um moleque despeitado à época, ria de perder o fôlego, enquanto meu primo se emputecia ainda mais. Ele falou:

– Vai, palhaço, fica rindo… vai ficar bonitinho de artista de circo na filmagem.

De fato, havia uma câmera filmando toda a festa. Era algo extremamente raro à época, coisa de grã-fino mesmo, mas nada semelhante às enormes e caríssimas equipes de reportagem de hoje em dia. Mais tarde soubemos que era um serviço prestado pela própria igreja, oque livrava do fiel os cobres com a cobertura. Eu tinha um espírito meio endemoninhado na ocasião, e me ocorreu de fazer uma aposta:

– O que vai valer se eu fizer uma bagunça na filmagem?

A resposta veio novamente seca:

– Uma caixa de cerveja.

Era uma época em que se fazia com as proibições a menores de comprar bebida alcoólica o mesmo que um cachorro fazia com o poste. Foi a senha para eu me aproximar do artefato e prefigurar um Beetlejuice tupiniquim, tamanha a quantidade de caretas e momices que fiz para registro póstero. Paguei o mico, mas ganhei a caixa.

Ganhei, é verdade, mas não levei. A história valeu muito mais do que a cerveja, que acabou nunca sendo paga, menos ainda agora, que o tal primo desceu as dez na mesa. E sim, não era deste tempo ter edições, e os nubentes testemunhais relataram o susto diante da inconveniência, tempos mais tarde.

São meras recordações, mas apostas também carregam seu fundo filosófico. A mais célebre de todas é um argumento de fundo teológico, mas que acabou distorcendo a imagem que temos de um prodígio, de quem vou tomar a defesa. Afinal, ninguém fala de Pascal sem se referir à sua famosa aposta (inclusive eu)

A aposta de Pascal é um exercício mental que é bem menos simplório do que pode parecer. Ele parte do princípio de que é muito difícil obter uma prova racional da existência de um deus, tanto pela via da lógica, quanto da experiência, e que aqueles que o fazem já tem gravada uma pressuposição à existência, o que enviesa o reconhecimento da validade das proposições nesse sentido. Para notar esta dificuldade, vamos trazer alguns exemplos.

Um dos argumentos mais conhecidos que procuram demonstrar a existência de Deus por meios lógicos é conhecido como argumento ontológico, e foi elaborado pelo filósofo italiano Santo Anselmo, que atuava em Canterbury. Nesta experiência, de maneira bem simplificada, o bispo propõe que se imagine alguma coisa da qual não se possa imaginar nada maior. Se esse pensamento é possível, então somente podemos dizer que ele não exista apenas no intelecto, porque a perfeição necessariamente pressupõe a existência concreta: à existência meramente intelectual não se poderia atribuir todas as qualidades possíveis de um ser perfeito. A maior coisa que se pode pensar é Deus, e, portanto, o simples ato de pensar em sua excelência já é prova de sua existência.

O argumento é de fato engenhoso, mas é falho. Kant notou que não se pode desvincular o conhecimento de uma experiência concreta. É como se aumentar os zeros de um livro caixa fizesse com que o dinheiro disponível se multiplicasse na algibeira do mercador. Além disso, Santo Anselmo propõe que essa coisa da qual não se pode imaginar nada maior é Deus, especialmente o cristão, mas podemos colocar qualquer coisa no seu lugar. Gaunilo de Marmoutier, por exemplo, objeta o argumento substituindo Deus por uma ilha perdida, com mais riquezas do que qualquer outro lugar na terra. É óbvio que tal afirmação é vazia se não houver como demonstrar a existência de tal lugar. Podemos até fazer uma brincadeira mais jocosa, afirmando que essa coisa da qual nada é maior seria um sorvete. Já pensou um deus sendo um imenso picolé?

Outro exercício lógico é conhecido como argumento cosmológico, que tem origem em Aristóteles, é reforçado por São Tomás de Aquino e usado ainda hoje. Aqui, temos as seguintes premissas: tudo o que existe tem uma causa; o universo existe; o universo tem uma causa, e essa causa é Deus. A escorregada lógica está no final. Ainda que todas as premissas anteriores estejam corretas, o que não é pacífico, porque a conclusão de que o primeiro motor é Deus? Por que não é uma causa externa, desconhecida, como se o universo seja uma parte de um todo ainda maior, ou um universo entre muitos, ou, mais simplesmente ainda, por que o Deus cristão e não qualquer outro?

Ainda há uma via para se tentar provar a existência de um deus, que não redunda necessariamente da lógica: a perfeição da natureza plasmaria a perfeição de seu criador. De fato, é sedutora a hipótese de que mecanismos tão perfeitos tenham por trás de si uma inteligência que os conduza. Mas o problema é que a natureza não é perfeita. A uma observação mais acurada, percebe-se que o todo harmônico é feito de pequenas desgraças, como provam as cadeias alimentares, a extinção de espécies, os cataclismas, as doenças das pessoas religiosas, a prosperidade dos ímpios, as mortes de nascituros e tantos outros exemplos. Além disso, a humanidade vive em constante progresso, mesmo naquela época em que ciência e misticismo ainda se misturavam, e muitos dos mecanismos naturais iam sendo explicados sem a necessidade de um deus para motivá-los, o que ia colocando o poderoso senhor cada vez mais em um plano metafísico, pouco concrescível.

Pascal não era alheio a estes argumentos e aos seus problemas. Por isso, ele procurou outro caminho, que, no final das contas, era um ensaio do pragmatismo. E, principalmente, uma alternativa para os incertos. É preciso lembrar que Pascal tem uma mente probabilística, muito motivada pelos seus amplos estudos matemáticos. E vai buscar nesta sua habilidade uma saída para a aporia da crença em deus.

A ideia central é a seguinte. Se você não é um jogador contumaz, daqueles que perdem casa e orifícios na mesa de jogo, sempre haverá ponderação nos lados positivos e negativos de uma aposta. Correr risco demais acaba por se demonstrar uma atitude insensata, e é preferível que as fichas sejam colocadas onde se sofrerão menores danos, em caso de perda. A Bíblia diz que a fé é essencial à salvação, ou seja, o encaminhamento ao paraíso no post mortem. Por essa razão, àqueles que não creem em deus está reservado o inferno. Para quem tem fé, a palavra bíblica ganha estatuto de lei, e, consequentemente, que deve ser seguida. 

Suponhamos então que possuamos as metafísicas fichas da crença. Teremos quatro resultados possíveis:

Acreditamos em Deus, e ele existe;

Acreditamos em Deus, e ele não existe;

Não acreditamos em Deus, e ele existe;

Não acreditamos em Deus, e ele não existe.

Por fim, temos que pensar nas consequências, que seriam os prêmios das apostas. Temos céu ou inferno, para as hipóteses de existência, e vida aberta ou restrita, para os casos da inexistência. Pensando unicamente em termos estatísticos, o fato de que as hipóteses de existência conduzem a consequências eternas faz com que haja vantagem em se apostar na existência de Deus, senão vejamos: caso se aposte na existência de Deus e ele existe, teremos abertas para nós as portas do paraíso, já que a fé é componente indispensável a tal acesso; se apostarmos na inexistência de deus e ele existir, abriremos o caminho ao diabo, pelos mesmos motivos. As vias da inexistência são menos gravosas. Se apostamos na existência de Deus e ele não existe, levamos uma vida restritiva à toa, mas que é um mal finito - acabou a vida, acabou o castigo; e por fim, se apostamos na inexistência e ele de fato não existe, também ao fim da vida encerra-se a liberdade. Ou seja, meio que como na teoria dos jogos, há um mal maior e um ponto de equilíbrio. O resumo completo da ópera está logo aí abaixo:

Se eu não acreditar e Deus existe, eu perco tudo;

Se eu não acreditar e Deus não existe, eu ganho pouco;

Se eu acreditar e Deus não existe, eu perco pouco;

Se eu acreditar e Deus existe, eu ganho tudo.

Tanto religiosos quanto céticos não gostam do argumento da aposta. Os primeiros alegam que a fé é componente essencial para adquirir o passaporte ao paraíso, e que não cabe uma mera alegação de crença, até mesmo porque Deus não é um estúpido que acredita em uma declaração insincera. Já os ateus ridicularizam-no, principalmente pelo fato de que não se escolhe acreditar em deus. Dado um conjunto de circunstâncias na vida de um indivíduo, simplesmente tem-se a crença ou não; tudo o mais é falso.

Pascal não deixou de pensar nestas situações. Ele entendia que a fé, mesmo que não existisse, poderia ser construída através da prática dos atos que lhe cercam. Sendo assim, ações tipicamente cristãs, como assistir à missa, tomar água benta, receber os sacramentos, ter parte nas obras de caridade e outras, ainda que o praticante não possua fé prima facie, pode tê-la induzida. Cercar-se desses elementos pode fazer com que psicologicamente exista um estímulo e o final seja uma fé legítima, e não uma mera tentativa de empulhação a Deus.

Até aqui, mesmo demonstrando que a aposta não é um argumento tão infantil quanto se costuma reputar, Pascal não me ajuda a defendê-lo. Isso porque ele possui muitas falhas. A primeira é o conceito de mal finito: que se perde pouco ao abrir mão de uma vida mais livre na inexistência de deus. Se não existe pós-morte, então a vida presente é a única que se tem, e isso multiplica seu valor a um ponto difícil de medir. Não se trata de usar o velho argumento de que ateus tem poucos lastros morais e que procurariam prazer indefinidamente. Na verdade, há muito pouca diferença entre a vida de alguém com fé e de alguém sem, porque os dispositivos sociais são muito bem influenciados pela religião, e a liberdade proporcionada mesmo em democracias laicas são bastante relativas. Segue-se o ditame social independentemente da religião a que se segue, com exceção do formato dos berloques que estão perdurados nos braços. É bem pouco diferente o comportamento de um ateu ou de um religioso no dia-a-dia – ambos tem obrigações legais idênticas e não se privam de bons-dias-obrigados-com-licenças. Ou seja: mesmo que não queiramos, temos práticas cristãs, mesmo sem fé. Por isso, deixar de usar essa vida de uma maneira mais livre representa a perda de uma oportunidade única, irrepetível. A perda é maior do que pode parecer.

O pior buraco de Pascal, contudo, está em indicar o Deus cristão trinitário como a cestinha na qual devemos depositar as fichas. Por que nele, e não no velho Javé dos judeus? Em Allah? Em Brahma? Na dupla Mazda-Arimã? Em Oxalá? Em Manitou? Em Tupã? No Monstro do Espaguete Voador? Ou nos outros três mil deuses espalhados pelas culturas do mundo inteiro? Como é possível botar as moedas com tanta convicção nos pés de qualquer um desses? Cada um deles é uma possibilidade de erro na aposta, não é?

A debilidade da aposta de Pascal, no entanto, não pode diminuir a importância do seu pensamento, por um motivo muito simples: trata-se de um gênio.

Ele foi muito importante nos estudos matemáticos ao desenvolver o conceito dos coeficientes binomiais, que ficou conhecido como Triângulo de Pascal. Na estatística, lançou a ideia de esperança matemática, oriunda da repetição de valores médios de uma variável aleatória. Na dinâmica dos fluidos, descobriu que a pressão hidráulica não depende do peso do líquido, mas da elevação em que o sistema se encontra. Seu nome virou uma das medidas de pressão mais utilizadas na metrologia, ao lado do Bar e do Newton. Criou aquela que seria a primeira calculadora mecanizada do mundo, hoje chamada de pascalina, e que, como ensinam os compêndios de informática, deu a primeira base para a automatização de processos, de modo a receber o nome de uma das mais difundidas linguagens de programação.

Na Filosofia, Pascal foi um racionalista, mas que confrontava o modelo de Descartes, estabelecendo uma demarcação entre o conhecimento científico e a crença religiosa. Deu ênfase no respeito ao conhecimento tradicional como base para o progresso científico, e em como a humanidade progride como um todo, e não apenas no nível individual. Influencia na Filosofia da Ciência ao estipular um método ideal para definições, axiomas e demonstrações, preferencialmente a partir de modelos matemáticos e geométricos. Ele também fala do Esprit de géométrie e do Esprit de finesse, ou seja, os ideais para a aquisição de verdades e a maneira de expressá-las adequadamente, para que se possa manifestar uma capacidade de compreensão para todo o mundo. Contrapôs brilhantemente a grandeza e a miséria humana, sintetizados na famosíssima epígrafe que adicionei a este post, que fala sobre um ser extremamente frágil, cuja única grande virtude reside em sua capacidade de pensar. Prenuncia o Existencialismo ao apresentar a humanidade como instável e incerta, mas que contraditoriamente busca base sólida onde possa edificar sua vida. Por fim, fala do divertissement como meio de fugir de si próprio, como já discorri neste texto: o homem não tem condições psicológicas de encarar a própria miséria e lidar com ela, então precisa se manter constantemente sob distração, ocupando sua mente com coisas vazias.

Princípio de Pascal, barril de Pascal, triângulo de Pascal, Universidade Blaise Pascal, cadeira de Pascal, medalha de Pascal, distribuição de Pascal, Pascal linguagem de programação, Pascalina, tantos Pascais de pressão... nada disso seria atribuído a um imbecil que elaborou qualquer argumento tonto. Portanto, reitero que, embora a aposta de Pascal, em que pese suas virtudes, seja um argumento no mínimo frágil, não há motivos suficientes para que toda a nossa visão sobre ele se volte unicamente a este aspecto, como tanto tenho visto por aí. Estamos justamente desperdiçando a oportunidade de vislumbrar um pensamento muito rico somente porque montamos sobre ele uma espécie de preconceito, o que nunca é bom. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Já que eu tinha recomendado anteriormente o livro Pensamentos, que é onde está descrita a célebre aposta, recomendo um dos argumentos citados neste texto.

SANTO ANSELMO. Proslógio. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

* A imagem de Pascal foi retirada da Wikipedia

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