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segunda-feira, 26 de julho de 2021

Pequeno guia das grandes falácias – 61º tomo: o ergo decedo, e a microfísica do poder em movimento até nas melhores famílias (e menores prédios)

(Já pararam para pensar que tudo na nossa vida está carregado por relações de poder? Ele está presente até quando você fala bom dia para o porteiro, além de ser uma usina de falácias, como se verá).

Olá!

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“Os incomodados que se mudem”, virou o mote mais utilizado no prédio em que habito. Não é uma frase das mais comuns nos modernos condomínios cheios de unidades, mas é que aqui as coisas não estão muito alinhadas com o padrão. Já mencionei algumas desventuras deste honorário edifício em outros textos (aqui e aqui), mas vou dar uma rápida repassada para vocês entenderem o contexto.

Normalmente, os condomínios têm vários donos dos diferentes apartamentos, cujos relacionamentos são regidos por um documento chamado Convenção do Condomínio. Ali, estão todas as regras que foram acordadas pela assembleia dos condôminos, uma espécie de feira livre onde os moradores destilam seus ódios e tentam acertar suas diferenças, além de, pasmem, estabelecerem as diferentes regras sociais daquele pequeno universo, como os horários de quietude, o uso das áreas comuns, os gastos com benfeitorias e até os limites dos trajes das piscinas (quando houver). Além disso, discutem contas e elegem síndicos, aqueles pequenos prefeitos que juram administrar honestamente os fundos em troca de isenção no pagamento da taxa condominial, aquela partilha estabelecida para enfrentar os gastos do pequeno universo.

Neste prédio donde digito estas mal traçadas linhas, não há nada disso. É um local onde o proprietário é único, mais especificamente uma ordem religiosa, e boa parte dos moradores pertencem a ela; metade, mais ou menos. Com isso, não há assembleia condominial, não há síndico, não há convenção, não há escolhas e votações, sendo todo o regramento baixado por decreto do magnificente sodalício. Mas a taxa há, e como há, principalmente levando-se em conta que tudo o que é de verba partilhada é usada para pagar um porteiro/pedreiro/zelador que é mais utilizado no convento da ordem do que no pobre edifício, além da manutenção do elevador e da água/luz comum. Só. E é cara como em conjuntos de gente grande.

A pergunta que fica é como nós lidamos com as questões que invariavelmente surgem do convívio, e esse é um enorme problema que não existe em lugares mais, digamos, comuns. Mais ainda: tratando-se de um prédio inteirinho de aluguel, é de se supor que haja tratativas diretas com o senhorio, o que faz com que consigamos deduzir a personalidade desta figura e nos previnamos de certas susceptibilidades. Só que a ordem é dirigida por uma mesa de xis componentes, com um prior à frente, que é eleita para mandatos de dois ou três anos. Isso causa um transtorno adicional: não se cria uniformidade na administração dos bens da ordem, para o bem e para o mal. Isso significa que, se por um lado há sempre a esperança de melhoras nos dias ruins, por outro se dá o exato vice-versa. Vivemos momentos de versa.

Por que digo isso? Porque na atual gestão anda muito difícil de se conseguir recorrer a quem quer que seja. Em outros tempos, bastava conversar com o porteiro para ele se encarregar de levar as demandas, isso quando ele mesmo não resolvia a querela. Ou então conseguíamos resolver as coisas por telefone, ainda que fosse para sermos enrolados. Era até possível se encaminhar ao gabinete do prior e conversar com ele em carne e osso, e, com isso, chorar as pitangas com quem de direito. Mas agora a coisa está um bocado diferente. O tal porteiro, em vista dos tempos difíceis, tira gentilmente (nem sempre) o corpo fora, restando conseguir uma audiência com vossa eminência, porque os assessores de seu gabinete pouco ou nada fazem, a não ser destilar sua arrogância. E olha que eram pessoas que trabalharam em outras gestões e, se não eram flores de candura, ao menos eram mais afáveis. Por mais justas que sejam as demandas, e excluídos casos especialíssimos, a conduta tem sido sempre parecida: uma escuta medianamente impaciente e a afirmação de que as regras estão firmemente estabelecidas e que mudanças não serão aceitas. Em caso de insatisfação, poderemos negociar as cláusulas do distrato. Isso apenas para um caso de pedido de conserto de uma infernal manilha de esgoto, que faz recender a merda o poço do elevador todo fim de tarde, quando, suponho, as atividades gástricas vão chegando ao final de sua novela diária. E, como esse, há muitos outros casos de respostas similares, que ocorreram em outras unidades, preferencialmente de não-membros da tal confraria, já que os membros se borram naturalmente, em qualquer ocasião. Não é a expressão da frase inicial desta postagem?

Não é só, entretanto, em um âmbito tão reduzido que tal fenômeno acontece, haja vista ao já cansativo ambiente de confronto que temos vivido em nosso meio social, algo que é notado por absolutamente todo mundo em Pindorama. Qualquer posição que você adote que redunde em apontar para causas sociais, já faz surgir o grito: "vai pra Cuba*"!!!

Eu, em particular, não tenho nada contra nem a favor de Cuba. Aliás, tenho sim. O rum nativo é ótimo, a banda do Buena Vista Social Club é uma das melhores em ritmos caribenhos e seus charutos são famosos. Um amigo me trouxe um há pouco tempo atrás, e estou esperando alguma oportunidade especial para fumá-lo em paz.

Na verdade, não sou tão alheio à realidade cubana quanto quero fazer crer. Sei de toda a transformação social movida pela educação e saúde do regime de Fidel, que os esquerdistas empedernidos gostam de papagaiar, e também sei das liberdades restritas que os direitistas bovinos arrotam com gozo. Em sinopse, entendo que ditaduras não são boas e que pressões exteriores também não são. Desta forma, penso que o grande erro do regime cubano está em não apostar na democracia a partir de algum momento, o que poderia fazer com que o sistema maturasse para uma experiência única (ou que fosse abandonado). Por outro lado, não consigo entender porque até hoje os embargos econômicos não foram levantados, já que quem sofre é o povo e não os governantes. Mas a cada vez que se fala em pobreza: vá pra Cuba. A cada vez que se fala de desigualdade social: vá pra Cuba. A cada vez que se fala de direitos de minorias: vá pra Cuba. A cada vez que se fala em educação e saúde deficiente: vá pra Cuba… não, aí não se fala.

Sabe o que é isso? Uma falácia. De belo nome, diga-se de passagem. É o ergo decedo, que, numa tradução livre, significa “então saia”, também conhecida como falácia do crítico traiçoeiro. Trata-se de uma falácia de dispersão e relevância que consiste em deslocar o foco de uma crítica realizada no interior de um grupo para uma exclusão desse membro. Falando menos complicadamente, o ergo decedo acontece quando alguém faz uma crítica no interior de um grupo voltada contra esse mesmo grupo. No exemplo do meu prédio, são os moradores; no de Cuba, são os brasileiros. Ao invés de se atacar o argumento da crítica, o que se faz é "expulsar" o membro que faz a crítica, daí seu curioso nome. É como se alguém não tivesse o direito de criticar o grupo pelo simples fato de pertencer a ele. Eu torço pelo Corinthians, então não posso falar mal do Corinthians. Eu sou filiado ao partido X, então não posso denunciar linhas de pensamento incorretas. Eu gosto do Pink Floyd, então jamais poderei dizer que tal música não me agrada. O crítico é tido como um traidor do movimento, e, portanto, torna-se um indesejável. O problema é que neste tipo de argumento falho deixa-se de contrapor proposições que podem ser plenamente validas. Não há ergo decedo quando o ataque é à crítica, e não ao crítico. Se o corpo diretivo disser que não consertará o cheiro fétido porque o projeto precisa de aprovação da prefeitura, pronto, está respondido. Notem como essa falácia é extremamente comum, e que tem uma boa quota de ad hominem junto dela.

Mas por que há quem queira dominar opiniões e estabelecer o que é um valor para um determinado grupo ao qual se pertença? Quem estabelece o que é justo e valioso para o pequeno edifício onde este escriba reside?

Quando falamos dessas coisas, pensamos no poder, e quando falamos em poder pensamos imediatamente em monarcas e presidentes, ou seja, os mandatários maiores. Mas temos essa impressão porque se trata da esfera mais externa de uma longa cadeia de camadas de poder. Sob um país gerido por um rei, há duques que comandam exércitos, marqueses que gerenciam fronteiras, condes que comandam regiões e barões que espalham influência pelo seu nicho social. Substitua por presidentes, generais, cônsules, governadores e prefeitos para termos uma equivalência aproximada nas repúblicas. Ainda assim, estamos falando de poderio formal, que não representa exatamente os átomos de poder. Estes ocorrem aí mesmo, dentro de sua casa.

Quando somos crianças, justamente por sermos ainda incapazes de administrar por si mesmos as nossas vidas, somos expostos a um sem número de ambientes e situações onde cabe a nós baixar as orelhas e obedecer. Por uma disposição não escrita, há uma hierarquia de poder onde você é o último a falar e o primeiro a apanhar. Seu irmão mais velho é investido de um pouco mais de privilégios, podendo ser nomeado seu tutor nas ausências dos pais. Em uma sociedade tipicamente ocidental e cristã, há ainda um acordo tácito que estabelece ser a última palavra pertencente ao pai. Toda a malha de poder de uma família gira em torno da autoridade paterna, in genere.

Acontece que este exercício não é inequívoco. Em determinadas circunstâncias, o menor dos meninos da casa também consegue manifestar alguma forma de poder, seja na forma de birra, ou de inconfidências, ou mesmo em uma sutil troca de favores. Desta forma, o poder não tem um dono, mas sempre está inserido em uma relação. Por isso, o pai que é dono do tacão de repente se vê nas mãos de um fedelho que testemunhou uma escapadela do genitor danadinho, fazendo com que se inverta a lógica da obediência. 

Idem se você, ainda criança, pensar-se na escola. Também aqui temos uma hierarquia bem definida: o diretor é a autoridade maior, seguido dos chefes de períodos e dos professores. Nesta escala, os últimos estão na base, mas na sala, um cosmos menor, estão no topo - eles ditam as regras aos alunos, dizendo a eles o que vão aprender, como devem se comportar, qual horário cumprir e assim sucessivamente. Do ponto de vista do professor, todos eles deveriam estar em uma mesma escala. Entretanto, pelos mais diferentes motivos, o professor tem mais deferência com alguns, e mais rigor com outros. É que, de uma forma ou de outra, os alunos também entram na luta pelo poder exercendo, como podem, sua influência sobre o mestre. É o caso dos bons alunos que servem de monitores na sua ausência, que dão o seu bom desempenho como moeda de troca para obter suas vantagens. E mesmo dentro da esfera mais básica, na relação entre alunos, também as relações de poder se desenvolvem sem uma hierarquia clara, citando como exemplo o que escrevi neste texto. Ou seja, bons alunos conseguem proteção dos maus alunos, que, por sua vez, ganham tarefas prontas dos bons. O movimento é full duplex, como dizemos em informática.

Até mesmo na mesa de um barzinho se pode constatar uma relação de poder no varejo. A decisão sobre o que será bebido, o local do encontro, a própria ideia do happy hour sempre partirá de alguém que quer ter apoio em sua decisão. Também será de alguém a proposta de que se rache o todo, no que pode haver a contraproposta de que cada um terá sua própria comanda. Ou seja, o poder não só se exerce nos microcosmos, mas também se estabelece a resistência a ele, mesmo que na forma de uma opinião contrária que busca angariar apoio.

Quem me dera tudo isso tivesse saído de minha cabeça, mas aqueles que estão mais antenados já sabem que se trata de itens da teoria de Michel Foucault, um dos mais brilhantes filósofos contemporâneos, fresco em nossa memória. É o que ele chamou de microfísica do poder. Em síntese apertadíssima, ele dizia que o poder acontece nas menores relações humanas, e não apenas nos níveis mais altos das hierarquias. Pelo contrário até. O poder é algo que se exerce em rede, não sendo um objeto que se pode possuir ou localizar.

Da forma que demonstrei acima, podemos perceber o quanto as relações de poder estão diluídas. Para Foucault, é a microfísica do poder, esse exercício miúdo das relações mais quotidianas, que explica o poder maior, aquele em quem logo pensamos quando usamos o termo. O poder está desde a casa, a escola, a quadra, o clube, com sua variação constante de polo, porque nada mais é do que uma estratégia. Ele não é um lugar, uma pessoa ou um papel social. Antes disso, é uma emanação que vem de todas as partes. Em alguns momentos, o poder é exercido como coerção, seja pela força, seja pelo convencimento, ou como atitude racional, onde as partes concordam que a relação deve ser da maneira que está delineada porque é vantajosa para ambas, mas de qualquer forma ele sempre está envolvido onde as pessoas precisam negociar suas posições, anseios, preferências. Percebam, em adição, que sempre haverá uma intenção no exercício do poder. Ninguém o pratica sem querer, como se fosse um mero instinto, assim como a obediência que, seja resignada ou conformada, também é consciente.

No final das contas, Foucault quer dizer que o poder é inerente às relações humanas, e, sendo a sociedade formada por camadas sobrepostas, como se fosse uma cebola, é preciso pensar que o cerne está lá no meião, e não na fina casquinha que fica por cima de tudo. Isso porque o poder não tem um dono, mas uma pessoa que o exerce, e outras sobre quem o poder é exercido. A esses, se não há o exercício, resta a resistência, que, ao fim e a cabo, é também um modo de colocar o poder em prática.

E a situação do meu prédio nada mais é do que uma aplicação das teorias de Foucault. Tomar um ergo decedo na cabeça nada mais é do que um dos métodos pelos quais uma parte quer obter a obediência da outra. Poderia ser uma maneira mais civilizada, cuja resistência não fosse o abandono de um pagante em dia do lugar, que procuro fazer cada vez mais. Contra o poder, usamos o poder. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Foucault é um dos énfants térribles da Filosofia do século XX. Costuma ter uma linguagem meio difícil, mas não chega a ser incompreensível. Recomendo o livro abaixo acerca do tema.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2012.

* Existe a variante Venezuela, mais recente.

Pessoas, por último, um recado: não baixem a guarda. No último mês, são três membros da família que morreram por conta da covid, sempre com o mesmo script: toma a primeira dose e esquece que ela não é poção mágica.

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