Já vimos várias vezes neste blog as dificuldades que a velha
Metafísica
tem em subsistir. Em eras onde as grandes explicações vêm das Ciências, que
possuem instrumentais e métodos cada vez mais poderosos, cabe a ela ser o
nascedouro das novas ideias e depois sair de cena (como eu falei neste
texto). Fora alguns conceitos de altíssimo nível de abstração, e mesmo
estes sem aqueeeeeeeeele destaque acadêmico, parece que o destino da pobre
Metafísica não é muito promissor. Passons,
as coisas são assim mesmo. Mas existe uma questão sua que não arrefece nunca,
que mexe com a cabeça de filósofos desde sempre e que a Ciência não consegue
dar explicações satisfatórias e definitivas. É a questão do tempo, aquela coisa
que envolve o que é, o que foi e o que será. O tempo é algo concreto e
mensurável ou é apenas uma abstração mental? É uma parte da nossa
subjetividade? É possível dizer o tamanho do tempo? Afinal, o que ele é? Sim, a
pergunta é tão complexa que existe uma área filosófica específica para ela: a
Filosofia do Tempo.
É evidente que a Ciência fala sobre o tempo. Segundos,
minutos, horas, dias, anos, séculos são medidas bem definidas, que são usadas
instrumentalmente para benefício dos próprios experimentos científicos. No caso
dos segundos, por exemplo, depois de tentar elaborar uma definição através do
fracionamento de dias específicos (1/31.556.925,9747 do tempo de translação da
Terra, começando às 12 horas do dia 04/01/1900), concluiu-se que, embora o
número seja espantoso, não fornecia a exatidão necessária às aplicações
científicas de altíssima precisão. A definição de segundo partiu, então, para
nível atômico. Um segundo passou a ser representado pela duração de
9.192.631.770 ciclos de radiação da onda eletromagnética na transição de dois
níveis do estado fundamental do césio 133 a 0 graus Kelvin. É um negócio
inexplicável para o contexto deste espaço, mas assumirei que é o suficiente
para a função a que se propõe.
Só que o conceito de tempo é tão mais amplo do que a mera
matematização de intervalos que, mesmo noções já consolidadas, como o espaço-tempo
einsteiniano, são altamente abstratas. Ao se tentar fazer uma representação
gráfica deste termo, sempre temos que contar com uma noção espacial. Afinal de
contas, a folha de papel está no plano do tangível. Eu, por exemplo, tento
imaginar as dimensões espaço-temporais como um cubo que desliza em uma linha:
Ora, direis, esta representação é de todo inadequada. E é
mesmo, mas é o que eu tenho para a janta. Ela é inteiramente espacial, já que
consigo representar as clássicas altura, largura e profundidade, mas somente
sugiro um deslocamento, outra característica espacial, e não temporal. Não há
nenhuma característica desse tipo no desenho, apenas a sugestão de que o tempo
modifica as coisas; no caso, a posição. Mas nada força que as coisas não
permaneçam inertes. O espaço-tempo também nos é sugerido como uma malha de
múltiplos pontos, um lençol entrelaçado ou uma grande redoma granulada, sempre
com o defeito de tentar nos apresentar, sem conseguir, uma interpretação de uma
dimensão que não ocupa espaço físico. O tempo, nesse sentido, é irrepresentável.
Apesar disso, a adição do eixo temporal aos planos espaciais
resolveu um monte de problemas da Física. Einstein percebeu que o espaço e o
tempo, apesar de ser algo completamente contraintuitivo, não são diferentes
entre si. Ou melhor, eles se influenciam mutuamente de forma a um não existir
sem o outro. Conhecemos as clássicas dimensões espaciais e a temporalidade como
coisas distintas, mas existe uma interação entre ambas de forma a que uma
interfira na outra. Agora pensem... Do mais distante limite do universo
observável até o quintal de nossa casa, o espaço está todo presente o tempo
todo. Não há uma única estrela que agora está em seu lugar enquanto outra não
está. O universo todo está aí. Sendo o espaço-tempo um contínuo, e estando o
espaço inteiro aí, o tempo também está. Seja presente, passado ou futuro, o
tempo acontece em um mesmo bloco. Passado, presente e futuro não são alijados
entre si, e coexistem.
(Pausa para respirar e pensar. Vou tomar um café e já
volto).
Dessa forma, a noção que temos do tempo é completamente
relativa à posição em que nos encontramos da imensa malha que entrelaça ambos. Não
tenho um exemplo bem construído que demonstre isso. O que pensei de melhor foi
nas distantes galáxias cuja luz demora bilhões de anos para chegar a nós. Elas
talvez nem existam mais, mas o fato é que elas existem para nós no momento em que chegam a nós, assim como demorará ainda
mais tempo para existir aos homenzinhos que habitam um desconhecido planeta,
além do nosso. O que é passado para a longínqua galáxia é presente para nós e
futuro para os verdes, tudo dependendo de nossa posição relativa.
Que coisa difícil de compreender, mas pasmem. Não é uma
visão completamente inédita, pelo menos no sentido de presença temporal. Aliás,
Santo Agostinho, já no século IV dC falava sobre um tempo todo presente, em sua
tentativa de definir o indefinível. Anteriormente, o grego Plotino já falava
sobre um tempo visto como um todo – a eternidade. Dividir o tempo em dias,
meses ou anos era condená-lo à incompreensão. De fato, examinar o tempo em seus
pedaços corresponde a analisá-lo em movimento, em mudança, em inconstância.
Cada fragmento é contingente, e não permite que se tenha o tempo como Ser. Nesse
sentido, o tempo é a “imagem móvel da eternidade”, um legítimo reflexo do Uno
que dá origem a todas as coisas que existem, diferentemente de um universo que
possua um ponto inicial. Se se quer analisar o tempo, é através do seu Ser que
devemos fazê-lo, do seu todo, da sua unidade: a eternidade.
Para Agostinho, o tempo é igualmente distinto da eternidade,
e só de lá conseguiríamos observá-lo. Como não estamos na eternidade, como Deus
está, vivemos o mesmíssimo problema de quem quer observar o planeta em que
vivemos. Como o faremos, se vivemos em seu interior? Somente quando Yuri
Gagarin se distanciou da superfície da Terra pode contemplar seu azul, sua
esfericidade, suas nuvens esparsas. É o mesmo com o tempo. Como nos
distanciaremos dele para apreciá-lo e compreendê-lo? Essa é uma das grandes
diferenciações entre o divino e o humano que Agostinho detecta: o homem vive no
tempo enquanto Deus vive na eternidade. No entanto, há uma resposta, segundo
ele. Passado e futuro são existentes, dados a memória e a expectativa, mas não
fazem sentido se não são pensados no presente. O presente se estende para o
passado e para o futuro, para trazer a si tudo o que se recorda e que se
espera, fazendo que tudo se concretize nele e que o tempo esteja completo em si,
desenhando uma das mais lindas alegorias filosóficas de toda a história: a
metáfora da música, que pode ser lida neste
meu texto.
Dessa forma, Santo Agostinho resolve a aporia aristotélica
do tempo: se este é sucessão, é impossível que um instante coexista com outro,
já que, neste caso, os dois momentos seriam, na verdade, um só, e seriam iguais
entre si. No entanto, como são diferentes, é impossível de se afirmar que haja
um só agora, mas é o que nos resta quando pensamos no tempo como linha
sucessória de passado, presente e futuro. Só o presente é concreto, mas ele
pode ser reduzido infinitesimalmente, como nos paradoxos de Zenon. Se o agora é
um só, então precisaria ser sempre igual a si mesmo, e o que temos,
empiricamente, é que ele não o é. Quando o bispo de Hipona coloca o agora na
mesma teia do que era, é e será, ele quebra essa cadeia, porque este agora está
na mesma folha elástica de qualquer outro momento. Tudo é presente.
Henry Bergson aprofundou a tese agostiniana observando quem pensa o presente. De fato, sem um
homem que o perceba, o tempo é um grande nada. E é essa subjetividade que torna
a percepção dos transcorrer das horas tão diferente de uma pessoa para outra. Como
afirmar que algo é rápido (rapidinha?) ou lento? Qual é o ponto exato em que a
tal rapidinha da piadinha que fiz deixa de sê-la para se transformar em uma,
digamos, mediazinha? Esta é uma questão absolutamente pessoal, algo ligado a
uma experiência do sujeito, e não nos ponteiros do relógio. Por isso, Bergson
entende o tempo como duração (durée),
e não como intervalo. A durée é o tempo em que uma consciência capta um momento
de vivência, e não pela sucessão de segundos e minutos.
Santo Agostinho usou a música para representar o tempo;
semelhantemente, Hume
o comparou a instrumentos musicais. Bergson lançou
mão dos novelos, e mesmo Einstein usou a metáfora do tecido para
especificar seu espaço-tempo. Notem como as tentativas de concretização do
tempo sempre recorrem à Estética,
e lhe dão caráter poético, belíssimos. Isso acontece porque é muito difícil de
se expressar o tempo, algo que, desde os primórdios da questão, é concedido ao
âmbito da intuição. Por isso, é com comparações que os filósofos tentam pôr a
claro suas tentativas. Mas, apesar de todas elas produzirem igualmente efeitos
sensíveis, ou justamente por isso, as respostas oferecidas não são de todo
convincentes. Que o diga John McTaggart, filósofo inglês que disse ser o tempo
uma percepção ilusória. Como ele chega a essa conclusão?
Ele pensa que há duas maneiras de se encarar o tempo, às
quais deu o nome de séries. A
primeira é exatamente aquela que percebemos: presente, passado e futuro. Como
nosso modo de percebê-los se dá através da sucessão de acontecimentos, temos a
sensação de uma mobilidade entre estes tempos, com eventos do passado se
mostrando cada vez mais distantes do ponto em que nos encontramos, ou projetos
do futuro se aproximando cada vez mais. É como, por exemplo, eu me recordo dos
tempos de garoto. Cada vez mais longínquos e enevoados na mente, parece que
ficam cada vez mais para trás, como se eu movesse meu presente em relação a
eles para mais longe. Idem com relação ao futuro: tenho ciência de que meu
destino é envelhecer, como qualquer um, e tenho sinais na minha pele e em meus
hábitos que registram isso, como se estivessem saindo de um lugar distante e se
tornando cada vez mais próximos.
A segunda série se dá em outros termos, embora também
possamos falar em três instâncias: o antes, o durante e o depois. A diferença é
que aqui a noção não é de mobilidade e distanciamento como na primeira série;
é de permanência, porque sempre há algo que acontece, com coisas que
aconteceram antes desta e coisas que acontecerão depois, sem que os
acontecimentos registrem as posições para nos dar referências. Não há que se
falar em mobilidade aqui. Para além do depois, há sempre mais e mais depois.
Para aquém do antes, há sempre mais e mais antes. E há sempre o instante, o
concomitante, indeterminável de se colocar em uma linha, como acontece com o
presente.
Colocadas as duas séries lado a lado, McTaggart diz que elas
são mutuamente excludentes, e, portanto, logicamente contraditórias. Por ser
sempre a sucessão de fatos, o tempo é transitório. Por ser sempre estruturado
da mesma forma, o tempo é permanente. Não é possível subsistir desta forma
incompatível, e, sendo assim, o tempo nada mais é que o engodo de nossa
subjetividade; ele não existe.
(É ele quem está falando, não eu).
Então é isso. A questão parece que permanecerá inesgotada
por mais um bom tempo (epa!), e não nos resta fazer muito além de esperar uma
resposta que nos convença. Bons tempos a todos!
Recomendação de filme:
É um documentário interessante, que começa com muita
potência, dando algumas opiniões sobre a natureza do tempo. É bem verdade que,
para quem quer se manter no tema, o mesmo se perde um pouco do meio para o fim,
quando se começa a tratar da velocidade do mundo contemporâneo, mas isso não
representa um desvio do tema, apenas um desejo meu, de que o tempo em si fosse
mantido no foco.
DUTRA, Adriana L. Quanto
tempo o tempo tem. Filme. Brasil: Inffinito, 2015. 76 min. Cor.
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