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terça-feira, 30 de junho de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 2º relato: Poços de Caldas, um sabor de vidro e corte

Olá!

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Passando um tempo grande já, retomo as cartas náuticas. Nossa segunda parada foi na mui famosa cidade de Poços de Caldas, já aqui colocados no estado de Minas Gerais. Não há grandes transcursos, as cidades são bastante próximas, e de fato é possível chegar em menos de meia hora.

Quando eu e a patroa viemos a Águas da Prata em 1990, não tínhamos certeza se viríamos até aqui, desmotorizados que estávamos. Mas, como já mencionei na minha primeira carta, existia um trem turístico interligando ambas as cidades, o que facilitava sobejamente o deslocamento. Minha intenção era novamente chegar aqui por via ferroviária, mas o trem de Águas da Prata para Poços de Caldas não funciona mais. Desta forma, nada mais resta a não ser embarcar no meu carrinho e seguir viagem queimando gasolina.

Poços de Caldas é muito maior e agitada que Águas da Prata. De fato, basta comparar a vista que se tem do morro do Cristo Redentor de uma e de outra...

Poços de Caldas



Águas da Prata



... Cristo este que fica no mesmo lugar em que desemboca o teleférico da cidade, infelizmente inativo naquele dia. Curioso que tal equipamento não funcione em período de férias, mas enfim...

Poços de Caldas, ao contrário do que ocorreu com Águas da Prata, deu uma mudada boa nesses 25 anos. Algumas bem ruins, como a desativação do monotrilho e da estação de trem (da qual falei ainda há pouco), que acabou virando um depósito de presépio...



... mas que ainda consegue contar algumas histórias interessantes. Ao longo da parte externa da gare há, por exemplo, alguns monumentos e um xadrez gigante, bem como essa insólita maquininha a vapor. À primeira vista, pensa-se: “Oh, uma locomotiva para anões”, mas não. Trata-se de uma niveladora de macadame, os nossos escorregadios paralelepípedos, de tantas topadas matinais e entortadas noturnas.


O centro da cidade é todo bem cuidado, e isso não mudou tanto. Há exemplos belíssimos de arquitetura do auge do ciclo do café, como o Palace Hotel, situado no conjunto chamado de Parque José Afonso Junqueira:


E o prédio das Thermas Antonio Carlos, local que reúne o mais atrativo dos recursos naturais da cidade, as águas sulfurosas, com temperaturas que se mantém em torno de 45 graus Celsius, com uma construção em estilo art nouveau, combinando solidez de suas paredes detalhadas com o requinte dos vitrais que as cercam e recobrem:


Nada mal, os vitrais do teto...


O prédio ainda funciona em seu propósito original, e é “equipado” com médicos, fisioterapeutas e que-tais, além de muitos acessórios que os acompanham desde sua inauguração. Uma verdadeira relíquia. Um pouco chato o inquérito necessário para acessar as águas, mas regra é regra e não passei sobre elas, optando por cozinhar nos 35 graus disponíveis ao ar livre, senegalesco que se encontrava naquele momento.

Há ainda outros logradouros que são bastante significativos para a cidade e para a minha memória. A pracinha onde ficam as charretes possui o relógio John Canta, todo feito de flores recobrindo seus mecanismos, cujo modo de fotografar permanece i-gual-zi-nho ao de tempos atrás: um belo banco de ferro, e braços erguidos para conseguir o melhor ângulo possível. Em tempo: não tenho pau-de-selfie. Em tempo 2: A praça se chama Getúlio Vargas.


A cidade também se caracteriza por possuir duas grandes fábricas de cristais do estilo murano, além de outros pequenos estabelecimentos que fazem o mesmo serviço, à vista dos seus clientes, moldando o vidro a altas temperaturas com suas ferramentas e colorantes habilmente entrelaçados. A foto abaixo foi capturada meio de soslaio, porque a fiz clandestinamente. Não sei por que cargas d’água o dono não deixa fotografar as peças (até mesmo por isso, prefiro não identificar a loja. Pena).


Um pouco retirado do centro, há o Recanto Japonês, um jardim nipônico que fica na encosta de um morro da Serra de São Domingos. A ideia é concentrar em um só local o contato com a natureza e a paz reflexiva típica da cultura oriental. Há muitos lampiões e veredas que encaminham a uma mata cada vez mais fechada, onde, com um pouco de sorte, consegui avistar uns macaquinhos e até mesmo um quati. Também há quantidade considerável de borboletas de porte médio, muito bonitas:


O ponto central do conjunto é a Fonte dos Três Desejos, monumento que escoa três filetes de água que recaem sobre um pequeno tanque, representando as necessidades espirituais e materiais do ser humano: amor, saúde e inteligência. Há uma passagem sob o pórtico, onde é possível se assentar e meditar. Um lugar para vir com tempo.


O local disponibiliza gratuitamente quimonos para tirar fotos. Como nem eu, nem a Mimi achávamos que caberíamos em algum deles, resolvemos não arriscar e passar carão.

Bom, mencionei as charretes da praça GV. Elas percorrem não apenas os pontos turísticos urbanos, mas também algumas quedas d’água do Ribeirão das Antas, cuja mais famosa é, sem sombra de dúvida, o Véu da Noiva:


O local, além da beleza que a foto traduz, possui bastante artesanato local, baseado em trabalhos de madeira, palha, cordoaria e outros.

Prosseguindo rio abaixo, chega-se à Cascata da Lua de Mel. Cascata no sentido figurado mesmo, porque queda d’água não há, somente alguns desníveis. Mas há o mérito de ser um local com bastantes pedras, o que permite chegar ao meio do rio com certa segurança, e daí pudemos molhar adequadamente as costas.


Finalmente, passamos pela represa Bortolan, já no caminho de regresso a Águas da Prata, para matar a saudade de andar de pedalinho. Em outros tempos, os coletes eram desnecessários, o que é particularmente agradável em tempos de sol a pino. Mas, como em questões de segurança é bom não dar mole, vamos embutir a reclamação no bolso e sair pedalando e navegando de escuna.


Apesar de estarmos numa pontinha do estado de Minas Gerais, é inegável que há um quê diferente. Certos aromas se intensificam, alguns sotaques aumentam de frequência e, mesmo com os mais de 400 km que separam Poços de Caldas de Belo Horizonte, e com os pestilentos acordes do sertanejo universitário espoucando nos meus tímpanos, há algo entre atávico e espiritual que me traz Clube da Esquina a cada canto em que eu olhe.

Não deveria ser assim, já que o Clube da Esquina foi um fenômeno e uma corrente urbana, e eu estou no meio do mato. Pensando bem, estou falando bobagem, há muito de campestre nesta escola que se formou já há tanto tempo, e muito de urbano em uma cidade com mais de 140.000 habitantes. Bom, é melhor eu discorrer sobre o tema.

O movimento começa a fazer pipocar seus primeiros brilhos em meados dos anos 60, mas é na década de 70 que podemos considerar que ocorre seu período áureo. Tem muito a ver com o considerável sucesso de seu membro mais ilustre, o cantor e compositor Milton Nascimento, que se reunia com um pessoalzinho assentado na esquina da Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza. Não adianta procurar o clube, ele não existe. O que há é uma placa na parede da casa que ladeia as duas ruas, indicando que naquele local se concentravam os jovens que impulsionariam uma nova escola da música popular brasileira, com seus violões e poesias.

Esses mineiros deram início a um estilo musical que combinava a complexidade harmônica da bossa nova, o lirismo do folk e a multiplicidade do rock progressivo.  Muitos nomes estão inscritos no Clube. O mais afamado é Milton Nascimento, sem dúvidas. Mas o movimento segue agregando o clássico Wagner Tiso (músico erudito de formação), os compositores Tavinho Moura, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Toninho Horta (também guitarrista), Márcio e Telo Borges, e os cantores Lô Borges, Beto Guedes (que trouxe muito do “ar do campo” da tendência), e que teve suas últimas referências com o grupo 14 Bis e com Tavito, bem mais tardiamente.

Quando digo que o estilo musical do Clube remete à bossa nova, imediatamente podemos incluir aí toda a carga jazzística que esta já tem. Isso significa que, mesmo com um ritmo sincopado e um andamento moderado, não são músicas “facinhas” de tocar, como eram as coetâneas canções da Jovem Guarda. Para quem toca um pouco de violão, é fácil de entender. Há uso profuso de acordes incomuns, cheios de sextas, diminutas, nonas aumentadas e etc, que exigem dedos longos e propensos à contorção. São aqueles acordes que, ouvidos isoladamente, chegam a ser desagradáveis. Sua eufonia está justamente no contexto musical em que se encaixa, a tal da harmonia.

As letras das músicas possuem muita subjetividade. Estávamos em plena época da ditadura militar. Os artistas ligados à música de protesto, como Edu Lobo e Geraldo Vandré, já tinham sido colocados para correr pelo aparato repressivo, e aqueles que ficaram tomaram a atitude de continuar sua tarefa de oposição através de letras cada vez mais intrincadas e metafóricas. Chico Buarque, por exemplo, foi um grande mestre nessa arte. “Apesar de você” e “Cálice” são bons exemplos de como usar os desvios e desvãos da linguagem para se dizer o que se quer sem dar conta a quem não pode saber. Neste caso, a censura.

Os membros do Clube da Esquina utilizavam alguns subterfúgios interessantes para carregar sua poesia de referências. Em primeiro lugar, foram precursores dos grunges (leiam mais aqui) na fuga como atitude ("em meio a tantos gases lacrimogêneos ficam calmos, calmos, calmos"), através de temas intimistas ou de histórias internas. E também usavam enredos quase herméticos, com um lirismo crivado de referências internas, desconhecidas das pessoas de fora de seu círculo. Mas isso não impediu que a “redentora” chegasse aos seus pés. Dois exemplos:

Primeiro: Marcio Borges precisou andar escondido por uns tempos, por conta de seu envolvimento com o movimento estudantil. Qualquer letra sua era vista como um fantasma que carregava mensagens ocultas, prontas para incitar à sublevação. Claro que é muito mais difícil produzir em um ambiente onde há uma espada sobre a sua cabeça, o que ajuda a explicar a hermenêutica restrita mencionada anteriormente. 

Segundo: Milton Nascimento, ao contrário de outros artistas, recusou-se terminantemente a deixar o Brasil. A consequência foi que, mesmo permanecendo contratado das gravadoras, teve as portas das rádios e da TV fechadas. Sua obra ganhou a pecha oficial de música para intelectuais, o que, bem entendido para o jargão da época, significava subversão. Se isso lhe salvou o couro, prejudicou a carreira e a mensagem. Para se ter uma base, a música Ponta de Areia, do álbum Minas (1975), é repleta de vocalizações. Estas foram introduzidas na música para suprimir partes da letra censuradas. Mais explícito ainda é o álbum Milagre dos Peixes (1973). Quem ouve este disco, pensa: “Olha, o Milton Nascimento está querendo ser exótico! Um disco praticamente todo instrumental!”. Nada disso. O que houve ali foi um veto quase total, mas Milton resolveu investir em vocalizações, e o álbum foi gravado assim mesmo. A censura prestou ótimo serviço: um álbum instrumental de sucesso, algo raro, principalmente para um artista notabilizado pela voz.

Também mencionei a influência do rock progressivo. Este é um estilo que estava em voga no final da década de 60 e início da de 70, e é caracterizado por alta vanguarda, com a utilização abundante de toda a tecnologia disponível, algumas risíveis para os dias de hoje, mas que eram o máximo da genialidade humana para a época.

(Vou exemplificar com o mellotron, um aparelho de teclas que acionava um conjunto de fitas magnéticas onde estavam gravados os timbres de qualquer instrumento. Cada fita correspondia a uma nota, e, se quiséssemos ter um som de violino, por exemplo, era necessário gravar uma por uma – uma trabalheira imensa. Mas o resultado era a possibilidade de ter uma orquestra inteira ao dispor de um único músico. Qualquer programinha de computador comprado na feira hoje em dia faz melhor, mas ainda tem quem seja apaixonado pelo processo analógico).

Como toda grande tendência, o rock progressivo possuía várias vertentes, e aquela que foi utilizada com mais afinco por músicos do Clube da Esquina foi o folk prog, eternizado por bandas como o Jethro Tull.

Mas, peraí... O som do Jethro Tull não tem nada a ver com o Clube. Não mesmo, cara-pálida. O folk prog utiliza as raízes musicais da pátria que representa. O Jethro Tull é oriundo de Blackpool, uma cidade inglesa, e, naturalmente, busca nas ilhas britânicas as origens de seu som. Um músico que faça folk prog no Brasil buscará raízes brasileiras, ok? Por isso mesmo, ao lado de músicas complexas, há um toque de pesquisa nacional em sua obra, como pode ser bem observado, em especial, em músicas como Página do Relâmpago Elétrico, do Beto Guedes. De certa forma, portanto, o Clube deu origem a outros movimentos de vanguarda brasileiros, como é o caso da Lira Paulistana, porque ajudou a dar início nestes usos inusitados dentro da música. 

Influência dos Beatles? Não preciso nem falar. Quem não foi influenciado pelos Beatles?

É isso. Já gostava de Poços de Caldas, continuei gostando. A vinculação que fiz com o Clube da Esquina é um tanto exótica, mas, no final das contas, isso não apareceu à toa na minha cabeça. Espero que vocês tenham gostado e que lancem mão de uma escola da MPB que costumo utilizar muito quando sinto que estou perdendo a razão.

Recomendação de audição:

A masterpiece deste movimento é o álbum chamado (oh!) Clube da Esquina. Praticamente todas as suas músicas se tornaram clássicos da MPB, o que faz com que muitas pessoas pensem se tratar de uma coletânea. Vale a pena de ponta a ponta. Se você não gostar, não curte música nem poesia. Vá procurar outra praia (exagero completo).

BORGES, Salomão; NASCIMENTO, Milton. Clube da Esquina. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1972.

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