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quinta-feira, 17 de março de 2016

Pequeno guia das grandes falácias - 21º tomo: o apelo à autoridade (argumentum ad verecundiam ou magister dixit) e alguma coisa sobre a imprensa

Olá!


De todas as falácias de dispersão e relevância que discuti neste espaço até agora, nenhuma tem o mesmo poder de causar confusões quanto aquela que será abordada no presente texto. Desde logo, vou apresentá-la, sem contar historinhas, descrever filmes ou filosofar lateralmente. É o apelo à autoridade, também conhecido pelos nomes de argumentum ad verecundiam ou magister dixit.


Nossas reverências às egrégias autoridades

O termo verecundiam não significa “autoridade”, como seria praxe pensar pelo ritmo dos demais apelos. Em latim, esta palavra quer dizer vergonha. Apelo à vergonha? Sim, e vou explicar por que. A vergonha, neste caso, tem o sentido de acanhamento, de um respeito reverencial por uma pessoa a quem se refere um determinado argumento, e não daquilo que os nossos eméritos políticos deveriam ter: aquele sentimento de culpa pelo fato de haver cometido alguma falta, a desonra pelo cometimento do ato indecoroso. A vergonha do apelo, portanto, tem a ver com o reconhecimento da incapacidade perante alguém reputado como melhor preparado.

Já o magister dixit não é só a latinização daquela velha brincadeira de criança de seguir o chefe, já que significa literalmente “o mestre falou”. É um termo que é utilizado fortemente na Idade Média, mais especificamente na corrente teológica da Escolástica, na qual São Tomás de Aquino foi craque. A Escolástica utilizou largamente os textos de Aristóteles, principalmente a partir das traduções de Avicena e Averróis, filósofos árabes que conseguiram coligir a maior parte de sua obra. Muitas das teses aristotélicas foram absorvidas e adaptadas ao Cristianismo, como o Primeiro Motor Imóvel, ato e potência, causa eficiente e final, etc. Bom, é assunto para um texto próprio, portanto não nos estendamos. Mas a locução magister dixit passou a ser interposta nos textos todas as vezes em que um argumento se baseava nas premissas estabelecidas por Aristóteles. Por extensão, os adeptos do tomismo faziam o mesmo em relação a São Tomás, e daí para frente foi sendo usado para referendar a autoridade de qualquer chefão que se situasse na hierarquia.

Há também outro termo, mais satírico, que pude ver em língua inglesa e italiana, então acho interessante fazer uma rápida remissão. É a falácia do “meu primo” (my cousin ou mio cuggino). Existe uma brincadeira que algumas poucas vezes vi sendo feita, que implica em dizer que “entre eu e meu primo, sabemos tudo sobre XYZ”, sendo XYZ qualquer assunto a que se queira referir. Diante do desafio, lança-se uma pergunta qualquer, que é respondida invariavelmente com a frase “essa não sou eu quem sabe, é meu primo”. Como todas as respostas são exatamente iguais, supõe-se que só o primo sabe das coisas. Bom, é tolo, mas como existe, queria deixar registrado.

A palavra “autoridade” vem do latim auctoritas, que, por sua vez é oriunda do grego augere, e que significa fazer subir, chegar ao auge. Quando aplicada ao conhecimento, significa aquele que faz aumentar o conhecimento. Nada a ver com termos vindo da política e da prática social. Por isso é bom diferenciar que apelar para a autoridade não significa chamar o guarda. Isso é apelo à força.

Um apelo à autoridade acontece quando baseamos um argumento em uma posição de determinada pessoa que, em tese, possui conhecimento em um assunto a tal nível que sua palavra pode ser considerada expressão da verdade – uma prova de validade do argumento.

Qual é o problema do apelo à autoridade? É que utilizar os conhecimentos e as opiniões de autoridades legítimas em um determinado assunto é algo perfeitamente normal e aceitável, e mesmo desejável. Quando queremos esclarecer um problema de Física, por exemplo, procuramos um físico, não é isso mesmo? E quanto mais titulado, melhor. Apelar para uma autoridade, portanto, muitas vezes é legítimo, e isso torna o argumento não falacioso. Portanto, é uma falácia muito manhosa. É preciso, nestes casos, prestar muita atenção às armadilhas do uso de autoridades nos argumentos. Vamos tentar cercá-las.

Primeiro: Ninguém é autoridade em toda e qualquer área. Não há nenhuma dúvida de que Albert Einstein seja um dos maiores gênios da Física que já pisou neste pobre planetinha, e utilizar seus ensinamentos sobre a relatividade é argumento plenamente legítimo. Será que uma sentença moral em que seja referenciado teria o mesmo valor? Vejamos. Leiam a seguinte frase:

“A fama é para os homens como os cabelos - cresce depois da morte, quando já lhe é de pouca serventia.”

Einstein não é uma autoridade sobre Biologia. Cabelos não crescem após a morte, com exceção de poucas horas em que algumas funções biológicas ainda são mantidas. Se alguém disser que cabelos crescem após a morte porque o grande cientista Einstein o disse, estará utilizando o apelo à autoridade. Mais ainda porque se trata de uma sentença moral, alegórica. Jamais poderia ser aplicada para corroborar uma afirmação.

Não é possível conhecer tudo. Ser um gênio em uma área do conhecimento não torna ninguém um gênio geral. É preciso estudo e aptidão para tanto, e ter consciência dos limites da cognição humana. Esse é o grande problema do argumento de autoridade – pelo fato de que a mesma não é autoridade em tudo, há uma dispersão no foco do argumento, e é irrelevante no caso acima que Einstein seja um dos grandes cérebros da humanidade.

Segundo: Uma titulação não garante que determinada pessoa seja autoridade em um assunto. Imagine que alguém seja formado em Direito, mas que tal graduação tenha ocorrido há mais de 30 anos, sem que o nosso caro exemplo tenha exercido a profissão (digamos que tenha optado por vender sapatos). Quanto mudou a legislação neste tempo todo? Quanto mudou das estruturas dos tribunais e dos escritórios de advocacia, com o uso de computadores, internet e peças virtuais? Quanto o próprio mecanismo social se transformou, fazendo com que condutas antes bem aceitas hoje não tenham respaldo nos meios jurídicos? Nosso desatualizado causídico não perdeu seu bacharelado e sua licença para atuar, mas somente poderá falar com propriedade sobre algum princípio fundamental e filosófico do Direito, mas terá condições de tratar sobre áreas novas, como o direito digital?

Terceiro: Mesmo que a autoridade referida seja de fato habilitada no tema em questão, é preciso que este tema possua algum nível de consenso entre os especialistas que o tratam. Teorias sobre ciências humanas tendem a gerar mais controvérsias e disputas que as ciências exatas, pelo simples fato destas últimas basearem-se em princípios lógico-matemáticos, o que diminui sua ambiguidade. 

Pensemos na psicologia e na psiquiatria, por exemplo. Há uma disputa intensa entre ambas sobre qual a melhor forma de tratar de transtornos psíquicos. A primeira procurará terapias baseadas na palavra, enquanto a outra tratará dos males com o uso de substâncias, preponderantemente. Se isolarmos apenas a psicologia, veremos que há inúmeras correntes para explicar os mesmos fenômenos, como o comportamento e a consciência, todas elas apoiadas em experimentos e no método científico; válidas, portanto. Basear um argumento na autoridade de um psicólogo de uma vertente sem deixar clara a dificuldade no consenso é tão falaz quanto o uso do magister dixit em qualquer outra modalidade.

Quarto: Ainda que a autoridade possua os predicados necessários, ainda que verse sobre tema de sua alçada, ainda que o assunto seja incontroverso, é preciso que a referência seja desinteressada. O que significa isso? Que seus pareceres devem ser imparciais. Cientistas e professores possuem interesses como qualquer outro ser humano, e, dependendo do grau que alguma circunstância se imiscua no seu pensamento, pode fazer com que seus conceitos sejam atravessados. Um médico que seja testemunha de Jeová certamente não será a melhor autoridade para falar sobre transfusões de sangue. Um químico que possua uma patente de determinado medicamento certamente propenderá a enaltecer suas benesses, em detrimento de outras substâncias. Vejam como a coisa vai ficando complicada.

Quinto: Passados os quatro filtros anteriores, é preciso ter em conta que a área em que se lança mão da autoridade deve possuir alguma legitimidade. Sabem aqueles programas de fim de ano, em que é consultada toda sorte de vate, adivinho, pai-de-santo, profeta, vidente, cigano, oráculo et caterva? Pois então, são todos autoridades em adivinhar o futuro. Artes divinatórias não formam um campo de conhecimento metodologicamente construído, portanto qualquer abobrinha falada por um tem o mesmo valor do legume dito por outro, ou seja, não há critério para estabelecer autoridades legítimas. Onde todo mundo é autoridade, ninguém é.

Sexto: Há uma variação do argumento ad verecundiam que consiste em atribuir anonimato à autoridade a quem se apela. São tremendamente comuns, muito perniciosos, que passam praticamente batidos pelo leitor menos atento, especialmente pelo fato de serem usados genericamente, em debates onde não se pretende aprofundar em pontos específicos. Quem nunca viu frases deste tipo?

- Cientistas asseguram que...
- Especialistas foram consultados...
- A Ciência garante...
- A literatura médica explica...
- Está registrado na História...

Cadê a autoridade? Escondida sorrateiramente não se sabe onde. A malícia desta modalidade é bem mais evidente, porque faz supor uma autoridade, mas não a identifica. E é nesse ponto em que eu enxergo um grande problema, e gostaria de discuti-lo com vocês, meus valentes e pacientes leitores. Existe uma determinada instituição, essencial para a democracia, que não só tem salvo-conduto para usar a autoridade anônima, mas até mesmo amparo legal. Essa instituição é a imprensa. Vamos ler o que está prescrito na Constituição do Brasil:

Art. 5º (...)
XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.

Sendo uma norma constitucional, não poderá ser proclamada uma lei que impeça um jornalista de resguardar o sigilo da fonte; também não poderá ser compelido a fazê-lo pela Administração Pública, e nem ser obrigado por cláusulas contratuais por empresas particulares e pessoas em geral. Mais ainda: fazendo parte das chamadas cláusulas pétreas da Constituição, não poderá nem ao menos ser objeto de emenda – apenas uma nova Assembleia Constituinte poderá modificar ou suprimir esta garantia.

Pois bem. A garantia de sigilo da fonte é uma das ferramentas mais importantes que a imprensa tem para exercer seu trabalho. Somente com essa garantia as fontes podem se sentir seguras para fornecer informações e, por extensão, cometer suas indiscrições. Já sabemos: força bruta é recurso de regimes ditatoriais, que moldam a imprensa aos seus interesses, mas não só. Há sempre grandes quantidades de interesses em jogo, e fazer uma denúncia é algo grave, com consequências imprevisíveis, inclusive para quem a faz. Essa liberdade é essencial para que um monte de coisas que são feitas por debaixo do pano venham a claro, ao menos na forma de indícios.

Mas o reverso da medalha é igualmente perigoso. A garantia do sigilo dá ao jornalista um poder que quase ninguém mais tem, que é o de fabricar realidades. Pode errar e mesmo mentir. As fontes podem ter um índice de confiança altíssimo – ou não. Podem ser autoridades válidas – ou não. São seres humanos, com todas as suas idiossincrasias. E o jornalista tem convicções e intenções – primeiras, segundas e terceiras. Só que é possível inserir informação falsa ou falaciosa sem que se tenham ferramentas para aferir. A fonte é uma suposta autoridade que possui informações privilegiadas. Como conferir?

Infelizmente, o jornalismo não é composto somente por virginais mocinhas. Há muitas putas velhas também, como há na política, no esporte, na filosofia e em qualquer lugar onde haja um primata com telencéfalo avantajado. Ter o direito de manter o segredo da fonte dá ao jornalista a possibilidade de distorcer, aumentar, camuflar ou até mesmo criar informação. É bem certo que ele, jornalista, tem responsabilidade pelo que publica e pode responder por isso, mas o estrago produzido pela manchete não é corrigido pela errata no rodapé da página 5.

Mas a imprensa deve então ser cerceada? Pouca gente é louca para achar que sim. No mundo inteiro, a imprensa tem um papel fiscalizador que somente a conjunção do interesse jornalístico e a necessidade de informação do povo é capaz de obter. Uma imprensa que tiver restrições na sua atuação não cumprirá o seu papel. Um jornal com um certificado de censura é um instrumento mutilado, e creio que não queiramos mais ver isso em nosso país.

Ora, se por um lado o sigilo da fonte resguarda o mau jornalista, e por outro a censura e o cerceamento da liberdade de imprensa são abominações, como poderemos resolver esta aporia?

No meu humilde entender, a solução que temos ao nosso dispor é o bom e velho ceticismo. A dúvida metódica é como se estivesse cheia de músculos: quanto mais exercício, mais robusta e difícil de bater fica. Não se trata aqui de um ceticismo burro, daqueles que somente duvida pelo gosto da implicância. Devemos partir da premissa que não existe conhecimento pronto e acabado, e que possa ser obtido confortavelmente, mas que conhecimento existe para ser interpretado. No caso das notícias, temos que estar cuidadosos com conceitos históricos, jogos de interesse, tradição ética de quem escreve, multiplicidade de pontos de vista, palavra dada às partes, a mesma notícia expedida por outro veículo, e, evidentemente, desconfiar do excesso de apelos à autoridade e de fontes anônimas. Somos também nós responsáveis pela informação que recebemos, na medida em que escolhemos acreditar ou não nela.

Mais do que português e matemática, é preciso ensinar o ceticismo às nossas crianças. Essa será nossa verdadeira revolução cultural.

Recomendação de página:

Alberto Dines é um jornalista carioca que sabe das coisas. Passou todo o período da ditadura rebolando para lá e para cá para manter a linha editorial do Jornal do Brasil, de quem foi editor-chefe. Sentiu na pele o peso da “isenção” das empresas jornalísticas, ao ser demitido por criticar as relações deste jornal com o governo do estado do Rio de Janeiro. Criou o Observatório da Imprensa, que tem por propósito ser um sentinela da mídia, fazendo uma espécie de metajornalismo. Recomendadíssimo.

Observatório da Imprensa. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br. Acesso em 17.03.2016.

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