(Em que medida o estranhamento frente aos hábitos de outras sociedades ajuda a explicar nossos próprios hábitos?)
Olá!
Já faz alguns meses que meu menino mais velho* se mudou de
Cascavel para Curitiba, tudo dentro dos limites do estado do Paraná. Mas mesmo
assim, eu resolvi desenvolver este post. Uma navegação de cabotagem, no
contexto deste emérito blog, é a descrição de um local bastante pontual, feita
em viagens de bate-e-volta. Evidentemente, uma rota que engole quase mil
quilômetros não dá para fazer em um só dia, ainda mais de carro. Mas não queria
deixar passar em branco o fenômeno, e resolvi incluí-la aqui.
Cascavel não é exatamente o que podemos chamar de cidade
turística. É grande e organizada, incrivelmente limpa, uma cidade jovem, de
pouco menos de setenta anos, denunciada por sua malha viária cheia de ângulos
de 90 graus, ruas largas e calçadas generosas. Mas no plano dos recursos
naturais, é como as outras cidades do oeste do Paraná: muita plantação e poucas
variações na elevação. Por outro lado, isso não significa que não haja nada
para fazer na cidade, muito pelo contrário. Há muita área arborizada, igrejas,
monumentos e equipamentos culturais, além de parques, vários parques. O
principal deles é o Parque Paulo Gorski, mais conhecido como Lago Municipal, e
é dele que vamos falar.
Trata-se de uma mancha original de mata nativa, onde estão as nascentes do Rio Cascavel, e de onde é retirada boa parte da água que abastece a cidade. É uma das maiores reservas urbanas do sul do país, e que abriga um bom tanto de espécies nativas.
Algumas coisas são bastante típicas, outras já são mais cosmopolitas, como os indefectíveis quero-quero, tão presentes nos estádios deste país.
A água é bastante limpa, o que permite a boa multiplicação de peixes e, de embalo, a visita de espécies para se alimentar. Vi muitos biguás por lá, uma espécie de cormorão.
A região alagadiça também favorece a presença de bichos de
banhado, notadamente as capivaras, que vivem lá às dúzias, embora seja possível
encontrar algumas isoladas, em atitude filosófica e contemplativa.
Brincadeiras à parte, o Lago Municipal está para o cascavelense assim como o Ibirapuera está para o paulistano. É lá que o pessoal se agrupa nos domingões de bom sol para se reunir e praticar algum esporte.
Aqui as famílias se reúnem em rodas para tomar seu
chimarrão, como bons descendentes de gaúchos que são em sua maioria, enquanto
soltam as crianças nos playgrounds para gastar sua energia.
Na única vez em que fomos a Cascavel, estávamos nas vésperas do mês de dezembro, e como cada vez mais cedo o Natal é puxado, a entrada do lago estava repleta de adornos e pupazzi.
Cascavel é um bocado longe de São Paulo. São quase mil
quilômetros, a serem vencidos em cerca de doze horas, contando as paradas
necessárias para abastecer, comer e dar asas à fisiologia. Além disso, mesmo
sendo grande, é uma cidade interiorana, que possui costumes próprios. Aqui,
como eu já disse, há uma marca da colonização gaúcha, que trouxe seus genes
italianos e alemães em quantidade. Ver o pessoal na beira do lago, sentado em
rodas com uma garrafa térmica, cuias e bombas para tomar chimarrão, mesmo em um
dia razoavelmente quente, colide um pouco com as impressões de um paulistano,
que, sabidamente, tem uma genética bem mais misturada. Só de olhar para mim
mesmo, concluo que minha porção armênia é quase que uma presença exótica nesse
meio. Mas não é por conta das predisposições hereditárias que o pessoal daqui
curte este tipo de ação coletiva. Penso em alguma correspondência de costume em
terras da Paulicéia e não vejo nada tão arraigado, apenas lembro das coca-colas
da vida, o que não traz exatamente uma conotação tradicional. Sim, reunimo-nos
com amigos à beira do lago e comemos coisas, mas muito mais inespecíficas. Por
outro lado, o cascavelense não é dado a manifestações tão comuns na capital da vertigem.
Padarias para o paulistano são centros de encontro. Pode até haver uma ou outra
mais abrangente em Cascavel, mas são essencialmente lugares para se comprar pão
e companhia. Em São Paulo, é ponto de encontro, de happy hour, de debate
político, de discussão futebolística, tudo.
É uma pequeníssima amostra, mas que nos dá a perceber que as
sociedades têm evidentes diferenças entre si, e a prova é essa estranheza
em detalhe tão simples. Costumam dizer por aí que o gaúcho não recebe de
bom grado um "não" para o seu chimarrão, e colocar açúcar no mate é
uma espécie de abominação. Não sei se é verdade, mas sabemos das diversidades
entre aquilo que é considerado bom e valioso entre as diferentes comunidades, e
o que é um mero adorno em outra, o
que até dá boas discussões, e a gente meio que já espera em termos de
reação ou aceitação porque há uma espécie de desenho social que se reproduz por
toda a comunidade. Será que eu estou certo ou vendo minhocas onde elas não
existem?
Diz Pierre Bourdieu que as coisas são assim mesmo. Ele
buscou uma sociologia onde a interação entre o coletivo e o indivíduo fosse
explicada em níveis psicológicos, de modo a elucidar como cada um molda o
outro, e como isso se espraia através do ambiente social onde se vive, muito
mais do que apenas a classe econômica, que já tanto tinha sido analisada pela
tríade Durkheim/Marx/Weber. Chamou isso de estruturalismo
construtivista (ou vice-versa), porque entendia que existem estruturas na
sociedade que coagem, ainda que imperceptivelmente, a ação dos indivíduos de
acordo com a classe em que estejam inseridos.
Vamos pela história de vida. Quando eu 'inda morava na Vila Ema,
não eram só as casas que eram parecidas, mas os costumes das pessoas. Havia um
fato muito curioso: se você percorresse logo cedo a rua em que eu morava, iria
escutar o programa do Zé Bettio** de fora a fora. Era costume das pessoas da
ocasião ouvir esse programa de músicas sertanejas enquanto preparavam seus
cafés-com-leite-pães-com-manteiga, em um volume que dava bem para ouvir da rua.
Se você estivesse em bairros mais abastados (Jardins, Moema, Pinheiros) ou com
colonização mais marcada (Vila Zelina, Ponte Pequena, Mooca), o fenômeno não se
repetia. Nos primeiros, o café com frutas e cereais era acompanhado pela
leitura de jornais, enquanto nos segundos havia algum componente exótico, como
alguma sopa armênia tomada logo cedo. Ou seja, Zé Bettio era um valor para
aquela população específica.
Não ouvíamos Zé Bettio em casa. Não porque pertencêssemos a
outra classe social, mas porque tínhamos costumes particulares. Mesmo sendo
igualmente pobres, eram preferíveis a nós aquelas tertúlias caras aos
ítalo-hispânicos. Por este motivo, parecíamos excêntricos, porque a cadeia de
radiodifusão do Zé Bettio era interrompida na nossa porta.
Duas coisas então. Uma é que, à semelhança do inconsciente
coletivo de Jung, há alguma coisa que desenha o comportamento das classes
sociais, e que ia se tornar mais evidente justamente quando algum membro dessa
classe faz algo diferente do padrão. Bourdieu entende que essas disposições
automáticas vêm do plano psicológico, em que os indivíduos interiorizam, desde
crianças, um modo de vida que é próprio de sua classe. Essa inscrição mental
começa dentro de sua própria casa, anda pela sua vizinhança e estende-se ao
ambiente escolar, que, pelas mais variadas condições, replica o amálgama social
daquela classe.
De fato, as coisas naquele bairro proletário eram todas
semelhantes. O jeito de fazer festas, de ouvir músicas, de estender a roupa
que, aliás, eram semelhantes para cada faixa etária. As paredes caiadas, os
quintais de cimento, os cachorros que entravam e saíam para comer os restolhos
semelhantes. E os mesmos programas de rádio: Zé Bettio, Gil Gomes, As Vinte Notícias
de Antônio Guzman, O Pulo do Gato (“acorda São Paulo do seu sono justo”), o
futebol das tardes de domingo. Todos meio que parecidos, o que fazia com que as
coisas diferentes se sobressaíssem ainda mais, a ponto de parecerem fora do
lugar.
Para Bourdieu, isso tudo é o habitus. Não se trata
meramente do radical latino para a palavra hábito, que representa uma maneira
comum de exercer uma prática, mas do modo como uma classe enxerga a si mesma, e
que a leva a uma tendência de práxis. Por isso mesmo, quando algum membro de
uma classe faz algum comentário sobre as atitudes de outro membro, apenas para
citar um exemplo, ele diz mais sobre si mesmo do que sobre o objeto analisado. Há
uma dialética nessas relações, em que de um lado temos as predisposições
individuais, e do outro está a sociedade que reza o ditame, sendo a síntese uma
espécie de aproximação que anula a individualidade, mas que fornece um meio
próprio de atender o meio social. E isso nós vamos perceber ao se falar em
outro conceito de Bourdieu: o campo.
Como o termo pode fazer supor, o campo é um espaço, mas não
no sentido meramente físico, como um bairro ou uma rua. Um campo é o espaço simbólico
onde o habitus de uma determinada classe é exercido. É que o habitus, como uma
espécie de gabarito para o comportamento, é da esfera abstrata, e o campo é a
arena social onde ele é colocado para fora. Afinal de contas, não se
pratica a sociedade sem que haja um local onde as suas relações típicas se
exerçam. Vejam só. O habitus é uma inclinação a agir dada pelas disposições
sociais que cercam um indivíduo, mas não a ação em si. Defrontado com certo
problema, um agente social tenderá a pôr em prática aquilo que lhe é
interiorizado, mas há um momento em que isso sai da mera subjetividade para ser
colocado em prática. Há condições que estabelecem essa prática, e o local onde
estas condições são desenroladas é que é o tal do campo. Ele é um modificador
das ações porque possui suas regras próprias e seus atores bem estabelecidos,
incluindo aqueles que detêm um maior poder.
Como eu disse, o campo é uma arena, o que faz pressupor uma
luta. E os componentes da batalha o fazem por uma questão de "lei da
selva": vive melhor aquele que tem mais poder. Para que seja possível
alcançar algum tipo de posição minimamente privilegiada nesse embate, os atores
sociais necessitam de armas, que Bourdieu chama de capital. Evidentemente, esse termo engloba poderio econômico, como
não poderia deixar de ser, mas não se limita a ele. Imagine, por exemplo, o
conjunto dos alunos de uma sala de aula. Lá, em tese, o dinheiro não importa
tanto, mas que está muito longe de ser uniforme. Por exemplo, a maior vantagem
é obtida através da capacidade cognitiva. Os nerdões chegam mais facilmente a
seus objetivos e, com isso, possuem um capital com o qual podem negociar. Eles
são os favoritos na hora de montar grupos para fazer trabalhos, por exemplo, o
que lhes confere prestígio. A turma do fundão também possui suas armas, que é a
violência física e psicológica, e que busca "convencer" os cdf's
precitados a colocar seus nomes nos mesmos trabalhos, à custa de algum
favorecimento, como, por exemplo, proteção. Moças bonitas e rapazes atléticos
também podem usar seus atributos para angariar admiração, enquanto os alunos
mais populares, hábeis no diálogo, também têm recursos para conseguir empatia,
todos eles independentemente do processo de aprendizado em si mesmo, dando uma
boa mostra da variação do campo. De uma forma ou de outra, tudo é jogo de poder,
com suas regras específicas: os bons alunos lutam pelas melhores notas, e os
demais por obtê-las através de outros meios. Fiz-me claro?
E o que Cascavel tem com tudo isso? É que, em um prazo tão
curto, há uma espécie de descompasso entre o habitus de quem veio da classe
pobre paulistana para a classe média paranaense, e esse sentido de local que a
característica traz faz com que se sinta um pouco fora de lugar, embora isso vá
se arrefecendo com o tempo, e um novo habitus vá moldando a psique do moleque
audacioso. Não vai dar tempo, ele já está em Curitiba, mais semelhante à
Paulicéia desvairada. E não se trata de uma comparação entre melhores e piores,
maiores e menores, mas do reconhecimento de que há diferenças entre as classes
e as arenas onde elas agem. Isso é normal nas sociedades e acontecerá sempre
que saiamos de nosso habitat costumeiro. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Pierre Bourdieu abordou inúmeras vezes o meio social em sua
obra, mas a brincadeira de habitus, campo e capital começou com o livro abaixo.
Talvez eu volte a ele.
BOURDIEU, Pierre. A
Distinção. Crítica Social do Julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2011.
* Menino é só uma forma carinhosa, porque o gajo já tem 28
anos.
** Zé Bettio era um apresentador de rádio especialista em
músicas sertanejas que se tornou uma referência nessa área.
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