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segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Cinema mudo, terror e política entrelaçados em um consultório veterinário

Olá!

Costumo ver os agitos da rapaziada quando algum lançamento muito esperado no cinema finalmente vai para as telas. Os filmes da franquia Marvel, as continuações do Harry Potter (há algum tempo atrás), e mesmo os desenhos da Disney/Pixar costumam mobilizar esse pessoal, que se organiza (?) em animadas turbas para invadir shoppings e suas salas de projeção, para assistir os filmes e, subsidiariamente, forrar os chãos de pipoca. Mesmo caras mais velhos, como meus colegas de serviço, volta e meia saem comentando sobre as películas que encararam no final de semana.

E eu?

Bem, não sou tão frequente nas salas de cinema. Por uma mera questão de gosto, costumo ir ao teatro no mesmo tanto de vezes que meus amigos vão ao cinema. Coisa de pelo menos uma vez por mês (às vezes duas; às vezes, nenhuma – é só uma média). Sou meio chatinho com relação a filmes (fresco seria um termo mais direto). Comédias românticas, comédias pastelão, draminhas gratuitos, filmes seriados, blockbusters em geral são prontamente descartados.

Bom, acontece que tivemos alguns problemas de ordem canina em casa (sim, estou mudando de assunto, mas já convirjo para ele novamente). Melhor dizendo, meu velho cachorro andou tendo alguns peripaques típicos de quem têm mais de 75 anos (em uma conversão de idade arbitrária), como tonteiras, cólicas e tumores nas “bolas”, o que é mais grave. No leva-e-traz à veterinária Dra. Luciana, comecei a carregar um notebook, já que a espera é longa. Como o dito consultório tem uma tevê à disposição do público presente, mas não ando com ganas de assistir novelas nem propaganda política, aproveitei para assistir a alguns filmes mudos, ao lado da indefectível Deborah, aflita tutora do precitado animal. Desta forma, não atrapalhei ninguém com ruídos para se engalfinhar com as vozes peremptórias dos atores e persuasivas das atrizes, e aproveitei para rever (não no mesmo dia, que eu não sou de ferro) “O Encouraçado Potemkim”, obra máxima de Sergei Einsenstein, “Metropolis”, do alemão Fritz Lang e... “O Gabinete do Doutor Caligari”!!!

Este último é um dos grandes marcos do cinema, que acabou ficando esquecido na poeira. E não é muito de estranhar. Realmente, se não nos colocarmos no contexto temporal, histórico e artístico em que foi realizado, nada mais poderemos fazer do que dar risadas. Mas a obra tem um grande significado. Vamos lá.

Trata-se de um filme de terror (o máximo que poderia ser chamado com os conceitos de hoje em dia é de suspense). Seu mote não está na violência extremada que o gênero ganhou atualmente, mas na pressão psicológica exercida sobre os personagens e, por extensão, sobre o público. A obra foi desenvolvida no contexto do movimento denominado Expressionismo Alemão, e esta escola está inserida no amplo conceito do Expressionismo que surgiu nos princípios do século XX. Vamos falar um pouco sobre esta escola.

Mais do que um conjunto comum de características, o Expressionismo possui uma coincidência de atitudes. Surge dialeticamente como antítese ao Impressionismo, que busca captar o instante flagrado da realidade, e ao Naturalismo, que tem como propósito demonstrar a existência determinística, fechada pelo ambiente e genética. O Expressionismo é arte intuitiva, que tem a ver com uma visão particular. Como cada indivíduo tem para si uma perspectiva da realidade, nem sempre a visão do artista diante de um determinado fato ou objeto é a mesma que temos para nós mesmos. Essa individualização dificulta a limitação de características, mas abre o leque de possibilidades artísticas. Melhor dar uns exemplinhos.

A pintura abaixo se chama “No Terraço”, traçada pelo mestre Auguste Renoir, um dos mais expressivos expoentes da escola impressionista.


Vamos notar que, apesar da sensação levemente etérea, tão característica desta escola, e que serve para dar sensação de movimento ao admirador, a cena retratada é perfeitamente factível, é um reflexo da realidade. Tudo está em seu lugar: os rostos serenos da mulher e da criança, a paisagem de fundo representado o riacho e sua vegetação, a mesa opípara, as proporções, as cores (lembrem que, no Impressionismo, a proximidade dos olhos com a tela desmascara a ilusão de ótica – a mistura se dá no cérebro de quem observa a tela, e não nela mesma. Por isso mesmo, as telas impressionistas são feitas para olhar a distância). Até mesmo a própria situação está plenamente inserida no campo do real palpável – ainda que inexistente, é perfeitamente concrescível. Uma situação absolutamente prosaica e banal – a mulher e a criança (mãe e filha, talvez), em um desjejum ao ar livre.
Agora vamos analisar e comparar outra obra: A Morte e a Donzela, do austríaco Egon Schiele, um dos eméritos representantes do Expressionismo.


Aqui, toda a suavidade e espelhamento do real vistos na tela anterior foram deixados de lado. O aspecto da obra é mais pesado. A representação dos personagens está limitada a informar que se trata de seres humanos, ou de algo antropomorfizado. Não há nenhum compromisso com o reflexo do mundo material. Não há a intenção de se demonstrar belos rostos ou belos corpos, não é o exterior que importa, é a expressão – a tradução do mundo psicológico de quem é retratado. A expressão (e por isso o nome da escola, Expressionismo) é o principal recurso para se expor o status interior, por isso ela é sempre exagerada (diria melhor: ressaltada) pelos artistas desta tendência. O objetivo é fugir do racionalismo e ultrapassar os limites da realidade. Por isso, as formas no Expressionismo são tão distorcidas e desconexas. Em suma, há realidade a ser retratada, mas ela é interna; um rosto não precisa parecer um rosto, desde que ele consiga expressar a ideia do artista através do personagem.
Ok. O diretor do Caligari, o alemão Robert Wiene, tinha um desafio. Um pintor tem ao seu dispor uma tela, pincéis e tintas que o permitem expressar livremente seus pensamentos, por mais desvinculado do mundo observável que estejam. Já o cineasta não tem um suporte tão etéreo para trabalhar – não estamos falando de desenhos animados. O que ele fez? Construiu no estúdio utilizado todo um ambiente distorcido, irregular e obscuro. Aproveitou a disponibilidade exclusiva de películas em nuances de cinza e a usou a seu favor. A maquiagem dos personagens ajuda a compor o quadro de desnaturamento, dando-lhes aspecto ora excessivamente lívido, ora coberto de penumbra. A direção de fotografia procura dar ainda mais ênfase a estes aspectos lúgubres, seguindo um jogo de distância e proximidade em aclives, escadas e telhados (elementos fortemente geométricos) de forma a dar aos diferentes planos uma situação cada vez mais caótica. A ideia é sugerir que a distorção não está no ambiente, mas no olhar de que observa.

Mas o que o filme tem de mais legal é todo o espectro histórico que está escrito em suas entrelinhas. Estamos em 1920, apenas dois anos após o término da Primeira Guerra Mundial. O mundo emerge de sua maior guerra realizada até então, e, apesar de ainda se constituir em uma guerra de trincheiras (o que será modificado a partir da Segunda Guerra), a tecnologia dos armamentos e o surgimento do avião como arma bélica expande o poderio mortal a níveis até então inimagináveis. A paz estabelecida pelo armistício já nasce oscilante, derivadas da posição draconiana do Tratado de Versailles, que impôs penalidades duríssimas aos vencidos alemães. Wiener consegue vislumbrar tanto a reação da Alemanha quanto o modelo político que será adotado na mesma, e isso pode ser percebido pelos nomes dos personagens que protagonizam o enredo – Caligari e Cesare. A vingança viria da Itália.

De fato, o fascismo nasce e começa a tomar forma através da ação de Benito Mussolini. Em 1919, ele adere ao nacionalismo exacerbado que estava latente na Itália e o molda para a formação de um Estado fortemente repressor. Ele começa a fazê-lo através da criação dos fasci de combattimento, feixe de combate. Esse nome provém do fato de que uma vara ou caniço, isoladamente, são frágeis e fáceis de quebrar. Mas, uma vez reunidos em um feixe (o Estado), tornam-se praticamente indestrutíveis. É a ideia do Estado forte, uma entidade sobre a qual nada pode prevalecer. Nos dizeres do próprio Mussolini: “Tudo para o Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”.

Ocorre que o fascismo é uma entre tantas ideologias, e já sabemos bem como elas funcionam – convencendo as pessoas de que não há outra maneira possível de fazer existir uma sociedade, e de que qualquer outra tentativa de sistema é um bloco a ser descartado, tutto intero, como dizem os italianos. Não adianta espernear: isso não é exclusivo do fascismo. Também o comunismo é assim, o liberalismo, a democracia cristã, o anarquismo, a monarquia e outros tantos.

A distorção das formas, nesse sentido, é aplicável à distorção das ideologias. E o enredo é o espelho tanto do terror aplicado à alienação que está a serviço da sede de poder quanto, antagonicamente, à sua resistência, simbolizada pela mudança de comportamento do pré-fantasma Cesare.
Então... Cesare é um zumbi, um indivíduo que está hipnotizado e que representa o povo ideologicamente manipulado e que se prontifica a servir seus mentores cegamente, o que faz. Vejam só: o dr. Caligari é um pressuposto adivinho que prediz a morte de personagens, que realmente ocorrem. Na medida em que seus vaticínios se confirmam, mais e mais as pessoas passam a acreditar nele. Cesare, provavelmente, é aquele eu mais acreditou no bruxo, a ponto de ter todos os seus movimentos controlados por ele. Aqui também temos um belíssimo vislumbre. Vejamos qual.

Sempre que analisarmos a história da 2ª Guerra Mundial, veremos que a Itália era o flanco mais frágil do Eixo que compunha com a Alemanha e o Japão. Pelo relato dos italianos que chegaram ao Brasil (incluindo alguns parentes meus), ao contrário dos outros dois países, o povo italiano NÃO queria a guerra.

Não sei dizer bem o motivo. Talvez porque muitos desejassem a manutenção da monarquia, ou pela existência de uma tradição anarquista, ou pela unificação ainda frágil do Estado, ou por outro motivo que eu ainda não tenha conseguido detectar, o fato é que por várias vezes Hitler precisou enviar suas tropas em auxílio à Itália. Quem melhor se identifica com o Cesare de Wiener são justamente seus compatriotas, que levaram os combates da 2ª Guerra Mundial até o fim, e aqui temos a melhor justificativa para a utilização do gênero terror: o terror das mortes no front, o terror dos prisioneiros que são arrancados de sua terra, o terror dos povos exterminados em genocídio, o terror diante da derrota que se avizinha e via discorrendo.

Mas eu disse que o filme é também uma metáfora à resistência. Uma das determinações de Caligari a Cesare é que ele assassine a bela Jane. No filme, Cesare tem um insight que o impede de levar a cabo sua tarefa: a beleza de sua vítima. Este mesmo insight revela o limite da ideologia. Há um momento em que ela se torna tão absurda que cai em descrédito, como cai o muro de Berlim, as ditaduras latino-americanas, as dinastias medievais, entre tantas.

Por final, o Caligari que reaparece vivo como médico do hospício é uma advertência: o mal nunca some eternamente. E isso explica um pouco do sucesso e da validade do gênero terror. Sentir medo é inerente à espécie, e assistir a um filme de terror é a oportunidade que temos de sentir um “medo seguro”, da mesma forma que ocorre com uma turnê pela montanha-russa, por exemplo. Os níveis viciantes de adrenalina sobem à estratosfera, e sentimos imenso prazer com esse narcótico natural. E com isso, nosso genial Wiener funde a atração pelo medo com uma inteligente prospecção política.

Pois é isso mesmo. O Gabinete do Doutor Caligari pode ser interpretado como uma metáfora da formação de um regime que leva à guerra, lançando mão do terror e da loucura. Um bom filme, com enredo interessante, em que precisamos colocar os “óculos históricos” para bem compreender, tanto em seu sentido estrito, que, conforme se diz no seu início, é a retomada de uma lenda do século XI, quanto pelo seu campo simbólico, todo carregado pela força de prenúncios que, infelizmente, acabaram por se concretizar.

Recomendação de filme:

É um filme muito fácil de se assistir, já que está em domínio público, penso eu. Pelo menos está disponível no YouTube:

WIENER, Robert. O Gabinete do Doutor Caligari. Alemanha, 1920. Filme. P&B. 71 min. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=VU-wIeUw1C8>. Último acesso em 06.11.2014.

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