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quarta-feira, 14 de junho de 2017

Navegar é preciso viver - 1ª ancoragem: Monteiro Lobato (cidade) e as discussões sobre a obra de Monteiro Lobato (autor)

Olá!


Desta vez, a coisa estava beirando o insustentável. Não me refiro a irritabilidade, mau humor constante e outras casmurrices, mas a afecções físicas mesmo: uma enxaqueca insuportável, de dias, acompanhada de palpitações, além da já usual azia daqueles que abusam do café. Chego à conclusão camoniana de que é preciso navegar, é preciso viver, ou não é preciso nem navegar, nem viver... tudo junto e misturado. Antes da explosão, aproveito do fechar de olhos que a precede e peço o penico das férias por uma semana, tempo suficiente para cultuar uma prática dantes tão frequente e ora quase olvidada: a arte de dormir. É o que faço logo de estalo. Em contraposição a uma média diária de seis horas, ofereço a Morfeu o sacrifício do reconforto que se inicia às 21:00 de um dia para sair de seus domínios às 10:00 da manhã seguinte, sem nem ao menos as diabéticas interrupções para alívio, causando espanto na patroa. Devia fazer mais de 20 anos que eu não fazia uma puxada dessas.

Há quase dez anos que moro em um apartamento, o que me é experiência inédita. Sempre morei em casa, várias delas; pequenas que fossem, tinham quintais e jardins. Sinto falta disso, não só pela ausência de espaço vital, mas também pela imensa seletividade de horas de sol, restritíssimas no centro de São Paulo. Depois da maratona onírica, achei por bem ficar mais perto do astro-rei, e resolvi subir a Serra da Mantiqueira mais uma vez, o que fiz da mesma maneira incerta que relatei em outras oportunidades. Curiosamente, quanto mais se achega às proximidades do Sol, mais frio se faz. Sim, a Ciência explica isso, mas não deixa de existir um lado metafórico, algo como “quanto mais perto, mais longe”.

O importante é que tudo se inicie, e desta vez a coisa se deu pelo pequeno município de Monteiro Lobato, nome adotado para homenagear o famoso escritor, possuidor de terras na então cidade de Buquira, seu antigo nome.


Como é de se esperar, a cidade tem lojas de artesanato que se espalham por todos os lados, tematizadas pelos personagens do célebre Sítio do Picapau Amarelo. Logo na entrada da área urbana, já encontramos a loja da Gisele, que, apesar da grande quantidade de bonecos “globais”, faz questão de explicar que as ilustrações originais dos personagens são bastante diferentes.


Para melhor ilustrar, fui caçar em meus livros uma dessas imagens mais antigas, o que demonstra o fato: a boneca Emília, para dar um exemplo, tem cabelos curtos e escuros.


Mesmo lojas com comércio diversificado também procuram vender seus artesanatos e basear suas decorações em motivos “sitio-do-picapau-amarelenses”, como podemos ver na loja que tem lan house anexa...


... e nos anúncios dos cursos de artesanato. Cucas, sacis, marqueses de Rabicó, viscondes de Sabugosa e Emílias. Emílias e mais Emílias, de todas as formas e tamanhos.


Também o comércio central tem seus nomes afetados pelo consagrado literato. Percebam, no exemplo abaixo, que não só a decoração, mas os próprios nomes dos estabelecimentos utilizam referências à sua obra. Tem o mercadinho Visconde, a doceria Urupês, a pastelaria da Cuca e o restaurante Tia Nastácia, dentre outros. Cria clima, sem dúvida.


A praça central da cidade fica em um baixio, desvinculada da igrejona típica, e congrega o grosso do comércio miúdo local, incluindo os bons restaurantes de pratos típicos e o inevitável coreto.


Já que falei da igrejona, ela fica no alto de um outeiro, e é dedicada a Nossa Senhora do Bom Sucesso, padroeira local.


A religiosidade não fica circunscrita unicamente às igrejas. Ao lado do estádio municipal, bem próximo à entrada da cidade, temos um conjunto elaborado pelo santeiro Francisco Ferreira, que é composto por uma gruta que abriga uma fonte, um minúsculo apiário (não sei se proposital) e uma imagem de Nossa Senhora de Lourdes encerrada em uma capelinha de vidro.


A gruta é cercada por uma pequena e bem arranjada pracinha, onde adejam muitas, mas muitas borboletas. Trouxe um exemplo para vocês observarem.


Uma particularidade do local são os Pereirões, enormes bonecos com o feitio daqueles tão famosos de Olinda. Uma vez por mês, é tradição que uma série deles saia pelas ruas para correr atrás das crianças, que se espalham por toda parte em desabalada carreira. No Carnaval, a farra é diária. Tivemos sorte de passar ao lado de um bar onde estava sendo feita a manutenção de alguns deles.


Por fim, o Sítio do Picapau Amarelo. A proprietária do imóvel garante ser o original, tendo em vista que aqui Monteiro Lobato tomou inspiração para escrever seus livros. Fica à beira da assim chamada Rodovia do Livro, que nasce na entrada urbana da cidade e desemboca em um lugarejo de Caçapava. A sua entrada é identificada pela célebre figura do Jeca Tatu, integrante do primeiro livro de contos do autor.


A proprietária é a dona Lúcia. Lúcia como era Lúcia o nome da menina do narizinho arrebitado, que empresta seu apelido à primeira obra infantil de Lobato. Seu avô adquiriu as terras do avô de Monteiro Lobato, segundo suas informações. Há uma caricatura sua em uma das paredes da cozinha.


É uma senhora que luta para desvencilhar o sítio da imagem global que mencionei logo atrás. Sua intenção não é recriar o ambiente das filmagens do seriado, mas restabelecer o lugar que circundava Monteiro Lobato e as referências que utilizou para inserir em sua obra. Assim como o sítio de Dona Benta, também aqui temos o casarão com alpendre na entrada...


... com vários cômodos, alguns grandes para acolher as reuniões de família ou acolher visitantes ilustres, lembrando se tratar de membros da casta de sangue azul tupiniquim...


... e com os cômodos menores, onde repousam os visitantes, e, no caso abaixo, é rememorado seu habitante mais célebre.


Há também o gigantesco quintal, equipado com o pomar, como sói acontecer nessas propriedades. Nas obras de Monteiro, a jabuticabeira era praticamente uma personagem. Hoje, há também um tanque de pedras para onde flui uma fonte, e para onde quase fui instado a fugir, perseguido que fui por uma caterva de gansos.


E há, em especial, o Reino das Águas Claras. Trata-se de um riacho situado nos fundos do sítio, onde são admitidos banhos. É aqui onde muitas das histórias do Sítio do Picapau Amarelo tiveram pano de fundo, começando desde a primeira obra: o lugar onde se encontravam os “peixinhos de olhos arregalados”, e onde a pequena Narizinho contraiu casamento com o seu príncipe Escamado.


Neste mesmo rio, uma cachoeirinha repleta de pedras faz encosto para molhar as costas. Realmente, uma breve nostalgia bate na consciência da gente, mas a patroa estava quase aos prantos, emocionada com o ambiente tão propalado na infância.


Dona Lúcia tem uma tarefa hercúlea. Há duas perguntas que não cessam: onde estão os personagens do Sítio? É aqui que foram feitas as filmagens? Dona Lúcia, sem muita paciência, explica que o propósito não é fazer um parque temático, mas relembrar o ambiente original da obra de Lobato, e que as filmagens foram feitas no Rio de Janeiro, uma boa centena de quilômetros mais para frente. Se há algum personagem legítimo, que existiu de fato, foi só Tia Nastácia, como pode ser visto nesta foto:


Ela conversou conosco por horas, e, no meio tempo, pudemos observar o fenômeno acontecendo: as pessoas chegam no sítio e ficam decepcionadas, buscando no imaginário os feitios globais, que não existem. O antídoto, para dona Lúcia, está na estante de livros que fica logo na entrada da casa – uma biblioteca onde praticamente toda obra lobatiana está representada. Se as pessoas parassem por um pouco de tempo e as lessem – à sombra de uma das inúmeras árvores ou esticado nas poltronas abundantes da casa – poderiam absorver as histórias por si mesmas, e não pelo olhar pré-fabricado de uma emissora de tevê. Por isso mesmo, ela inseriu no verso da placa de entrada do Sítio os seguintes dizeres:


É inevitável que este texto verse sobre o Monteiro Lobato que dá nome à cidade. Parei um pouco para pensar se já é possível contestar se o seu Zé Bento é ainda o mais conhecido escritor de histórias infantis do Brasil, mas creio que não. Se fizermos uma enquete do tipo “primeira marca que vem à cabeça”, deve ocorrer uma certa goleada a favor do patrono destas plagas e, embora os resistentes da cidade possam fazer beicinho, isso se deve em boa parte às produções da rede Globo.

A César o que é de César. Do ponto de vista estritamente técnico, tudo o que essa emissora faz é de primeira linha. E não é diferente com relação às suas versões do Sítio. Acompanhei um pouco mais de perto a versão da década de 70, por motivos óbvios, sendo que a mais recente, que revelou a atriz Isabelle Drummond para o mundo, conheci só de propagandas. Posso dizer que as histórias foram razoavelmente bem conduzidas e interpretadas, e, apesar da quantidade de enxertos, entendo que tratavam as crianças com respeito. Basta que se veja o naipe da galera que consta do elenco musical: Dori e Dorival Caymmi, Radamés Gnatalli, Ivan Lins, Chico Buarque, Gilberto Gil, Jards Macalé e tantos outros. A consequência natural foi a criação de derivados comerciais – roupas, discos, histórias em quadrinhos e bonecas, muitas e muitas bonecas. É neste ponto que uma contestação é válida, porque a ideia de Sítio do Picapau Amarelo se desvincula de Monteiro Lobato e vai parar nas mãos dos roteiristas e publicitários da poderosa vênus platinada. O simulacro de Sítio passa a ser o Sítio de verdade, o da Emília multicolorida; o Sítio originário, da boneca de trapo e do sabugo escavocado, fica revestido de anacronismo, parecendo ele mesmo a cópia malfeita, como já nos ensinava Baudrillard, como eu mesmo esmiucei há pouco tempo. Leiam que vocês vão entender direitinho.

Mas não é exatamente sobre isso que eu queria falar. Nos tempos em que meus filhos eram crianças, eu gostava de lhes contar histórias. Não se tratava daquela cena clássica da mãe lendo um livro à beira da cama para a criança dormir, mas de uma leitura interpretada, para ser ouvida e vista bem acordado. Então eu reunia a prole na cozinha de estar* e começava minha pantomima. Em um desses momentos, resolvi fazer uma série Monteiro Lobato. Fui à biblioteca do bairro e peguei o primeiro livro: Reinações de Narizinho. E assim foi se sucedendo. Não fiz a bibliografia completa, mas abrangi uma boa parte da mesma. E os rebentos se interessavam, riam, perguntavam o que significavam aquelas palavras estranhas, o que eram aqueles objetos desconhecidos, do tipo monjolo, gamela, cocho, tal e coisa. No final das contas, era bastante didático, as crianças se divertiam e eu também.

Só que, nos últimos tempos, essas leituras têm sido contestadas com certa veemência. O eixo: Monteiro Lobato seria racista. Vamos com calma nessa hora porque há muitas placas tectônicas em rota de colisão sob a paisagem.
Em primeiro lugar, é preciso ser justo. Monteiro Lobato não está nos altares da literatura nacional por suas posições políticas, mas por seu talento. Portanto, precisamos começar estabelecendo o que é uma posição legitimamente ética: só nos interessa a conduta pública de um ator social ou também é preciso compreender suas posições privadas? Tudo depende de quem o observa.

Vamos no exemplo mais clássico possível: o do semáforo vermelho. Em âmbito público, não importa se o faço por prazer em cumprir a lei, se o faço furioso, enfadado, impaciente, se eu xingo, se eu rosno. O que importa é que eu pare no semáforo fechado. A lei não existe para ser simpática a indivíduos, mas para regular o mecanismo social. Tanto que nenhum guarda lhe multará se você estiver com cara de bunda no semáforo, nem há radar que detecte palavrões; a multa só virá se você avançar no farol vermelho.

No alcance privado, a coisa muda, e muito. Suponha que você tenha filhos e que eles estejam no carro no momento de seus esgares e vociferações. Aqui, não estamos falando de atendimentos às limitações sociais, mas de formação de personalidades. Ao expor, ainda que no âmbito privado, nosso desagrado com os ditames da lei, temos a responsabilidade de incitar valores nos pequenos. Eles podem se tornar igualmente reclamões, ou, o que é pior, ultrapassar esse limite socialmente aceitável para transgredi-lo. É muito complicado fazê-lo deliberadamente.

O segundo ponto é o seguinte: como nos situamos diante de uma circunstância discriminatória? É um exercício de alteridade dos mais difíceis, porque por mais que tenhamos capacidade para nos colocar no lugar do outro, nunca teremos a exata dimensão do seu sofrimento. O racismo tem sido combatido já há um bom tempo, mas ele persiste, ainda que cada vez mais no mesmíssimo campo privado que mencionei no exemplo do semáforo. Aqueles que como eu são descendentes de europeus e outras etnias brancas temos dificuldade de sentir na pele o que é ser barrado na portaria de todos os prédios em que formos entrar, e só termos o acesso franqueado após perguntas e apresentações de documentos. Sabemos que cada vez mais temos que cadastrar nossos nomes e fotos, além de portar crachás provisórios, mas também sabemos muito bem que isso não acontece por nossa causa. Não fazemos parte da camada barrada, e aceitamos essas imposições única e exclusivamente porque desejamos que certas pessoas tenham a cancela fechada, por generalização.

Talvez seja possível (ainda que insuficiente) traçar analogias. Seja um ateu, por exemplo. As portas vão estar mais enferrujadas para abrir se você declarar essa opção. Ateus até hoje carregam a pecha de não ter limites morais, o que, em tese, só seria possível pela subordinação a uma divindade qualquer. Eles podem declarar o respeito à lei como sua base moral, ou aos costumes socialmente edificados, mas há aquele velho pé atrás. Pronto. Idem para os negros, para os gays, para quem quer que tenha uma vírgula a arrastar atrás de si.

Digo tudo isso porque, se por um lado podemos relativizar a questão racial em Monteiro Lobato, por outro temos que tentar compreender a quem essa mesma questão afeta. O escritor em questão é indefensavelmente racista no plano pessoal, como era escancaradamente racista toda a sociedade da época, recém saída do escravagismo oitocentista. Lobato mantinha estreita comunicação com eméritos eugenistas como Renato Kehl e Arthur Neiva, e era ele próprio membro da Sociedade Eugênica de São Paulo, e a recente descoberta de uma correspondência na qual elogia a Ku-Klux-Klan arrepia os cabelos do mais leal dos defensores.

Tudo isso está na esfera privada de sua vida. Será que o mesmo transparece em sua obra? Há três estratos, dentre tantos que eu poderia trazer, que quero trazer para enriquecer o debate:

1. No livro Caçadas de Pedrinho, bem como em outros da série, a personagem Tia Nastácia é tratada, no mais das vezes pela boquirrota Emília, de “macaca de carvão” ou “negra beiçuda”. São tratamentos desrespeitosos, sem dúvida, mas prontamente condenados pelos outros habitantes do Sítio. Além disso, no mesmo livro, o episódio final nos mostra os membros todos montados a cavalo no rinoceronte Quindim, inclusive Tia Nastácia, que responde à estupefação de Dona Benta que “nego também é gente”.

2. O conto Negrinha tem sido bastante contestado pelo fato de mostrar um tratamento muito desumano à protagonista da história. Não compreendo, sinceramente, a crítica. A personagem, no decorrer do conto, toma consciência de sua humanidade, o que é negado à toda a comunidade negra no período em que foi escrito, de forma praticamente explícita.

3. Ao personagem Jeca Tatu, do conto Urupês (do livro homônimo) cabe uma crítica extremamente corrosiva. Caboclo, é tido como indolente e “parasita da terra”, desabituado ao trabalho e conformado com a condição de miserável, e fica nas entrelinhas a impressão de que estas características são fruto de sua miscigenação. Anos mais tarde, Monteiro Lobato revê sua posição, em especial por conta das constatações de que a debilidade do trabalhador rural se deve às más condições sanitárias em que vive. A partir daí passa a adotar uma posição de denúncia do descaso governamental com a questão do saneamento básico e assistência médica.

Percebam, portanto, como flutua o Lobato, e como em sua postura pública podemos imbricar uma série de paradoxos, de ambiguidades, de contradições, de antagonismos, de ambivalências, de rotas de colisão, de desencontros e, especialmente, de transitoriedade. Monteiro Lobato parece dar espelho a uma sociedade que se transforma e que ainda se choca com a mudança em sua estrutura. Devemos lembrar que a abolição tirou o negro da senzala (onde era cativo, mas tutelado) para colocá-lo na favela (onde é livre, mas desassistido), e que a imagem da elite não mudou um trisco sequer, como se fosse um milagre. Se até hoje discutimos sobre quotas, sobre apropriação cultural e outros que-tais, é sinal que a questão ainda hoje não está bem acomodada. Quando eu era jovem, para dar um exemplo, havia poucos atores negros no Brasil; galãs, nenhum. Hoje, encontramos principalmente atrizes negras protagonizando histórias, como Taís Araújo, Isabel Fillardis e Sheron Menezes, o que parece bom, mas que esconde outro viés, o sexista – são protagonistas porque não faz mais diferença a cor ou por que atendem a um padrão feminino de beleza? A porta que se abre tem a ver com a cor mesmo ou com a sensualidade? Por que, ao contrário das atrizes, os atores negros não são ainda os galãs das novelas? O mesmo se observa no padrão nipônico: Sabrina Sato, Giovanna Tominaga e Daniele Suzuki também atendem a um padrão de beleza que exclui os atores de origem asiática. Tem algum japinha ator do mainstream no Brasil? Eu não conheço, sério.

É nisso que eu retorno ao segundo ponto. Não tenho o parâmetro exato, eu, branco retinto, do que ofende os negros; por isso mesmo, defender-me-ei da tendência hodierna de considerar tudo o que é contestação como um mero mi-mi-mi. E com isso preciso colocar minha opinião à prova, porque haverá quem ache que estou defendendo o autor, portanto sou racista; haverá quem ache que eu estou contestando o autor, portanto sou censor; e haverá quem ache que estou sobre o muro, portanto sou isentão. Mas o fato é que entendo que, se escrita hoje, a obra teria pontos a serem guerreados, mas que não há como avaliá-la com a mínima coerência pegando-a como texto puro, sem colocá-la em contexto, o que seria a grande pedra de toque para ainda mantê-la válida. Em primeiro lugar, para demonstrar a diferença entre a vida pública e privada. Em segundo, para que se compreenda como os processos sociais não se movimentam de imediato. Em terceiro, para que entendamos como se deu a passagem do imediato pós-abolição aos dias de hoje. Em quarto, para que entendamos que a discriminação continua a se arrastar mesmo que não percebamos, e como ela se articula em diferentes mecanismos, como é a dicotomia racismo-sexismo que citei acima. E, finalmente, para que não se desperdicem obras de talento por conta de escorregadas do autor sob uma ótica extemporânea. É até mesmo didático nas mãos de um professor talentoso.

Recomendações de leitura:

Ler é a melhor maneira de identificar tudo aquilo que se fala sobre Monteiro Lobato. Vou recomendar três obras para formar esse arcabouço.

O primeiro é o mais citado, por estar disponível na rede pública de ensino.

LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho. São Paulo: Brasiliense, 1980.

Já no segundo, o interesse está na maneira com a qual a personagem Tia Nastácia é tratada de maneira diametralmente oposta aos despeitos que a boneca Emília comete.

--------. A Reforma da Natureza. São Paulo: Brasiliense, 1977.

Finalmente, foi lançada há poucos anos uma coletânea completa dos contos de Monteiro Lobato, incluindo os citados Urupês e Negrinha.

--------. Contos Completos. São Paulo: Azul, 2014.


* Explico o termo. A casa em que morávamos era pequena. Na verdade, seu projeto inicial era o de um sobrado, aí sim amplo, com três quartos e banheiro na parte de cima, enquanto o andar de baixo era equanimemente dividido entre sala e cozinha, devidamente assessorados por despensa e outro banheiro. Como o orçamento era medíocre, mandamos construir a parte de baixo e mudamos assim mesmo, arrastando uma dívida que levou anos a fio para ser paga, e que tem suas consequências psicológicas até hoje. Inicialmente, dividimos a sala com um tabique para fazer as vezes de quarto, que, com o crescimento das crianças, revelou-se insuficiente. O que restava ainda de sala virou outro quarto, com sofá e TV sendo acomodados em um quadrante da cozinha, que era italianamente grande, criando um ambiente à parte, mas integrado, dada a ausência de paredes. Deu certo, mas não adiantava tocar as crianças da cozinha para a sala – elas permaneciam na cozinha.

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