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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Sobre a colonização e suas implicâncias na auto-estima dos povos (Ou: Mandela e Fanon como herois da conciliação)

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.”
(Mandela)

“A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo... ou tarde demais. Não venho armado de verdades decisivas. Minha consciência não é dotada de fulgurâncias essenciais. Entretanto, com toda a serenidade, penso que é bom que certas coisas sejam ditas. Essas coisas, vou dizê-las, não gritá-las. Pois há muito tempo que o grito não faz mais parte de minha vida.”
(Frantz Fanon)
Olá!
Não posso deixar de enfrentar a notícia da morte de Nelson Mandela. É um dos homens mais importantes do nosso tempo.
Não vou aqui me deter em relatos pungentes, podem ficar calmos. Também não vou contar em detalhes toda a retrospectiva de sua longa vida. A grandeza de Nelson Mandela se resume, paradoxalmente, a algo muito simples, muito fácil de compreender. Quando ele foi eleito presidente da África do Sul, o principal temor residia na arquitetura de um projeto de vingança, em que os brancos, minoria numérica, poderiam transformar-se também em minoria excluída.

(Rapidíssima explicação sobre o apartheid, destinada aos mais jovens: foi um regime de segregação racial que perdurou de 1948 a 1994 na África do Sul, quando a minoria branca governante – descendentes de ingleses e holandeses – estabeleceu uma divisão formal entre as diferenças raças existentes no país, incluindo a impossibilidade de casamentos inter-raciais e a criação de áreas específicas para moradia, com as piores destinadas aos negros. Inúmeros direitos eram reservados aos brancos, como o voto para as instâncias superiores do poder e o emprego público. Tudo era dividido. Havia ônibus, trens, ambulâncias, hospitais, escolas, bibliotecas para brancos – sempre melhores – e para negros. O descumprimento das regras sempre terminavam em cadeia ou sjambok, o temível chicote utilizado pela polícia).


Mandela conseguiu restabelecer os direitos dos negros sem que, com isso, a minoria branca fosse execrada no país. Sua palavra de ordem se baseou na reconciliação, o que tornou a iniciativa de reformas que distribuíssem renda aos mais pobres muito mais lenta do que se podia imaginar, mas, de toda forma, conseguiu que isso fosse feito de maneira plenamente democrática, e evitou confrontos que poderiam levar à guerra civil.

Ou seja, Mandela brindou a humanidade com algo raríssimo: inteligência.
Mas, se Mandela foi um homem de ação, que soube por em prática um projeto de reconstrução de toda uma etnia, é bem certo que ele também soube captar os ensinamentos de um outro negro, um grande intelectual, um tanto quanto menosprezado nos meios acadêmicos, mas que figura como um dos maiores pensadores da segregação racial. Seu nome: Frantz Fanon.

Frantz Fanon foi um médico e psicanalista francês, nascido na Martinica, situada no Caribe. É uma província ultramarina francesa, com a predominância populacional de descendentes de escravos africanos. Na juventude, foi participar da Segunda Guerra Mundial, na campanha de libertação da Argélia. Daí, foi à França estudar, onde tomou contato com os literatos da chamada Négritude, além de se transformar em um fã de Jean-Paul Sartre, o papa do Existencialismo, de quem recebeu influências (e depois influenciou). Ele falava com a rara autoridade de quem, a despeito de sua cor, conseguiu se inserir no meio acadêmico.
O principal núcleo de seu ideário reside na Psicopatologia da Colonização. Diante de sua vivência em uma terra colonizada há séculos, e das viagens que fez a outros países em igual situação, fez a constatação de que o racismo não é simplesmente uma atitude de exclusão adotada por uma determinada classe dominante, mas uma estrutura que habita o cerne da máquina social, com evidentes reflexos psicossociais.

A dominação age em nível psicológico. O mundo perfeito é apresentado aos negros como uma dádiva concedida aos homens brancos. Esta condição é interiorizada de tal modo que ganha o estatuto de verdade, por mais incômodo que possa ser. A mais famosa frase de Fanon diz que só há um destino para o negro, e ele é branco. Ou seja, o negro deve reconhecer sua condição de inferioridade econômica, social, territorial e principalmente cultural, e deve desejar que a solução para essa inferioridade seja a transformação de suas características, para que se assemelhe cada vez mais ao europeu.
Isso traz à luz uma visão psicológica inédita da questão do racismo. Fanon entende que é racista aquele que reconhece a hierarquia das raças, esteja ele no polo ativo, que reprime e impõe sua cultura como superior, esteja ele no polo passivo, que reconhece e aceita a condição de inferioridade. Isso significa que também o negro é racista, mas de uma forma muito mais dolorosa: aceita sua própria dor, entende a si mesmo como um ser que deve buscar um aperfeiçoamento desvinculando-se de suas raízes. Ser racista, em suma, é reconhecer a existência de raças.

Isso tudo acontece porque o europeu, em sua sanha de conquista e de colonização, possui uma patologia que Fanon vai chamar de “complexo de autoridade”. Trata-se de uma síndrome que “obriga” o homem branco a titular todos aqueles que não se encaixam em seu padrão civilizatório. Não há um ser humano do outro lado da relação, há alguém diferente. Mas não é uma diferença meramente cultural, em que é possível se estabelecer uma dialética positiva. Para o branco europeu (e todos os outros brancos, não nos enganemos), a hierarquia das etnias é uma realidade posta, incontestável. Basta que se verifique o avanço tecnológico e o progresso científico de cada nação para que se dê essa conclusão. Há, portanto, uma relação de colonização que tem o véu de ser natural (e, em um passado mais remoto, divina), devendo ser admissível por todas as partes envolvidas, esteja na situação em que estiver.
Desse complexo de autoridade, teremos uma derivação psicológica muito cruel. O ser colonizado, como sói acontecer, é extremamente vigiado. Tem seus costumes desnaturados, na forma de repressão, que, evidentemente, vão transpor suas barreiras físicas e atingir seu inconsciente. Como deve recalcar seus desejos, estes ficam represados e esperando a oportunidade para extravasar. As ocasiões para dar essa vazão são raras, e vão sendo introjetadas cada vez mais, até o ponto em que o mecanismo psíquico perde os seus sustentáculos e acabam por explodir, de forma violenta. O colonizado poderia voltar essa violência contra seu dominador, mas este se encontra guarnecido; tem armas, tem poder, tem dinheiro. Conclusão: o colonizado sujeitado volta toda essa violência em seu próprio gueto, contra si mesmo. É um processo de auto-destruição, que pode ser visto nos índices de criminalidade dos bairros mais pobres. Como a estrutura racista se alimenta de fatos que deponham contra a etnia que quer dominar, o negro ganha mais um estatuto, o de violento, inadequado para a vida em sociedade.

Nosso caro filósofo, como eu disse anteriormente, teve contato na França com um movimento denominado négritude, que tinha entre seus líderes os escritores Aimé Césaire, igualmente martinicano e Léopold Senghor, senegalês. Estes intelectuais negros eram defensores de que a cultura africana era suficientemente rica para construir uma contraposição à cultura europeia. Para levar esta ideia a cabo, era necessário trazer evidências das melhores características do pensamento negro. Para eles, à razão sistemática das escolas europeias, em sua maioria calcada no distante logos grego, era preciso demonstrar que o substrato da intelectualidade e do modus vivendi da África era fundeada pela emotividade. O caso aqui não é de negar a natureza impulsiva do africano, mas de confirmá-la. O negro deve se estabelecer como diferente do branco, e não baixar a cabeça diante da dominação.
Fanon tinha uma visão oposta a esta. Para ele, movimentos como o Négritude nada mais fazem do que repetir a ação do homem branco. Não à toa, esse movimento foi a base intelectual para os movimentos de independência das diversas colônias da África, sempre levadas a termo de forma sangrenta, porque contrapunham duas forças sem possibilidade de conciliação. Com isso, a diferença sempre irá persistir. O próprio termo “negro” é uma invenção do colonizador para colocá-lo em situação passiva. É como se existisse um organograma onde devemos dar nome às “caixinhas”, e partir para o confronto aberto, ainda que seja uma reivindicação justa, fará apenas com que se troquem os nomes no organograma. Parafraseando Sartre, negro é aquele que os outros chamam de negro. Para Fanon, não há negros, nem brancos; o que existem são seres humanos. Eles querem e devem ser reconhecidos como tal, e ponto. Dividi-los e classificá-los sempre vai estabelecer uma posição de guerra mútua, porque nessa relação não se conhece respeito mútuo.

Fanon está, em meu entender, no mesmo nível do citado Mandela ou de Gandhi, por exemplo. Há uma novidade em seu pensamento que poderia diminuir o sofrimento dos povos sem que se derrame milhões de litros de sangue. Pensem bem: não está hoje em dia a ciência chegando à conclusão de que raças não existem, de que são conceitos criados a partir de uma ideia não experienciável? Pois bem, Fanon já tinha detectado isso há muito tempo atrás...
Comecei este texto com o início do livro que recomendo logo abaixo. Encerro-o com sua conclusão, de forte sabor existecialista. É um pouco longo, mas vale muitíssimo a pena. Sejam pacientes e procurem lê-lo:

Desperto um belo dia no mundo e me atribuo um único direito: exigirdo outro um comportamento humano.

Um único dever: o de nunca, através de minhas opções, renegar minhaliberdade.

Não quero ser a vítima da Astúcia de um mundo negro.

Minha vida não deve ser dedicada a fazer uma avaliação dos valores negros.

Não há mundo branco, não há ética branca, nem tampouco inteligência branca.

Há, de um lado e do outro do mundo, homens que procuram.

Não sou prisioneiro da História. Não devo procurar nela o sentido do meu destino.

Devo me lembrar, a todo instante, que o verdadeiro salto consiste em introduzir a invenção na existência.

No mundo em que me encaminho, eu me recrio continuamente.

Sou solidário do Ser na medida em que o ultrapasso.

E vemos, através de um problema particular, colocar-se o problema da Ação. Lançado neste mundo, em determinada situação, “embarcado”, como dizia Pascal, vou acumular armas?

Vou exigir do homem branco de hoje que se responsabilize pelos negreiros do século XVII?

Vou tentar por todos os meios fazer nascer a Culpabilidade nas almas? A dor moral diante da densidade do Passado? Sou preto, e toneladas de grilhões, tempestades de pancada, torrentes de escarro escorrem pelas minhas costas.

Mas não tenho o direito de me deixar paralisar. Não tenho o direito de admitir a mínima parcela de ser na minha existência. Não tenho o direito de me deixar atolar nas determinações do passado.

Não sou escravo da Escravidão que desumanizou meus pais.

Para muitos intelectuais de cor, a cultura europeia apresenta um caráter de exterioridade. Além do mais, nas relações humanas, o negro pode se sentir estrangeiro ao mundo ocidental. Sem querer bancar o parente pobre, o filho adotivo, o bastardo rejeitado, o negro deve tentar avidamente descobrir uma civilização negra?

Não quero, acima de tudo, ser mal compreendido. Estou convencido de que há grande interesse em entrar em contato com uma literatura ou uma arquitetura negras do século III a.C.. Ficaríamos muito felizes em saber que existe uma correspondência entre tal filósofo preto e Platão. Mas não vemos, absolutamente, em que este fato poderia mudar a situação dos meninos de oito anos que trabalham nas plantações de cana da Martinica ou de Guadalupe.

Não se deve tentar fixar o homem, pois o seu destino é ser solto.

A densidade da História não determina nenhum de meus atos.

Eu sou meu próprio fundamento.

É superando o dado histórico, instrumental, que introduzo o ciclo de minha liberdade.

A desgraça do homem de cor é ter sido escravizado.

A desgraça e a desumanidade do branco consistem em ter matado o homem em algum lugar. Consiste, ainda hoje, em organizar racionalmente essa desumanização. Mas, eu, homem de cor, na medida em que me é possível existir absolutamente, não tenho o direito de me enquadrar em um mundo de reparações retroativas.

Eu, homem de cor, só quero uma coisa:

Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a servidão do homem pelo homem. Ou seja, de mim por um outro. Que me seja permitido descobrir e querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre.

O preto não é. Não mais do que o branco.

Todos os dois têm de se afastar das vozes desumanas de seus ancestrais respectivos, a fim de que nasça uma autêntica comunicação. Antes de se engajar na voz positiva, há a ser realizada uma tentativa de desalienação em prol da liberdade. Um homem, no início de sua existência, é sempre congestionado, envolvido pela contingência. A infelicidade do homem é ter sido criança.

É através de uma tentativa de retomada de si e de despojamento, é pela tensão permanente de sua liberdade que os homens podem criar as condições de existência ideais em um mundo humano.

Superioridade? Inferioridade?

Por que simplesmente não tentar sensibilizar o outro, sentir o outro, revelar-me outro?

Não conquistei minha liberdade justamente para edificar o mundo do Ti?

Ao fim deste trabalho, gostaríamos que as pessoas sintam, como nós, a dimensão aberta da consciência.

Minha última prece:

Ó meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!

Recomendação de leitura:
É comum encontrarmos leituras sociológicas e políticas dos motivos e dos efeitos do racismo. Fanon dá uma alternativa psicológica bastante interessante, que compensa muito conhecer. Sugiro sua obra-prima para entender melhor seu pensamento.

FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.

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