Olá!
Costumo ver os agitos da rapaziada quando algum lançamento
muito esperado no cinema finalmente vai para as telas. Os filmes da franquia
Marvel, as continuações do Harry Potter (há algum tempo atrás), e mesmo os
desenhos da Disney/Pixar costumam mobilizar esse pessoal, que se organiza (?)
em animadas turbas para invadir shoppings e suas salas de projeção, para
assistir os filmes e, subsidiariamente, forrar os chãos de pipoca. Mesmo caras
mais velhos, como meus colegas de serviço, volta e meia saem comentando sobre
as películas que encararam no final de semana.
E eu?
Bem, não sou tão frequente nas salas de cinema. Por uma mera
questão de gosto, costumo ir ao teatro no mesmo tanto de vezes que meus amigos
vão ao cinema. Coisa de pelo menos uma vez por mês (às vezes duas; às vezes,
nenhuma – é só uma média). Sou meio chatinho com relação a filmes (fresco seria
um termo mais direto). Comédias românticas, comédias pastelão, draminhas
gratuitos, filmes seriados, blockbusters em geral são prontamente descartados.
Bom, acontece que tivemos alguns problemas de ordem canina
em casa (sim, estou mudando de assunto, mas já convirjo para ele novamente).
Melhor dizendo, meu velho cachorro andou tendo alguns peripaques típicos de
quem têm mais de 75 anos (em uma conversão de idade arbitrária), como
tonteiras, cólicas e tumores nas “bolas”, o que é mais grave. No leva-e-traz à
veterinária Dra. Luciana, comecei a carregar um notebook, já que a espera é
longa. Como o dito consultório tem uma tevê à disposição do público presente,
mas não ando com ganas de assistir novelas nem propaganda política, aproveitei
para assistir a alguns filmes mudos, ao lado da indefectível Deborah, aflita
tutora do precitado animal. Desta forma, não atrapalhei ninguém com ruídos para
se engalfinhar com as vozes peremptórias dos atores e persuasivas das atrizes,
e aproveitei para rever (não no mesmo dia, que eu não sou de ferro) “O Encouraçado
Potemkim”, obra máxima de Sergei Einsenstein, “Metropolis”, do alemão Fritz
Lang e... “O Gabinete do Doutor Caligari”!!!
Este último é um dos grandes marcos do cinema, que acabou
ficando esquecido na poeira. E não é muito de estranhar. Realmente, se não nos
colocarmos no contexto temporal, histórico e artístico em que foi realizado,
nada mais poderemos fazer do que dar risadas. Mas a obra tem um grande
significado. Vamos lá.
Trata-se de um filme de terror (o máximo que poderia ser
chamado com os conceitos de hoje em dia é de suspense). Seu mote não está na violência extremada que o gênero
ganhou atualmente, mas na pressão psicológica exercida sobre os personagens e,
por extensão, sobre o público. A obra foi desenvolvida no contexto do movimento
denominado Expressionismo Alemão, e esta escola está inserida no amplo conceito
do Expressionismo que surgiu nos princípios do século XX. Vamos falar um pouco
sobre esta escola.
Mais do que um conjunto comum de características, o
Expressionismo possui uma coincidência de atitudes. Surge dialeticamente como
antítese ao Impressionismo, que busca captar o instante flagrado da realidade,
e ao Naturalismo, que tem como propósito demonstrar a existência
determinística, fechada pelo ambiente e genética. O Expressionismo é arte
intuitiva, que tem a ver com uma visão particular. Como cada indivíduo tem para
si uma perspectiva da realidade, nem sempre a visão do artista diante de um
determinado fato ou objeto é a mesma que temos para nós mesmos. Essa
individualização dificulta a limitação de características, mas abre o leque de
possibilidades artísticas. Melhor dar uns exemplinhos.
A pintura abaixo se chama “No Terraço”, traçada pelo mestre
Auguste Renoir, um dos mais expressivos expoentes da escola impressionista.
Vamos notar que, apesar da sensação levemente etérea, tão
característica desta escola, e que serve para dar sensação de movimento ao
admirador, a cena retratada é perfeitamente factível, é um reflexo da
realidade. Tudo está em seu lugar: os rostos serenos da mulher e da criança, a
paisagem de fundo representado o riacho e sua vegetação, a mesa opípara, as
proporções, as cores (lembrem que, no Impressionismo, a proximidade dos olhos
com a tela desmascara a ilusão de ótica – a mistura se dá no cérebro de quem observa
a tela, e não nela mesma. Por isso mesmo, as telas impressionistas são feitas
para olhar a distância). Até mesmo a própria situação está plenamente inserida
no campo do real palpável – ainda que inexistente, é perfeitamente
concrescível. Uma situação absolutamente prosaica e banal – a mulher e a
criança (mãe e filha, talvez), em um desjejum ao ar livre.
Agora vamos analisar e comparar outra obra: A Morte e a
Donzela, do austríaco Egon Schiele, um dos eméritos representantes do
Expressionismo.
Aqui, toda a suavidade e espelhamento do real vistos na tela
anterior foram deixados de lado. O aspecto da obra é mais pesado. A
representação dos personagens está limitada a informar que se trata de seres
humanos, ou de algo antropomorfizado. Não há nenhum compromisso com o reflexo
do mundo material. Não há a intenção de se demonstrar belos rostos ou belos
corpos, não é o exterior que importa, é a expressão – a tradução do mundo
psicológico de quem é retratado. A expressão (e por isso o nome da escola,
Expressionismo) é o principal recurso para se expor o status interior, por isso
ela é sempre exagerada (diria melhor: ressaltada) pelos artistas desta
tendência. O objetivo é fugir do racionalismo e ultrapassar os limites da
realidade. Por isso, as formas no Expressionismo são tão distorcidas e
desconexas. Em suma, há realidade a ser retratada, mas ela é interna; um rosto
não precisa parecer um rosto, desde que ele consiga expressar a ideia do
artista através do personagem.
Ok. O diretor do Caligari,
o alemão Robert Wiene, tinha um desafio. Um pintor tem ao seu dispor uma tela,
pincéis e tintas que o permitem expressar livremente seus pensamentos, por mais
desvinculado do mundo observável que estejam. Já o cineasta não tem um suporte
tão etéreo para trabalhar – não estamos falando de desenhos animados. O que ele
fez? Construiu no estúdio utilizado todo um ambiente distorcido, irregular e
obscuro. Aproveitou a disponibilidade exclusiva de películas em nuances de
cinza e a usou a seu favor. A maquiagem dos personagens ajuda a compor o quadro
de desnaturamento, dando-lhes aspecto ora excessivamente lívido, ora coberto de
penumbra. A direção de fotografia procura dar ainda mais ênfase a estes
aspectos lúgubres, seguindo um jogo de distância e proximidade em aclives,
escadas e telhados (elementos fortemente geométricos) de forma a dar aos
diferentes planos uma situação cada vez mais caótica. A ideia é sugerir que a
distorção não está no ambiente, mas no olhar de que observa.
Mas o que o filme tem de mais legal é todo o espectro
histórico que está escrito em suas entrelinhas. Estamos em 1920, apenas dois
anos após o término da Primeira Guerra Mundial. O mundo emerge de sua maior
guerra realizada até então, e, apesar de ainda se constituir em uma guerra de
trincheiras (o que será modificado a partir da Segunda Guerra), a tecnologia
dos armamentos e o surgimento do avião como arma bélica expande o poderio
mortal a níveis até então inimagináveis. A paz estabelecida pelo armistício já
nasce oscilante, derivadas da posição draconiana do Tratado de Versailles, que
impôs penalidades duríssimas aos vencidos alemães. Wiener consegue vislumbrar
tanto a reação da Alemanha quanto o modelo político que será adotado na mesma,
e isso pode ser percebido pelos nomes dos personagens que protagonizam o enredo
– Caligari e Cesare. A vingança viria da Itália.
De fato, o fascismo nasce e começa a tomar forma através da
ação de Benito Mussolini. Em 1919, ele adere ao nacionalismo exacerbado que
estava latente na Itália e o molda para a formação de um Estado fortemente
repressor. Ele começa a fazê-lo através da criação dos fasci de combattimento, feixe de combate. Esse nome provém do fato
de que uma vara ou caniço, isoladamente, são frágeis e fáceis de quebrar. Mas,
uma vez reunidos em um feixe (o Estado), tornam-se praticamente indestrutíveis.
É a ideia do Estado forte, uma entidade sobre a qual nada pode prevalecer. Nos
dizeres do próprio Mussolini: “Tudo para o Estado, nada contra o Estado, nada
fora do Estado”.
Ocorre que o fascismo é uma entre tantas ideologias, e já
sabemos bem como elas funcionam – convencendo as pessoas de que não há outra
maneira possível de fazer existir uma sociedade, e de que qualquer outra
tentativa de sistema é um bloco a ser descartado, tutto intero, como dizem os italianos. Não adianta espernear: isso
não é exclusivo do fascismo. Também o comunismo é assim, o liberalismo, a
democracia cristã, o anarquismo, a monarquia e outros tantos.
A distorção das formas, nesse sentido, é aplicável à
distorção das ideologias. E o enredo é o espelho tanto do terror aplicado à
alienação que está a serviço da sede de poder quanto, antagonicamente, à sua
resistência, simbolizada pela mudança de comportamento do pré-fantasma Cesare.
Então... Cesare é um zumbi, um indivíduo que está
hipnotizado e que representa o povo ideologicamente manipulado e que se
prontifica a servir seus mentores cegamente, o que faz. Vejam só: o dr.
Caligari é um pressuposto adivinho que prediz a morte de personagens, que
realmente ocorrem. Na medida em que seus vaticínios se confirmam, mais e mais
as pessoas passam a acreditar nele. Cesare, provavelmente, é aquele eu mais
acreditou no bruxo, a ponto de ter todos os seus movimentos controlados por
ele. Aqui também temos um belíssimo vislumbre. Vejamos qual.
Sempre que
analisarmos a história da 2ª Guerra Mundial, veremos que a Itália era o flanco
mais frágil do Eixo que compunha com a Alemanha e o Japão. Pelo relato dos
italianos que chegaram ao Brasil (incluindo alguns parentes meus), ao contrário
dos outros dois países, o povo italiano NÃO queria a guerra.
Não sei dizer bem o motivo. Talvez porque muitos desejassem
a manutenção da monarquia, ou pela existência de uma tradição anarquista, ou
pela unificação ainda frágil do Estado, ou por outro motivo que eu ainda não
tenha conseguido detectar, o fato é que por várias vezes Hitler precisou enviar
suas tropas em auxílio à Itália. Quem melhor se identifica com o Cesare de
Wiener são justamente seus compatriotas, que levaram os combates da 2ª Guerra
Mundial até o fim, e aqui temos a melhor justificativa para a utilização do
gênero terror: o terror das mortes no front, o terror dos prisioneiros que são
arrancados de sua terra, o terror dos povos exterminados em genocídio, o terror
diante da derrota que se avizinha e via
discorrendo.
Mas eu disse que o filme é também uma metáfora à
resistência. Uma das determinações de Caligari a Cesare é que ele assassine a
bela Jane. No filme, Cesare tem um insight
que o impede de levar a cabo sua tarefa: a beleza de sua vítima. Este mesmo insight revela o limite da ideologia. Há
um momento em que ela se torna tão absurda que cai em descrédito, como cai o
muro de Berlim, as ditaduras latino-americanas, as dinastias medievais, entre
tantas.
Por final, o Caligari que reaparece vivo como médico do
hospício é uma advertência: o mal nunca some eternamente. E isso explica um
pouco do sucesso e da validade do gênero terror. Sentir medo é inerente à
espécie, e assistir a um filme de terror é a oportunidade que temos de sentir
um “medo seguro”, da mesma forma que ocorre com uma turnê pela montanha-russa,
por exemplo. Os níveis viciantes de adrenalina sobem à estratosfera, e sentimos
imenso prazer com esse narcótico natural. E com isso, nosso genial Wiener funde
a atração pelo medo com uma inteligente prospecção política.
Pois é isso mesmo. O Gabinete
do Doutor Caligari pode ser interpretado como uma metáfora da formação de
um regime que leva à guerra, lançando mão do terror e da loucura. Um bom filme,
com enredo interessante, em que precisamos colocar os “óculos históricos” para
bem compreender, tanto em seu sentido estrito, que, conforme se diz no seu
início, é a retomada de uma lenda do século XI, quanto pelo seu campo
simbólico, todo carregado pela força de prenúncios que, infelizmente, acabaram
por se concretizar.
Recomendação de filme:
É um filme muito fácil de se assistir, já que está em
domínio público, penso eu. Pelo menos está disponível no YouTube:
WIENER, Robert. O Gabinete do Doutor Caligari. Alemanha,
1920. Filme. P&B. 71 min. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=VU-wIeUw1C8>.
Último acesso em 06.11.2014.
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