Olá!
Desta vez, a coisa estava beirando o insustentável. Não me
refiro a irritabilidade, mau humor constante e outras casmurrices, mas a
afecções físicas mesmo: uma enxaqueca insuportável, de dias, acompanhada de
palpitações, além da já usual azia daqueles que abusam do café. Chego à conclusão camoniana de que é preciso navegar, é preciso viver, ou não é preciso nem navegar, nem viver... tudo junto e misturado. Antes da
explosão, aproveito do fechar de olhos que a precede e peço o penico das férias
por uma semana, tempo suficiente para cultuar uma prática dantes tão frequente
e ora quase olvidada: a arte de dormir. É o que faço logo de estalo. Em
contraposição a uma média diária de seis horas, ofereço a Morfeu o sacrifício
do reconforto que se inicia às 21:00 de um dia para sair de seus domínios às
10:00 da manhã seguinte, sem nem ao menos as diabéticas interrupções para
alívio, causando espanto na patroa. Devia fazer mais de 20 anos que eu não
fazia uma puxada dessas.
Há quase dez anos que moro em um apartamento, o que me é
experiência inédita. Sempre morei em casa, várias delas; pequenas que fossem,
tinham quintais e jardins. Sinto falta disso, não só pela ausência de espaço
vital, mas também pela imensa seletividade de horas de sol, restritíssimas no
centro de São Paulo. Depois da maratona onírica, achei por bem ficar mais perto
do astro-rei, e resolvi subir a Serra da Mantiqueira mais uma vez, o que fiz da
mesma maneira incerta que relatei em outras oportunidades. Curiosamente, quanto
mais se achega às proximidades do Sol, mais frio se faz. Sim, a Ciência explica
isso, mas não deixa de existir um lado metafórico, algo como “quanto mais
perto, mais longe”.
O importante é que tudo se inicie, e desta vez a coisa se
deu pelo pequeno município de Monteiro Lobato, nome adotado para homenagear o
famoso escritor, possuidor de terras na então cidade de Buquira, seu antigo
nome.
Como é de se esperar, a cidade tem lojas de artesanato que se
espalham por todos os lados, tematizadas pelos personagens do célebre Sítio do
Picapau Amarelo. Logo na entrada da área urbana, já encontramos a loja da
Gisele, que, apesar da grande quantidade de bonecos “globais”, faz questão de
explicar que as ilustrações originais dos personagens são bastante diferentes.
Para melhor ilustrar, fui caçar em meus livros uma dessas
imagens mais antigas, o que demonstra o fato: a boneca Emília, para dar um
exemplo, tem cabelos curtos e escuros.
Mesmo lojas com comércio diversificado também procuram
vender seus artesanatos e basear suas decorações em motivos
“sitio-do-picapau-amarelenses”, como podemos ver na loja que tem lan house anexa...
... e nos anúncios dos cursos de artesanato. Cucas, sacis,
marqueses de Rabicó, viscondes de Sabugosa e Emílias. Emílias e mais Emílias,
de todas as formas e tamanhos.
Também o comércio central tem seus nomes afetados pelo
consagrado literato. Percebam, no exemplo abaixo, que não só a decoração, mas
os próprios nomes dos estabelecimentos utilizam referências à sua obra. Tem o
mercadinho Visconde, a doceria Urupês, a pastelaria da Cuca e o restaurante
Tia Nastácia, dentre outros. Cria clima, sem dúvida.
A praça central da cidade fica em um baixio, desvinculada da
igrejona típica, e congrega o grosso do comércio miúdo local, incluindo os bons
restaurantes de pratos típicos e o inevitável coreto.
Já que falei da igrejona, ela fica no alto de um outeiro, e
é dedicada a Nossa Senhora do Bom Sucesso, padroeira local.
A religiosidade não fica circunscrita unicamente às igrejas.
Ao lado do estádio municipal, bem próximo à entrada da cidade, temos um
conjunto elaborado pelo santeiro Francisco Ferreira, que é composto por uma
gruta que abriga uma fonte, um minúsculo apiário (não sei se proposital) e uma
imagem de Nossa Senhora de Lourdes encerrada em uma capelinha de vidro.
A gruta é cercada por uma pequena e bem arranjada pracinha,
onde adejam muitas, mas muitas borboletas. Trouxe um exemplo para vocês
observarem.
Uma particularidade do local são os Pereirões, enormes
bonecos com o feitio daqueles tão famosos de Olinda. Uma vez por mês, é
tradição que uma série deles saia pelas ruas para correr atrás das crianças,
que se espalham por toda parte em desabalada carreira. No Carnaval, a farra é
diária. Tivemos sorte de passar ao lado de um bar onde estava sendo feita a
manutenção de alguns deles.
Por fim, o Sítio do Picapau Amarelo. A proprietária do
imóvel garante ser o original, tendo em vista que aqui Monteiro Lobato tomou
inspiração para escrever seus livros. Fica à beira da assim chamada Rodovia do
Livro, que nasce na entrada urbana da cidade e desemboca em um lugarejo de
Caçapava. A sua entrada é identificada pela célebre figura do Jeca Tatu,
integrante do primeiro livro de contos do autor.
A proprietária é a dona Lúcia. Lúcia como era Lúcia o nome
da menina do narizinho arrebitado, que empresta seu apelido à primeira obra infantil
de Lobato. Seu avô adquiriu as terras do avô de Monteiro Lobato, segundo suas
informações. Há uma caricatura sua em uma das paredes da cozinha.
É uma senhora que luta para desvencilhar o sítio da imagem
global que mencionei logo atrás. Sua intenção não é recriar o ambiente das
filmagens do seriado, mas restabelecer o lugar que circundava Monteiro Lobato e
as referências que utilizou para inserir em sua obra. Assim como o sítio de
Dona Benta, também aqui temos o casarão com alpendre na entrada...
... com vários cômodos, alguns grandes para acolher as
reuniões de família ou acolher visitantes ilustres, lembrando se tratar de
membros da casta de sangue azul tupiniquim...
... e com os cômodos menores, onde repousam os visitantes,
e, no caso abaixo, é rememorado seu habitante mais célebre.
Há também o gigantesco quintal, equipado com o pomar, como
sói acontecer nessas propriedades. Nas obras de Monteiro, a jabuticabeira era
praticamente uma personagem. Hoje, há também um tanque de pedras para onde flui
uma fonte, e para onde quase fui instado a fugir, perseguido que fui por uma
caterva de gansos.
E há, em especial, o Reino das Águas Claras. Trata-se de um
riacho situado nos fundos do sítio, onde são admitidos banhos. É aqui onde
muitas das histórias do Sítio do Picapau Amarelo tiveram pano de fundo,
começando desde a primeira obra: o lugar onde se encontravam os “peixinhos de
olhos arregalados”, e onde a pequena Narizinho contraiu casamento com o seu
príncipe Escamado.
Neste mesmo rio, uma cachoeirinha repleta de pedras faz
encosto para molhar as costas. Realmente, uma breve nostalgia bate na
consciência da gente, mas a patroa estava quase aos prantos, emocionada com o
ambiente tão propalado na infância.
Dona Lúcia tem uma tarefa hercúlea. Há duas perguntas que
não cessam: onde estão os personagens do Sítio? É aqui que foram feitas as
filmagens? Dona Lúcia, sem muita paciência, explica que o propósito não é fazer
um parque temático, mas relembrar o ambiente original da obra de Lobato, e que
as filmagens foram feitas no Rio de Janeiro, uma boa centena de quilômetros
mais para frente. Se há algum personagem legítimo, que existiu de fato, foi só
Tia Nastácia, como pode ser visto nesta foto:
Ela conversou conosco por horas, e, no meio tempo, pudemos
observar o fenômeno acontecendo: as pessoas chegam no sítio e ficam
decepcionadas, buscando no imaginário os feitios globais, que não existem. O
antídoto, para dona Lúcia, está na estante de livros que fica logo na entrada
da casa – uma biblioteca onde praticamente toda obra lobatiana está
representada. Se as pessoas parassem por um pouco de tempo e as lessem – à
sombra de uma das inúmeras árvores ou esticado nas poltronas abundantes da casa
– poderiam absorver as histórias por si mesmas, e não pelo olhar pré-fabricado
de uma emissora de tevê. Por isso mesmo, ela inseriu no verso da placa de
entrada do Sítio os seguintes dizeres:
É inevitável que este texto verse sobre o Monteiro Lobato que
dá nome à cidade. Parei um pouco para pensar se já é possível contestar se o
seu Zé Bento é ainda o mais conhecido escritor de histórias infantis do Brasil,
mas creio que não. Se fizermos uma enquete do tipo “primeira marca que vem à
cabeça”, deve ocorrer uma certa goleada a favor do patrono destas plagas e,
embora os resistentes da cidade possam fazer beicinho, isso se deve em boa
parte às produções da rede Globo.
A César o que é de César. Do ponto de vista estritamente
técnico, tudo o que essa emissora faz é de primeira linha. E não é diferente
com relação às suas versões do Sítio. Acompanhei um pouco mais de perto a
versão da década de 70, por motivos óbvios, sendo que a mais recente, que
revelou a atriz Isabelle Drummond para o mundo, conheci só de propagandas. Posso
dizer que as histórias foram razoavelmente bem conduzidas e interpretadas, e,
apesar da quantidade de enxertos, entendo que tratavam as crianças com
respeito. Basta que se veja o naipe da galera que consta do elenco musical:
Dori e Dorival Caymmi, Radamés Gnatalli, Ivan Lins, Chico Buarque, Gilberto
Gil, Jards Macalé e tantos outros. A consequência natural foi a criação de
derivados comerciais – roupas, discos, histórias em quadrinhos e bonecas,
muitas e muitas bonecas. É neste ponto que uma contestação é válida, porque a
ideia de Sítio do Picapau Amarelo se desvincula de Monteiro Lobato e vai parar
nas mãos dos roteiristas e publicitários da poderosa vênus platinada. O
simulacro de Sítio passa a ser o Sítio de verdade, o da Emília multicolorida; o
Sítio originário, da boneca de trapo e do sabugo escavocado, fica revestido de
anacronismo, parecendo ele mesmo a cópia malfeita, como já nos ensinava
Baudrillard, como eu mesmo esmiucei há pouco tempo. Leiam que vocês vão
entender direitinho.
Mas não é exatamente sobre isso que eu queria falar. Nos
tempos em que meus filhos eram crianças, eu gostava de lhes contar histórias.
Não se tratava daquela cena clássica da mãe lendo um livro à beira da cama para
a criança dormir, mas de uma leitura interpretada, para ser ouvida e vista bem
acordado. Então eu reunia a prole na cozinha de estar* e começava minha
pantomima. Em um desses momentos, resolvi fazer uma série Monteiro Lobato. Fui
à biblioteca do bairro e peguei o primeiro livro: Reinações de Narizinho. E assim foi se sucedendo. Não fiz a
bibliografia completa, mas abrangi uma boa parte da mesma. E os rebentos se
interessavam, riam, perguntavam o que significavam aquelas palavras estranhas,
o que eram aqueles objetos desconhecidos, do tipo monjolo, gamela, cocho, tal e
coisa. No final das contas, era bastante didático, as crianças se divertiam e
eu também.
Só que, nos últimos tempos, essas leituras têm sido
contestadas com certa veemência. O eixo: Monteiro Lobato seria racista. Vamos
com calma nessa hora porque há muitas placas tectônicas em rota de colisão sob
a paisagem.
Em primeiro lugar, é preciso ser justo. Monteiro Lobato não
está nos altares da literatura nacional por suas posições políticas, mas por
seu talento. Portanto, precisamos começar estabelecendo o que é uma posição
legitimamente ética: só nos interessa a conduta pública de um ator social ou
também é preciso compreender suas posições privadas? Tudo depende de quem o
observa.
Vamos no exemplo mais clássico possível: o do semáforo
vermelho. Em âmbito público, não importa se o faço por prazer em cumprir a lei,
se o faço furioso, enfadado, impaciente, se eu xingo, se eu rosno. O que
importa é que eu pare no semáforo fechado. A lei não existe para ser simpática
a indivíduos, mas para regular o mecanismo social. Tanto que nenhum guarda lhe
multará se você estiver com cara de bunda no semáforo, nem há radar que detecte
palavrões; a multa só virá se você avançar no farol vermelho.
No alcance privado, a coisa muda, e muito. Suponha que você
tenha filhos e que eles estejam no carro no momento de seus esgares e
vociferações. Aqui, não estamos falando de atendimentos às limitações sociais,
mas de formação de personalidades. Ao expor, ainda que no âmbito privado, nosso
desagrado com os ditames da lei, temos a responsabilidade de incitar valores nos
pequenos. Eles podem se tornar igualmente reclamões, ou, o que é pior,
ultrapassar esse limite socialmente aceitável para transgredi-lo. É muito
complicado fazê-lo deliberadamente.
O segundo ponto é o seguinte: como nos situamos diante de
uma circunstância discriminatória? É um exercício de alteridade dos mais
difíceis, porque por mais que tenhamos capacidade para nos colocar no lugar do
outro, nunca teremos a exata dimensão do seu sofrimento. O racismo tem sido
combatido já há um bom tempo, mas ele persiste, ainda que cada vez mais no
mesmíssimo campo privado que mencionei no exemplo do semáforo. Aqueles que como
eu são descendentes de europeus e outras etnias brancas temos dificuldade de
sentir na pele o que é ser barrado na portaria de todos os prédios em que
formos entrar, e só termos o acesso franqueado após perguntas e apresentações
de documentos. Sabemos que cada vez mais temos que cadastrar nossos nomes e
fotos, além de portar crachás provisórios, mas também sabemos muito bem que
isso não acontece por nossa causa. Não fazemos parte da camada barrada, e
aceitamos essas imposições única e exclusivamente porque desejamos que certas pessoas
tenham a cancela fechada, por generalização.
Talvez seja possível (ainda que insuficiente) traçar
analogias. Seja um ateu, por exemplo. As portas vão estar mais enferrujadas
para abrir se você declarar essa opção. Ateus até hoje carregam a pecha de não
ter limites morais, o que, em tese, só seria possível pela subordinação a uma
divindade qualquer. Eles podem declarar o respeito à lei como sua base moral,
ou aos costumes socialmente edificados, mas há aquele velho pé atrás. Pronto.
Idem para os negros, para os gays, para quem quer que tenha uma vírgula a
arrastar atrás de si.
Digo tudo isso porque, se por um lado podemos relativizar a
questão racial em Monteiro Lobato, por outro temos que tentar compreender a
quem essa mesma questão afeta. O escritor em questão é indefensavelmente
racista no plano pessoal, como era escancaradamente racista toda a sociedade da
época, recém saída do escravagismo oitocentista. Lobato mantinha estreita
comunicação com eméritos eugenistas como Renato Kehl e Arthur Neiva, e era ele
próprio membro da Sociedade Eugênica de São Paulo, e a recente descoberta de
uma correspondência na qual elogia a Ku-Klux-Klan arrepia os cabelos do mais
leal dos defensores.
Tudo isso está na esfera privada de sua vida. Será que o
mesmo transparece em sua obra? Há três estratos, dentre tantos que eu poderia
trazer, que quero trazer para enriquecer o debate:
1. No livro Caçadas de Pedrinho, bem como em outros da
série, a personagem Tia Nastácia é tratada, no mais das vezes pela boquirrota
Emília, de “macaca de carvão” ou “negra beiçuda”. São tratamentos
desrespeitosos, sem dúvida, mas prontamente condenados pelos outros habitantes
do Sítio. Além disso, no mesmo livro, o episódio final nos mostra os membros
todos montados a cavalo no rinoceronte Quindim, inclusive Tia Nastácia, que
responde à estupefação de Dona Benta que “nego também é gente”.
2. O conto Negrinha tem sido bastante contestado pelo fato
de mostrar um tratamento muito desumano à protagonista da história. Não
compreendo, sinceramente, a crítica. A personagem, no decorrer do conto, toma
consciência de sua humanidade, o que é negado à toda a comunidade negra no
período em que foi escrito, de forma praticamente explícita.
3. Ao personagem Jeca Tatu, do conto Urupês (do livro
homônimo) cabe uma crítica extremamente corrosiva. Caboclo, é tido como
indolente e “parasita da terra”, desabituado ao trabalho e conformado com a
condição de miserável, e fica nas entrelinhas a impressão de que estas
características são fruto de sua miscigenação. Anos mais tarde, Monteiro Lobato
revê sua posição, em especial por conta das constatações de que a debilidade do
trabalhador rural se deve às más condições sanitárias em que vive. A partir daí
passa a adotar uma posição de denúncia do descaso governamental com a questão
do saneamento básico e assistência médica.
Percebam, portanto, como flutua o Lobato, e como em sua
postura pública podemos imbricar uma série de paradoxos, de ambiguidades, de
contradições, de antagonismos, de ambivalências, de rotas de colisão, de
desencontros e, especialmente, de transitoriedade. Monteiro Lobato parece dar
espelho a uma sociedade que se transforma e que ainda se choca com a mudança em
sua estrutura. Devemos lembrar que a abolição tirou o negro da senzala (onde
era cativo, mas tutelado) para colocá-lo na favela (onde é livre, mas
desassistido), e que a imagem da elite não mudou um trisco sequer, como se
fosse um milagre. Se até hoje discutimos sobre quotas, sobre apropriação
cultural e outros que-tais, é sinal que a questão ainda hoje não está bem
acomodada. Quando eu era jovem, para dar um exemplo, havia poucos atores negros
no Brasil; galãs, nenhum. Hoje, encontramos principalmente atrizes negras
protagonizando histórias, como Taís Araújo, Isabel Fillardis e Sheron Menezes,
o que parece bom, mas que esconde outro viés, o sexista – são protagonistas
porque não faz mais diferença a cor ou por que atendem a um padrão feminino de
beleza? A porta que se abre tem a ver com a cor mesmo ou com a sensualidade? Por
que, ao contrário das atrizes, os atores negros não são ainda os galãs das
novelas? O mesmo se observa no padrão nipônico: Sabrina Sato, Giovanna Tominaga
e Daniele Suzuki também atendem a um padrão de beleza que exclui os atores de
origem asiática. Tem algum japinha ator do mainstream
no Brasil? Eu não conheço, sério.
É nisso que eu retorno ao segundo ponto. Não tenho o
parâmetro exato, eu, branco retinto, do que ofende os negros; por isso mesmo, defender-me-ei
da tendência hodierna de considerar tudo o que é contestação como um mero
mi-mi-mi. E com isso preciso colocar minha opinião à prova, porque haverá quem
ache que estou defendendo o autor, portanto sou racista; haverá quem ache que
eu estou contestando o autor, portanto sou censor; e haverá quem ache que estou
sobre o muro, portanto sou isentão. Mas o fato é que entendo que, se escrita
hoje, a obra teria pontos a serem guerreados, mas que não há como avaliá-la com
a mínima coerência pegando-a como texto puro, sem colocá-la em contexto, o que
seria a grande pedra de toque para ainda mantê-la válida. Em primeiro lugar,
para demonstrar a diferença entre a vida pública e privada. Em segundo, para
que se compreenda como os processos sociais não se movimentam de imediato. Em
terceiro, para que entendamos como se deu a passagem do imediato pós-abolição
aos dias de hoje. Em quarto, para que entendamos que a discriminação continua a
se arrastar mesmo que não percebamos, e como ela se articula em diferentes
mecanismos, como é a dicotomia racismo-sexismo que citei acima. E, finalmente,
para que não se desperdicem obras de talento por conta de escorregadas do autor
sob uma ótica extemporânea. É até mesmo didático nas mãos de um professor
talentoso.
Recomendações de leitura:
Ler é a melhor maneira de identificar tudo aquilo que se
fala sobre Monteiro Lobato. Vou recomendar três obras para formar esse
arcabouço.
O primeiro é o mais citado, por estar disponível na rede
pública de ensino.
LOBATO, Monteiro. Caçadas
de Pedrinho. São Paulo: Brasiliense, 1980.
Já no segundo, o interesse está na maneira com a qual a
personagem Tia Nastácia é tratada de maneira diametralmente oposta aos
despeitos que a boneca Emília comete.
--------. A Reforma da
Natureza. São Paulo: Brasiliense, 1977.
Finalmente, foi lançada há poucos anos uma coletânea
completa dos contos de Monteiro Lobato, incluindo os citados Urupês e Negrinha.
--------. Contos
Completos. São Paulo: Azul, 2014.
* Explico o termo. A casa em que morávamos era pequena. Na
verdade, seu projeto inicial era o de um sobrado, aí sim amplo, com três
quartos e banheiro na parte de cima, enquanto o andar de baixo era
equanimemente dividido entre sala e cozinha, devidamente assessorados por
despensa e outro banheiro. Como o orçamento era medíocre, mandamos construir a
parte de baixo e mudamos assim mesmo, arrastando uma dívida que levou anos a
fio para ser paga, e que tem suas consequências psicológicas até hoje.
Inicialmente, dividimos a sala com um tabique para fazer as vezes de quarto,
que, com o crescimento das crianças, revelou-se insuficiente. O que restava
ainda de sala virou outro quarto, com sofá e TV sendo acomodados em um
quadrante da cozinha, que era italianamente grande, criando um ambiente à
parte, mas integrado, dada a ausência de paredes. Deu certo, mas não adiantava
tocar as crianças da cozinha para a sala – elas permaneciam na cozinha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário