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segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Uma casca de nós

“Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó* que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.”


Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) – Trecho d’A Tabacaria – Na minha humilde opinião, um dos melhores (senão o melhor) poema de todos os tempos


* Dominó: espécie de fantasia semelhante a um grande paletó
Olá!

A feira de orgânicos do parque da Água Branca (oficialmente: Parque Fernando Costa), onde me encontro neste momento, é um lugar curioso. Seus consumidores, no todo, buscam alimentação saudável e saborosa, mas que costumam fazer mal a um órgão especialmente suscetível a cólicas e espasmos, que é o bolso. Munido de espírito crítico, tenho a tendência a não aceitar fácil o preço das feiosinhas maçãs e dos esquálidos abacates; mas que eles são mais saborosos, isso são. Posto isso, acabo por me conformar. As pessoas costumam vir para cá paramentadas meio que a caráter, numa mistura algo insólita de saias indianas, mocassins, sandálias de couro cru, camisetas com slogans e faixas na cabeça – nossa, como gostam de faixas na cabeça. Dificilmente estas mesmíssimas pessoas utilizam estas indumentárias em seus quotidianos. Não imagino o rapaz em seu escritório de advocacia com uma calça de algodão cru, nem a menina indo prá faculdade embrulhada num sári, ou as senhoras indo ao bingo com aquelas pedras brilhantes coladas no meio da testa. Mas, entre mortos e feridos, percebo que as pessoas que frequentam o lugar têm uma boa média de cultura, conversam de assuntos um pouco mais elevados que a média geral, têm preocupações ambientais sinceras, que fogem um pouco do individual – não raro, há palestras interessantes sobre ecologia, biodiversidade e outras bossas do gênero, ou há escritores do assunto fazendo lançamentos e autografando suas obras. Isso tudo dá um ar meio hippie a estes eventos, o que me agrada. Por isso mesmo, tenho trazido meu caderno e fico sentado nas mesinhas do lado de fora da feira, enquanto aguardo, cercado de abelhas (leiam aqui), as aflitivas aquisições de minha esposa e filha – não, elas não usam faixas na cabeça (só às vezes) – e acabei por gostar do lugar, onde logo pela manhã tomo um ar fresco e sinto o agradável cheiro do café orgânico sendo passado. Acontece que, neste exatíssimo instante, estou sendo expulso do local onde estava sentado porque há pessoas que estão consumindo e não tem cadeiras disponíveis para sentar. Como eram idosos os que estavam aguardando, não criei caso, até mesmo porque, como é natural nas pessoas que escrevem, eu estava de cabeça baixa e não vi ninguém esperando. Mas, a partir de agora, passei a detestar o lugar que a 30 segundos atrás me agradava. Como a vida é dinâmica, não?
Mas isso tudo me levou a refletir. Por que as pessoas têm indumentárias diferentes nos diferentes lugares? Mais que isso: por que as pessoas têm comportamentos diferentes em diferentes locais e situações? Haverá uma verdade pública e outra privada? A multiplicidade de características é algo que devemos encarar como normalidade ou somos todos falsos?

Em primeiro lugar, precisamos ter consciência de duas coisas: existem diferentes ângulos de visão e também a diferença entre algo que é visto em seu todo e algo que é visto em suas partes. Sobre esse segundo aspecto, vejam o estudo de caso (absolutamente informal) que segue:
Peguemos como exemplo a própria cidade de São Paulo. Grande, multifacetada, costumam dizer que é a cidade dos negócios. Pode ser mesmo. Aqui, temos uma enorme quantidade de ruas com atividades especializadas, e em cada delas temos um volume de compras, vendas e escambos que seriam dignos de qualificar e nomear qualquer cidade que praticasse as mesmas atividades. Como podemos considerar a cidade em seus aspectos mais particulares?  Ela é suntuosa como os lustres da Consolação ou espartana como os uniformes da Tiradentes?  É moderna como os eletrônicos da Santa Ifigênia ou arcaica como os antiquários da Dom Orione? É rica como as boutiques da Oscar Freire ou popular como as “lodgínias” da Oriente e da José Paulino? É idealista como os vestidos de noiva da São Caetano ou realista como as máquinas usadas da Piratininga? Tem o cheiro forte das madeiras da rua do Gasômetro ou a fragrância suave das essências da Silveira Martins?  Tem a sisudez dos bancos da Quinze ou a descontração das fantasias da Porto Geral? É de labor masculino como as ferramentas da Florêncio de Abreu ou feminino como as máquinas de costura da Rua da Graça? Tem a cara de quem está por ser preparado dos cereais da Santa Rosa ou da tarefa realizada nas panelas da Paula Souza (claro que me refiro a comida)? Tem sorriso de criança como nos enxovais infantis da Maria Marcolina ou a compenetração da caça e pesca da Brigadeiro Tobias? É arte para os ouvidos como a dos instrumentos musicais da Rua do Seminário ou é arte para os olhos como a que sai dos equipamentos fotográficos da Conselheiro Crispiniano?  É limpa como as casas médicas da Borges Lagoa ou empoeirada como os móveis usados da Marechal? Trafega nos sonhos como as agências de viagem da São Luiz ou trabalha a realidade dura como as cordoarias da Senador Queiroz? É ágil como os telefônicos da Gusmões ou leve como os artigos orientais da Galvão Bueno? É multicolorida como as flores do Arouche ou monocromática como o ouro da Barão de Paranapiacaba? Anda célere nos carros das agências da Anhaia Melo ou lentamente nos calçados da Rua Cavalheiro? Aponta para o futuro como as auto-peças da Barão de Limeira ou remete ao passado das mãos das avós e seus tecidos da 25? Adere ao chão como os panos de saco da Bresser ou pensa que vai para o céu como as comércio sacro da Sarzedas? É milionária como os carrões da Avenida Europa ou miserável como a feirinha de rolo da Rua do Glicério?


Veja que a cidade é uma e também são várias. Quem olha o todo, vê uma cidade grande, pujante; quem vê o detalhe, percebe o quanto ela é diversificada, e que se coloca em posição de paradoxo com relação ao que foi citado para o todo. A cidade é grande, mas ainda tem área rural; é opulenta, mas tem enormes bolsões de pobreza; é moderna, mas possui um restinho de memória no casario antigo dos primeiros bairros; é mal estruturada, mas tem setores invejáveis e verdadeiramente funcionais; é, ao mesmo tempo, uma cidade com um colapso educacional na base e com o maior número de universidades do país; oferece ao visitante a melhor gastronomia do mundo e os piores índices de violência urbana. Tudo isso é verdadeiro, e as pessoas também são assim.

Se as pessoas são várias em seus aspectos, é porque o ser humano é uma espécie em constante adaptação ao meio em que vive. Recebe influências externas e percebe que, a cada uma delas, há algo a temer, que afeta sua sobrevivência, e daí luta para se adaptar.

Certa vez, assisti a uma palestra do historiador Leandro Karnal, e ele dizia sobre o contraponto do pensamento de três importantes pensadores dos séculos XVII e XVIII. Olhem só como teorizavam os pensadores contratualistas.
Para Thomas Hobbes, o homem era essencialmente um átomo de egoísmo. Isso significa dizer que cada homem é único e se reconhece como tal. Todas as relações humanas não se baseiam em um consenso natural, como ocorre com os animais, por um motivo muito simples: ele não existe. Como o homem é movido por egoísmo e por interesse próprio, a situação típica de uma relação é de guerra de todos contra todos. Enquanto os animais, quando se debatem entre si, tem como pano de fundo a preservação da espécie, no homem se configura a preservação de si mesmo. Daí a famosa utilização hobbesiana da frase de Plauto: “homo homini lupus - o homem é o lobo do homem” . Neste estado de coisas, e como o egoísmo do homem é extremo, ele reconhece o risco de perder seu bem maior, que é a própria vida. Desta forma, o homem estabelece acordos não escritos com os outros homens, de maneira que todos reconheçam entre si esse direito maior, e assim nasce a sociedade e o Estado, que implica no reconhecimento consensual de uma autoridade maior. Hobbes chamou o Estado de Leviatan, que é o nome de um monstro bíblico encontrado no livro de Jó, e representa o poder invencível. Em resumo, o homem é mau por natureza e necessita do Estado para controlar sua barbárie.

Em Jean Jacques Rousseau, o pensamento vai para o polo oposto: o homem era naturalmente bom. A natureza era um reflexo da divindade, e o ser humano inserido neste meio teria todos os elementos necessários para exercer sua harmonia e liberdade, em um princípio filosófico que foi fortemente identificado na literatura como bom selvagem. Só que o meio social acabava por distorcer suas virtudes originárias através da supressão da liberdade, daí sua célebre frase: “O homem nasce livre, e por toda a parte se encontra acorrentado”.  Segundo o filósofo genebrino, o homem perdeu sua pureza e bondade natural a partir do momento em que cercou um pedaço de terra e disse: “Isso é meu”.  Como os demais homens, ao invés de admoestá-lo a parar de falar bobagens, trataram de fazer o mesmo, estabeleceu-se o princípio da propriedade, e, por causa dele, todo tipo de guerra e discórdia floresceu. Essa é a triste gênese da sociedade. Para se tornar possível a vida em comum, estabeleceu-se que a vontade individual deveria ser suprimida a favor de uma vontade coletiva, o que, naturalmente, desagrada muita gente. Sumarizando: o homem é bom, mas se torna mau por influência social.
Já para John Locke, o homem era tabula rasa. Sua mente era um papel em branco no qual seria escrito tudo aquilo que sua experiência pudesse captar. Ele se tornaria aquilo que fosse escrito em sua alma, seja para o bem, seja para o mal. Não há aqui nenhuma predisposição inata, o homem não carregaria bondade nem maldade do berço. Aliás, Locke dava grande valor à educação como formadora da personalidade das crianças, e atribuía ao educador papel vital em exercitar no aluno o uso de sua razão. A sociedade se forma, ao contrário do que dizem Hobbes e Rousseau, não da necessidade de cerceamento dos instintos selvagens, mas do próprio uso da razão, na medida em que deve garantir que a liberdade de uns não seja restritiva para a liberdade de outros. Desta forma, nasce a ideia do Liberalismo, que reduz a necessidade do Estado como ferramenta de coerção e aloca-o como guardião da lei. No final das contas: o homem não é nem bom, nem mau; ele é o que fizerem dele.

Conclusão geral: não há consenso (se esses três, que são colocados na plêiade dos principais filósofos da história não chegam a um acordo entre si, não chegam a um denominador comum, que poderei fazer eu, pobre filósofo de porta de botequim?). E o consenso não existe porque as pessoas são formadas pelos mais variados aspectos, reagindo diferentemente em cada uma de suas situações. Tendemos a indicar a falsidade como um defeito, e ela é mesmo, mas é preciso compreender porque o comportamento humano nem sempre é legítimo.
A pessoa tem uma tendência óbvia de maximizar suas qualidades e mascarar os seus defeitos até mesmo como mecanismo de defesa. Um mundo onde se vive em constante espírito de competição tem a tendência de fazer com que as pessoas se munam com todas as armas que tem ao seu dispor.  E isso se enraíza de maneira tão profunda que dificilmente as pessoas se desnudam completamente. Estão sempre como uma noz: envolvidas por uma casca impenetrável, mesmo quando desnecessário, porque é-nos muito duro reconhecer a falibilidade, a fraqueza, a incoerência...

Incoerência! Quantas vezes não nos obrigamos a suportar o que detestamos, só por uma questão de conveniência. Quantas vezes fazemos em casa o que jamais faríamos na rua. Quantas vezes repreendemos em nossos filhos o que elogiamos nos filhos alheios. Quantas vezes debochamos de uma etiqueta que nunca deixamos de usar. Ou, pior ainda, quantas vezes condenamos preconceitos dos quais nunca conseguimos nos livrar no foro íntimo.
Sim, o homem se adapta às mais diversas circunstâncias, e usa tudo para isso, e dá bela ênfase à mentira e à falsidade, por um motivo absolutamente simples: ela é muito mais moldável do que a verdade. Mas não devemos nos colocar no exílio por causa disso – é também uma questão de sobrevivência. Afinal, a mimetização e a camuflagem nos animais não é, de certa forma, uma mentira necessária à vida?

Não estou erguendo um estandarte à falta de caráter do ser humano. Muito pelo contrário. Estou reconhecendo que o homem usa armas que fogem a qualquer compromisso ético. Apenas estou constatando uma característica nossa: a de moldar uma face para cada tipo de luz que ilumina seu ambiente, sem que isso seja um motivo essencial para condenações. Somos, para o mundo, uma casca de nós. A aparência que se extrai de nossas atitudes não denuncia, necessariamente, o que se pode observar de dentro.
Dessa forma, o aspecto que apresentamos ao mundo depende essencialmente do aspecto de cada uma de nossas relações. Não há uma verdade por inteiro. Que isso não nos desnature também por inteiro.

Recomendações de leitura:
São os contratualistas que eu citei. É muito interessante analisar as discrepâncias entre suas teorias.

HOBBES, Thomas. Leviatan ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
LOCKE, John. Ensaio Acerca do Entendimento Humano. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Saraiva, 2011.

PS: Resolvi acrescentar as palavras do Pedro Debs Brito no Facebook, para enriquecer ainda mais este texto:

" E se puder adicionar algumas poucas palavras, essas seriam as seguintes: do Riobaldo, lá do grande sertão: "este mundo é muito misturado" e aí uma consideração do Edgar Morin, filósofo: o ser humano é complexo, do sentido original do termo, complexus significa aquilo que é tecido junto; tece e entretece... são os vários fios e as diversas partes que se unidas formam uma casca. Dessa maneira a questão pra mim se concentra no olhar; ou melhor, na forma como olhamos. Se buscarmos olhar de uma maneira compreensiva, de natureza complexa, conseguiremos - acredito eu - enxergar melhor, não enxergar mais, mas enxergar melhor. Ter em conta que não olhamos coisas, mas pessoas, fenômenos dinâmicos e nada integrados: ao contrário, espalhados. "Vou mostrando como sou, e vou sendo como posso. Jogando meu corpo no mundo, andando por todos os cantos e pela lei natural dos encontros: eu deixo e recebo um tanto" disseram os Novos Baianos.

Tudo isso pra dizer que vejo que somos feito casca de nozes compostos por diálogos infinitos e compreensões plurais; são essas coisas que ficam em nós das nossas relações que formam nossas identidades (no plural mesmo)."

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