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quinta-feira, 5 de agosto de 2021

A síndrome de Poliana como exagero do viés de positividade e o Pequeno guia das grandes falácias – 63º tomo: a falácia do vidraceiro

(Ser feliz é uma coisa boa, mas tudo na vida tem sua justa medida. Passar do ponto pode não mostrar coisas boas, inclusive falácias).

“Destruição não é lucro” - Bastiat

Olá!

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Estamos em época de Olimpíadas, que se realiza em atraso, por conta da "benção" da pandemia. Eu curto muito acompanhar os jogos, só que desta vez está difícil, porque a maior parte dos certames ocorre de madrugada. Afinal, o Japão está do outro lado de uma Terra que não é plana, e meu sagrado sono não me deixa interromper seu culto. Mesmo assim, ainda na hora do café, procuro me atualizar sobre medalhas e recordes.

Tem coisa, no entanto, que me incomoda, e muito. Eu estou longe da crítica barata e milonga repetitiva de “globolixo” dos atuais donos do poder, mas o ufanismo da vênus prateada me dá engulhos. Mesmo nos esportes onde sabemos não haver a mais remota chance de medalha, os locutores e comentaristas insuflam a audiência, como se quisessem catalisar a grandeza da nação através de um sonho impossível. Isso é uma tática, obviamente. Se você perguntar em off, um por um te admitirão que não existe chance de medalha no badminton ou no hóquei. Mas o ordenamento é não baixar a bola, em nenhuma circunstância. Para mim, é um alto astral idiota. Bom... Tenho problemas com ufanismos e otimismos.

Comecei a trabalhar aos 14 anos, o que significa que, neste ano da graça de 2021, completei 37 anos de carreira praticamente ininterrupta. Em outros tempos, já estaria regularmente aposentado, mas as mudanças de regra feitas com o jogo andando fizeram com que eu ainda tenha muito a trabalhar. Mas essa janela toda me fez cruzar com todo tipo de gente: soturnos, sossegados, ansiosos, lascivos, oligofrênicos, espertos e aqueles que mais me irritam, os otimistas exacerbados. Ô como me aborrecem aqueles que se colocam em permanente estado de alto astral.

Credo (direis)! Que péssimo humor… Você preferiria que seus colegas fossem reclamões que só jogam o clima para baixo, ou aqueles que têm manias persecutórias que acham que todo mundo quer prejudicá-los? Não é melhor ouvir palavras que no mínimo podem servir de incentivo?

Eu sei dizer que sou meio pessimista mesmo. Talvez por isso tenha Schopenhauer entre meus filósofos favoritos. Não sou um radical, que só veja o lado negro da vida. Mas, se pretendo ser realista, é óbvio que não posso contorcer minha visão ao ponto de me desprender da realidade. E há momentos em que temos motivos justos para sermos ponderadamente otimistas. Se meu time tem bons jogadores, entrosados e em forma, não tenho porque achar que ele será rebaixado, e sim que disputará o título.

 Num rasgo de humildade, admito que o pessimismo não é uma tática boa. Já cheguei a pensar que era uma ótima estratégia de defesa: se eu espero pelo pior, quando as coisas não vêm tão ruins assim acaba sendo até um lucro. Acontece que ser pessimista, por vezes, significa sofrer por antecipação e, não em poucos momentos, inutilmente. Por exemplo, espero o resultado de um exame achando que tenho um gravíssimo tumor. Quando é constatado que não passava de uma espinha, percebo que a dor de cabeça foi à toa.

Mas é o tipo da coisa que não escolhemos ser. Há uma certa medida em que a racionalidade age, mas que daí para frente não adianta nada. Eu raciocino que são ofensivos ao meu anfitrião os esgares que faço diante do coentro que aniquila a torta, mas não consigo nunca me convencer de que sabão é um bom gênero alimentício. Com a dicotomia otimismo/pessimismo é a mesmíssima coisa. Pensar ajuda, mas há um momento em que não conseguimos conter as aflições e ansiedades.

Acontece que não se trata (o meu perrengue) de ter inveja dos otimistas. É que, assim como o pessimismo exagerado é um mal em si mesmo, dialeticamente o otimismo despropositado também é. Ele nem natural do ser humano é.

Há gente que tenha esses impulsos através das bazófias que leem nos manuais de autoajuda, que ouvem nos discursos do empreendedorismo ou nas lavagens cerebrais da PNL. Esses logo levam uma na cabeça e retornam à crua realidade. O problema é quando esse estado de espírito torna-se tão arraigado que passa a fazer parte da realidade mental da pessoa que, como sabemos, é bem descolada da realidade factual que todos nós, caniços pensantes, vivemos com peso.

Tão séria é a situação das pessoas que vivem em uma positividade falsa que passou a ser considerada uma doença, que é classificada no curioso nome de síndrome de Poliana, baseado na personagem criada no começo do século XX pela escritora Eleanor Porter, que fez um sucesso lascado. Senta, que lá vem spoiler.

Poliana é uma menina que perdeu seus pais e se viu forçada a morar com a tia, uma mulher extremamente amargurada. Como foi destinada a ela uma vida tediosa, em lugar solitário, usou uma brincadeira que seu pai lhe ensinou para animar e dar sentido para seus dias: o “jogo do contente”, que consiste em achar um lado positivo em tudo e sempre encontrar um motivo para ser feliz, seja lá qual for a circunstância. Para o que queremos conversar aqui, já é mais que suficiente.

Os psicólogos Margaret Matlin e David Stang, especialistas em psicologia cognitiva e social, descreveram um conjunto de sintomas que incluía um desprendimento da realidade através da fuga de situações difíceis, mesmo quando em níveis insuportáveis. A este diagnóstico resgataram o nome da pequena guria do conto, por possuir algumas características assemelhadas ao quadro. O limite entre o otimismo simples e a positividade tóxica é bem embaçado.

Por um lado, poderíamos aproximar o jogo de contente da pequena Poliana a uma lógica epicurista. Se na atividade lúdica a menina procurava encontrar sempre um lado positivo em tudo, podemos pensar que esse alívio mental é uma busca pelo prazer, em detrimento do sofrimento que a situação normalmente faria pensar. Mas a coisa está longe de ser tão simples assim. 

Nós todos vivemos sob condições psicológicas chamada de vieses. Não são coisas excepcionais, mas apenas tendências mentais a dar um determinado caminho às coisas que pensamos e sentimos. Um dos mais clássicos é o viés de confirmação, outro são os mecanismos heurísticos. Há ainda outros, como o viés de positividade, uma tendência psicológica em lembrar mais facilmente de eventos positivos do que negativos. É um fenômeno comuníssimo, que citei neste link, mas vou dar como exemplo os tempos em que você ia comer macarrão na sua vovó. A não ser que algo muito traumático tenha acontecido nessas tardes de domingo, você não lembrará que seus tios estavam bêbados, que suas tias lhe arrancavam as bochechas, que seus primos quebravam seus carrinhos e que seu irmão mais novo fazia birra para ganhar justamente a coxa de frango que era sua. Você vai lembrar apenas do sabor da massa e do molho, do quanto a sobremesa era saborosa e do quanto era acolhido com carinho pela avó, da bola que jogava com o avô e do quanto era grande o quintal, em detrimento da sala de seu minúsculo apartamento. A mente faz esses fios de seletividade porque quer viver bem consigo mesma, e é óbvio que lembranças felizes são mais cômodas, mesmo que não formem a realidade completa.

A moderna psicologia forjou o termo síndrome de Poliana pra diferenciar uma condição natural, que é a perspectiva positiva, de uma condição patológica. O termo síndrome significa um conjunto de sintomas que dão uma dica que algo vai errado, ou seja, uma síndrome é uma condição de anormalidade, um sinal de doença. Logo de cara, portanto, é preciso diferenciar uma pessoa com pensamento predominantemente positivo de outra que se perde em devaneios de contentamento impossível.

Pensamentos positivos são bons. Todos aqueles que desenham um objetivo não o fazem sem que haja impossibilidade de atingi-lo em condições normais de temperatura e pressão. Eu, por exemplo, tenho um projeto de aposentadoria: gravar todas as músicas que eu escrevi na juventude. Eu tenho uma bateria, meu filho mais velho tem uma guitarra e meu genro tem um baixo. Com um computador e alguns microfones, é o suficiente para captar as músicas e fazer tratamentos por software. Dá um trabalho insano, mas, estando em santa paz com minha inatividade, é uma ocupação e tanto. Se eu não acreditar minimamente que vai ficar bom, nem começo a brincadeira. Mas o limite da minha positividade está aí: é uma coisa amadora, limitada à auscultação de meia dúzia de pessoas, um legado para os netos.

Percebem que esse tipo de pensamento está bem delimitado pela realidade? Dentro do campo de possibilidades, essa pretensão está realmente calibrada: haverá algum tempo, há recursos materiais e eu não tenho artrose nos dedos (ainda). Qualquer coisa que vá acima disso, vai ficando cada vez mais improvável e irreal. Pode ser que alguém do vilarejo que eu more me ouça pela janela e ache bom que eu toque no seu boteco. No mais tardar, alguma molecada poderá achar o baterista que faltava, para brincarmos nos fins de semana. Daí para frente, é otimismo demais. Não vou atrair nenhuma gravadora, não vou fazer shows, não vou sair em turnê, ser aclamado como um talento tardio. É tão possível quanto as pirâmides do Egito terem sido montadas pela força das águas do dilúvio (sim, já ouvi esse tipo de coisa).

Qual é o problema de pensar tão grande, de ter uma positividade exacerbada? É simples. Da mesma forma que o pessimista de carteirinha, o otimista excessivo se desprende da realidade. Quando isso chega a um nível de transpor a barreira do patológico, temos diante de nós uma atitude de fuga da realidade. E convenhamos: se alguém é escapadiço à verdade física e mental, é porque tem problemas.

Uma boa parte da questão está incluída naquilo que consideramos como bom e valioso. Concordam comigo que nem tudo o que tem valor está inscrito em nossos genes? Muito do que valoramos vem do nosso meio social, através dos usos e costumes. Só que tem um problema: esses valores não são absolutos nem eternos, como bem diria Nietzsche. Mas nós balizamos a felicidade através da normatividade, e o que fica fora dela é negativo, é desviado, e triste. Vou dar um exemplo: por que o desenho Frozen causou estranheza e até estrépito em certos meios? Porque ele não terminou com um casamento, como é o padrão. Idem com toda e qualquer novela que você assistir. O final feliz esperado para qualquer história de amor é o enlace definitivo. Com isso, pensamos que uma pessoa sozinha não pode ser feliz, porque o "normal" é um casal, uma família. Duas ilusões conjugadas: a que diz, como na música de Jobim, que é impossível ser feliz sozinho; e a de que o melhor refúgio de um ser humano é a família. Tem muita discussão aí. Primeiro, por mais gregário que seja o homem, sempre haverá quem prefira ficar só, sem que isso represente tristeza. Para essa pessoa, a positividade estará justamente na solidão. Se você não entende solidão como uma coisa boa, seu complexo de Poliana lhe fará bugar o cérebro. Por outro lado, há famílias absolutamente tóxicas, e o lado positivo possível é se afastar dela. Lamento, mas isso existe e acontece. Portanto, determinar o lado positivo é muuuuuuuito relativo.

Para além deste aspecto, no entanto, vai mais coisa ainda. A positividade excessiva não deixa de ser uma forma egoística de não suportar a realidade tal como ela é. Vamos combinar que lidar com o lado bom das coisas é sempre mais fácil do que lidar com pensamentos negativos. Só tem um probleminha: eles existem, e tem situações em que nada de positivo é possível extrair. Há coisas que não tem lados positivos. Uma fácil e rápida: que cena que envolva racismo pode ter lados positivos? O que faria Poliana em uma situação assim? Só se pensar: que bom que não é comigo. Isso não é tóxico? A síndrome de Poliana, portanto, aparece quando a pessoa não quer enfrentar problemas, simples assim.

O fato é que temos que saber lidar com situações difíceis, e não há nada de mau em nos sentirmos mal com elas, desde que não sejam incapacitantes. E é aí que a síndrome é um problema - quando ela nos torna incapazes. Muitas vezes a solução para a aporia de não existir lado bom é achar um tertius. Se eu sofro, é porque Deus quer, ele sabe o que é bom para mim; se eu não consigo, o destino me levará a coisas melhores, coisas do gênero. Mas nada faço para resolver a questão, especialmente quando faço essas terceirizações. Se esse modelo de pensamento me conforta, também me conduz a um conformismo - o que é o exato oposto do otimismo, no final das contas. Notaram a armadilha?

É por isso que eu gosto do desenho Divertida Mente, a quem relacionei no meu post dos dez anos. Há quem não tenha gostado, e dificilmente alguém o coloca como o melhor trabalho da Pixar, mas eu ainda achei ótimo. Seu recado é muito claro: todos os nossos sentimentos são necessários para a construção da personalidade de uma pessoa, inclusive a tristeza. A todo tempo a personagem Alegria tenta controlar o edifício da personalidade da protagonista, que se encontra em plena transição da infância para a juventude, mas há um momento tal em que sua antagonista Tristeza invade, sem controle, o palco mental da menina, e, pasmem, é ela quem resolve as coisas. Sem a tristeza, os outros sentimentos não se rendem, o ego não se encontra a si mesmo e se repõe à estabilidade. Não é preciso colocar a tristeza para fora, mas deixá-la agir como reação natural. Desenhinho genial, e que dá um tapa na cara dos poliânicos.

Desculpem pela brincadeira. Os acometidos pela positividade tóxica precisam de ajuda tanto quanto os deprimidos, porque são dois lados de uma mesma moeda, e merecem todo o meu respeito. Mas há sempre espaço para lembrar das falácias, não é mesmo? Há uma delas que está relacionada ao fato de se ver tudo pelo lado bom, e que nos mostra como nem sempre a positividade está vinculada a argumentos válidos. É conhecida pelo curiosíssimo nome de falácia do vidraceiro, e vem de uma alegoria do economista francês Frédéric Bastiat para desmentir que um processo destrutivo pode ser benéfico para a economia.

A historinha é a seguinte: um menino quebra a vidraça de uma loja com uma pedra. Diante do aborrecimento do proprietário, alguma Poliana lhe diz para não se irritar, pois para cada coisa de ruim, há alguma coisa de bom. Senão, o que seria dos vidraceiros?

Essa ideia é falaciosa porque carrega uma falsa positividade. De fato, o lado bom se justifica, mas é muito menor do que o prejuízo causado – e que não se resume à substituição do vidro. Bastiat chama essa última de efeito visível, algo que está ligado imediatamente ao que se vê. Mas a cadeia de causas e consequências levada adiante, traz consigo aquilo que não se vê. O vendeiro tem que realizar um gasto imprevisto com a vitrine, o que é bom para o vidraceiro e mais ninguém, ali se encerra o seu ciclo. Mas acontece que a quebra da janela direciona a verba disponível para um evento ruim, que pode ferir alguém, estragar o produtos expostos e que, no final das contas,  desvia o dinheiro dispendido de outros fins, mais bem amarrados na cadeia de causas e consequências.

No final das contas, a positividade exposta aqui é falsa. O argumento parece trazer bons motivos para se sair quebrando janelas por aí. Melhor seria que o vidro não se houvesse partido, que as coisas que não são vistas pudessem acontecer normalmente. Não há nenhum ganho na substituição da janela: ela é necessária no comércio do lojista e precisará ser refeita. Esse dinheiro, se investido na melhoria da venda, aperfeiçoaria o trabalho e geraria mais renda, em uma das hipóteses. Esse é o lado invisível das consequências, segundo o que diz Bastiat.

Bom, é isso. Sejam felizes, mas não o façam por fuga ou autoengano. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Vão de baciada. A versão que está na foto é de uma coletânea da Disney que eu tenho desde criança, mas a história de Poliana é menos resumida do que a que está lá. Segue uma bonita versão completa.

PORTER, Eleanor. Pollyana. São Paulo: Autêntica, 2016.

A psicóloga Margareth Matlin foi bastante atuante e tem o seguinte livro em língua portuguesa:

MATLIN, Margareth. Psicologia cognitiva. Rio de Janeiro: LTC, 2004.

O desenho Divetida Mente é um dos que eu mais recomendo para assistir. Gostei muito, de fato, principalmente levando em conta a proximidade entre Pixar e Disney, que costuma se dedicar a historinhas mais manjadas.

DOCTER, Pete. Divertida Mente. Filme. Cor. 94 min. Estados Unidos: Pixar, 2015.

Mas não sejamos radicais. Frozen também é um desenho agradável e que tem o tal final meio diferente. Gosto ainda mais porque incomoda, ainda que involuntariamente, uma bela camada de tontos (e preconceituosos).

DEL VECHO, Peter. Frozen. Filme. Cor. 102 min. Estados Unidos: Disney, 2013.

Por fim, recomendo este opúsculo de Bastiat, que tem umas coisas bem interessantes e fáceis de entender na área de Economia.

BASTIAT. Frédéric. O que se vê e o que não se vê. São Paulo: LVM, 2010.

 


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